O fim de ano da mulher sozinha

Conto de Sonia Coutinho
Sonia Coutinho: escrita corajosa.
01/06/2005

O guarda do Jardim Botânico vê a mulher se aproximar.

Todos os dias ela vem caminhar aqui, tornou-se uma figura conhecida. Quando fui transferido para cá, ela já vinha. Durante todo o período em que estou aqui, vejo essa mulher todos os dias.

 E agora vou sair do Jardim, estou sendo mandado para um parque no Centro, mas ela continua, continuará vindo.

Percebo como sua aparência mudou. Uns anos atrás, era bonita. Agora é uma velha. Claro que tem mais de 60 anos. Sinto que já caminha com um pouco de dificuldade.

É ela (Emília?) quem está imaginando os pensamentos do guarda do Lago. Apenas devaneios de uma pessoa sozinha, que se surpreende até, atualmente, falando consigo mesma em voz alta.

Logo ela volta ao que mais a preocupa neste momento. Sendo hoje o dia 23 de dezembro, está empenhada numa estratégia pessoal para enfrentar mais um fim de ano só.

Que tipo de estratégia? Ah, imagina para quem poderá telefonar, que livros lerá, os programas de televisão que talvez lhe agradem, os presentinhos que comprará para si mesma.

E não esquecer as tortas de cacau light como sobremesa, sem se importar com calorias a mais nem com o preço mais caro do almoço, que às vezes pensa até quando poderá pagar, com sua minúscula aposentadoria e o dinheiro do aluguel de uma sala que herdou.

Todo ano, a mesma coisa. Já no início do mês de dezembro, ela se enrijece para suportar os dias difíceis de Natal e réveillon, em meio à insuportável exaltação da família, à confraternização falsa dos íntimos e aos bons votos forçados.

Como foi que ficou tão sozinha? Descasada de três maridos, pai e mãe mortos, brigas intermináveis com seu único irmão, supostamente por causa do seu Mau Comportamento no passado e, acima de tudo, uma filha que não a aceita, nunca aceitou, e mora em outra cidade.

Ah, tem de encarar, ficou mesmo inteiramente isolada.

Neste momento, para se consolar, pensa que a solidão foi escolhida por ela, que não é solidão e sim misantropia. Sim, escolheu ficar assim. Mentira, não escolheu.

A iniciativa da separação fora sempre sua, sim, no caso dos três maridos. Mas a dor era igual, foi muito duro ver que não conseguia levar adiante situações insuportáveis. (Isso, definitivamente, seus parentes não entenderam.)

Além disso, sempre foi fechada, não era de se dar com vizinhos, de fazer amizades fáceis, superficiais.

Revê mentalmente, mais uma vez, entre as árvores, o que ela chama de “a minha trajetória”. A moça que saiu do interior e veio trabalhar no Rio. Ganhou? Perdeu?

Sem saber a resposta, chega à margem do Lago Frei Leandro e espia a estátua da deusa Tétis, com sua ânfora vertendo água.

Agora vai falar, afinal, com o guarda sentado no banco embaixo do pequeno telheiro. Será que ele pensou mesmo alguma coisa a seu respeito? Mas sua pergunta é outra, mais concreta:

— O Jardim vai abrir no Natal?

— Na véspera, sim — ele responde. — No dia 25, fecha.

— E no fim do ano?

— A mesma coisa. Abre no dia 31, no dia 1.º fica fechado.

Claro que ouve a mesma coisa todo fim de ano, mas sempre pergunta de novo, talvez algo tenha mudado.

Afasta-se imaginando o que fará, desta vez, nos dias em que tudo estiver fechado, em que não houver sequer um restaurante aberto para ela almoçar. (Não tem empregada fixa, almoça fora todos os dias e, de noite, prepara um lanche para si mesma. Hábitos de quem mora sozinha há muito tempo, hábitos de uma Antiga Jornalista Avançada.)

Ora, continua a pensar, é exagero concluir que não há nenhum restaurante aberto. Sempre pode contar com o Natural de Ipanema, que não fecha nunca, nem em dia de morte do dono, como lhe disse certa vez a moça do caixa.

Puxa vida, graças a Deus há um lugar assim nesta Zona Sul do Rio. Sabe, um restaurante a preço módico sempre aberto, com saladas, legumes cozidos, peixe ou frango. As coisas que ela come.

