O ex-eterno marido

Conto inédito de Felipe Franco Munhoz
Felipe Franco Munhoz, autor de “Identidades”
01/05/2014

Por ocasião do nosso aniversário de casamento — dois anos: dois anos tranquilos — minha esposa, Eliane, presenteou-me com um romance: O eterno marido. O romance foi escrito por Fiódor Dostoiévski, em 1870; e talvez seja relevante confessar-lhe que Dostoiévski figura entre meus autores prediletos. Junto ao livro, Eliane anexou um cartão que dizia, entre outras particularidades, Para o meu eterno marido.

Comecei a ler naquela noite, ansioso, após o jantar de comemoração. E fui logo envolvido pela angústia aflita do protagonista Vieltchâninov, a quem o narrador segue — em sutil onisciência — com exclusividade. Uma narrativa arrebatadora. Quando o personagem está aflito, o texto está aflito; essa técnica, que é executada com precisão, revela-nos o raro artista maior. No caso de Dostoiévski, a forma também é conteúdo.

Com tais ideias fermentando, eu lia o quarto capítulo do romance; era formulada uma teoria sobre mulheres “que parecem ter nascido unicamente para serem esposas infiéis. (…) E tudo acontece com a máxima sinceridade; elas se consideram, até o fim, justas no mais alto grau e, está claro, de todo inocentes”. Tentei recapitular se havia alguma conhecida, alguma amiga, Infiel-inocente.

Quando me percebi às voltas com o parágrafo seguinte: “Vieltchâninov estava convencido de que realmente existia esse tipo de mulher; mas tinha também certeza de que existia um tipo de marido correspondente ao dessas mulheres, marido cuja única destinação seria a de corresponder a esse tipo feminino. A seu ver, o caráter essencial de semelhantes maridos consistia em serem, por assim dizer, ‘eternos maridos’, ou, dizendo melhor, em serem, na vida, unicamente maridos e” —

Correspondente?, pensei.

— “mais nada. ‘Um homem dessa espécie nasce e cresce tão somente para se casar e, após o matrimônio, tornar-se de imediato um complemento da esposa, mesmo que possua indiscutivelmente personalidade própria. O principal indício de semelhante marido é certo ornamento. Ele não pode deixar de ser portador de chifres, como o sol não pode deixar de iluminar; e ele não só ignora o fato: de acordo com as próprias leis da natureza, deve ignorá-lo’”.

Meus olhos debatiam-se no parágrafo, relutavam em retornar às terríveis palavras, até que, derrotados, mergulharam também na memória: mergulharam fixos no cartão Para o meu eterno marido. Para o meu Ela, Infiel-inocente? eterno marido. Para o meu eterno marido. Portador de chifres, como o sol não pode deixar de iluminar. Eu, portador de chifres, portador de chifres que não posso deixar de exibir.

Rasguei! o cartão. Atirei Dostoiévski à lixeira.

Eliane, boa leitora e nada ingênua, teria conhecimento do conteúdo do romance? Ou pior: Eliane teria o conhecimento engavetado e agira de forma inconsciente? Ou pior:, ou pior:, ou. Não há resolução. A única saída, ainda que arrasadora, é reescrever a primeira sentença deste cruel relato: Por ocasião do nosso aniversário de casamento — dois anos; tranquilos? — minha ex-esposa, Eliane, presenteou-me com um romance: O eterno marido.

Felipe Franco Munhoz

Nasceu em São Paulo (SP), em 1990. É autor dos romances Mentiras (2016) e Identidades (2018). Também autor da peça Identidades 15 minutos. Para seu livro de estreia, contou com a Bolsa Funarte de Criação Literária.

Rascunho