Afasta-se do guarda, toma uma vereda à esquerda e caminha em direção ao Orquidário. Faz algum calor, há pessoas circulando em torno. Não é o mesmo Jardim fresco e silencioso que costumava visitar às sete da manhã, mesmo com o frio do inverno, o Jardim quase inteiramente deserto a não ser pelo grupo que pratica diariamente o tai-chi-chuan.

Mas tem acordado mais tarde, vem às nove. E hoje, com este calor, está com a impressão de que vai se cansar, não conseguirá caminhar muito mais.

Ah, a passagem do tempo. Sim, está ficando velha. De repente, o medo de não agüentar.

Mais do que as restrições de atividades, talvez o medo de não agüentar a morte dos parentes e amigos, fosse a morte física ou por traição. Sim, o ódio, de repente o ódio de supostos amigos aparecendo cru à sua frente — o que terá provocado tanta inveja, tanto desprezo?

E o medo de não agüentar a morte dos sonhos. Pensa na morte do seu Grande Sonho de ser uma Jornalista Famosa no Rio. Pelo qual abandonou Sua Cidade, o Primeiro Marido, uma filha pequena.

Mas será que foi isso mesmo? Desfolhou muitas vezes essa história, fosse sozinha, com seu psicanalista ou com amigos, era como tirar as camadas de uma cebola, sempre aparecia uma camada nova, uma coisa nova, uma nova versão dos fatos.

A versão seguinte era sempre diferente, trazia descobertas nem sempre agradáveis, derrubava crenças até então aparentemente sólidas.

De repente, aproxima-se uma conhecida. Uma antiga colega de jornal, que também mora perto do Jardim Botânico e costuma caminhar por aqui.

— Oi, querida, você sempre ótima.

— Obrigada, amor, como você é gentil.

— Está quente hoje, não?

— Sim, sem dúvida quente. Mas ainda vou caminhar um pouco.

— Tchau, amor.

Nada realmente interessante, nunca. Mas, pelo menos, a perpétua amabilidade carioca, que às vezes faz falta.

Frase recente para um amigo (falso?): “Nunca pensei que minha vida fosse virar isso, mas virou”.

O Orquidário sempre foi seu local favorito no Jardim. Aprendeu a distinguir as variedades de orquídeas.

Todos os anos, em maio, há uma exposição e aí pode ver as mais raras. As que ficam habitualmente no Orquidário são mais comuns: Laelias, Cattleyas. Mas não se cansa delas.

A visão à entrada sempre a emociona, é lindo. Azul e branco. O teto de vidro, as paredes brancas com treliças azuis, plantas penduradas, as orquídeas no centro, em cima de degraus caiados, numa espécie de ilha cercada por um rio.

No fundo de um corredor transparente, a porta que dá para um gramado e um telheiro onde há muitos pés de orquídea, em potes. Gosta de se sentar ali, num banco perto do portão de madeira azul da saída. O que faz agora.

Há aqui um vento fresco, uma visão de montanhas, uma sensação de estar à sombra, recolhida.

Faz quantos anos vem aqui praticamente todos os dias? Muitos anos já. Nove? Dez? Antigamente, procurava sempre situações novas, na vida. Agora descobre uma novidade mais sutil na eterna repetição, com suas minúsculas variantes.

Viu árvores serem derrubadas, outras que foram plantadas no lugar delas já cresceram. E são sempre diferentes as folhas no chão, a mudança contínua dos tons de verde, amarelo e marrom avermelhado.

Decide agora, embora seja mais afastado, ir até o Jardim Japonês, ver as carpas. Há lá um jardineiro com quem, há anos, troca algumas palavras todos os dias, sobre o tempo ou sobre as plantas.

Hoje, ele lhe explica como fez o salgueiro à margem de um pequeno lago reviver: uma boa poda, disse.

Dentro de uma parte mais rasa do lago, os pés de lótus se multiplicam, com suas imensas flores brancas.

Pessoas vinham todo dia ao Jardim encontrar com ela, mas quase sumiram, talvez tenham morrido.

De qualquer jeito, há sempre essa sensação de familiaridade e de caras conhecidas. O dono da loja de artesanato, que visita em seguida, é o mesmo, todos esses anos.

Engraçado é que, quando se faz sempre a mesma coisa, é como se o tempo não passasse. Mas passa.

Enquanto caminha por aqui, sua família foi morrendo. A proximidade do fim do ano provoca retrospectos.

Todos esses anos caminhando pelo Jardim Botânico. Aprendeu os nomes de muitas flores e plantas. Aprendeu a história do Jardim e dos seus locais mais atraentes lendo os livros da biblioteca, muitos com gravuras antigas.

Segue, agora, em direção à saída do Jardim. Mas, antes de ir embora, pára mais uma vez diante do busto de D. João VI.

— D. Emília, que prazer ver a senhora! — ele exclama.

— O prazer é todo meu — ela responde.

E se engaja numa conversa com D. João. Sabe tudo (ou quase tudo) sobre a vida dele. A relação terrível com a mulher, Carlota Joaquina. Os filhos que ele não sabe se são realmente seus.

Uma área de sombra: a suposta relação homossexual dele com um camareiro. Um amor proibido: com uma freira.

Mas não leva a conversa muito adiante, despede-se.

De volta ao seu apartamento, tem uma repentina e aguda sensação de conforto: é agradável um espaço seu, limpo. Tinha brigado com a faxineira mas logo fez as pazes, chamou-a de volta, felizmente. Pelo menos pode passar o fim de ano com tudo arrumado.

Dá uma olhada na secretária eletrônica, nenhuma mensagem registrada. O telefone inteiramente mudo.

Na véspera do Natal chove, ainda por cima!

É seu primeiro pensamento, quando abre os olhos, de manhã. Hoje, não poderá caminhar pelo Jardim Botânico.

Terrível, considerando as circunstâncias. A única alternativa, ir mais cedo para o shopping, para onde também vai todos os dias.

Desce pela escada até a garagem (tem fobia de elevador e evita tomar, quando pode), entra no seu velho carro e segue para o shopping. O piso mais aconchegante é o segundo, com a livraria, o restaurante onde almoça diariamente.

Hoje, a comida demora a chegar. Mas não se importa, fica olhando as pessoas passarem, o shopping está cheio com a aproximação do Natal.

São pessoas com roupa bem esportiva, mas de classe, tênis caros, calças com o feitio da moda. Sapatos muito altos e algum tipo de jóia revelam uma origem diferente, é gente que não mora nessas imediações bem-instaladas.

Quando sai do shopping para ir ao banco vizinho, vê a mulher deitada na calçada, enrolada num pano, dormindo.

Pensa, com uma dor no peito, que há cada vez mais mendigos pelas ruas, mesmo aqui.

No fim da tarde, depois de um dia nublado e cinzento, um repentino sol entre nuvens faz o céu inteiro emitir uma misteriosa claridade dourada, banhando as coisas de intenso amarelo.

E, na noite de Natal, quando pensava estar bem protegida ali trancada, com a televisão ligada, de repente o telefone toca.

Suspeita que seja o Amigo Homossexual, que há alguns anos vem escutando atentamente ela contar todos os seus infortúnios.

Mas sempre desconfiou da amizade dele. Será paranóia sua ou houve mesmo, sempre, um elemento de cruel satisfação nessa escuta?

Não atende, fica ouvindo, enquanto ele deixa uma mensagem:

— Emília, você NÃO ESTÁ SOZINHA (quase um grito), você está no meu coração, como eu espero estar no seu.

Uma piedade desnecessária e intrometida, sente, com raiva.

Vem-lhe a certeza, neste momento, de que sua solidão foi conquistada a duras penas, sua solidão é seu prêmio.

Que ninguém se atreva a invadi-la assim, fazendo pouco da grande alegria que ela lhe dá.

Já na noite do réveillon, a depressão ameaça instalar-se, mas acaba não se instalando.

Engraçado, pensa, agora seria uma depressão “sensata”. Sim, a depressão como um excesso de sensatez, ver a vida com um bom senso absoluto que, no entanto, tira a alegria.

Daqui a pouco vai ligar a televisão, ver os shows musicais e a queima de fogos em Copacabana, depois dormirá.

E se deita, e dorme mesmo. Acorda cedo no dia primeiro, pensando que agora virão muitos meses de alívio, antes que chegue um novo fim de ano.

E depois vem o dia dois, e o três e o quatro, sucessivamente.

Claro que o carnaval será mais fácil, não é como o Natal e o fim de ano. A cidade ficará vazia, agradável, não há cobranças de confraternização com a família nem com os amigos.

No dia cinco de janeiro, conclui que sim, que escapou.

Venceu mais um fim de ano e seus dias passam razoavelmente bem, ela pode continuar vivendo.

Sonia Coutinho

Autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão de Copacabana, entre outros.

Rascunho