(“Se você soubesse como eu tenho medo da morte — nem queira saber! Mas até que tenho tido sorte. Acho que chego a uns 150 anos. Naquela época eu morava em Mesquita, e morava com uma criatura; ela saía às segundas-feiras e eu saía cedo, às sete horas já tava no botequim com o cavaquinho e tomando meus gorós e fazendo samba e voltava para casa tarde tarde, e voltava com duas caras: uma cara de duro e outra cara de triste, sei lá. Mas acontece que numa madrugada eu tomei um pileque tão grande e voltei pra casa e…
Continua.)
A polêmica começou como um rastilho de pólvora e o que seria apenas mais um livro sobre a música popular atingiu a proporção de uma discussão, até mesmo teológica, de imensa repercussão, envolvendo as altas cúpulas das igrejas cristãs brasileiras e chegando, quem diria, ao Vaticano. Afinal, pode um velho sambista, um boêmio histórico, ter criado “uma gramática de Deus”, pregar ele mesmo, e sem saber, a “palavra divina disfarçada em palavra musical”? Seria possível o lendário compositor popular Nelson Cavaquinho ter sido responsável pela conversão de pelo menos uma alma perdida e pecadora? O livro recém-lançado Tira o teu sorriso do caminho, ou O Evangelho segundo Nelson Cavaquinho, sugere que sim. Seu autor, o ex-fiscal da Receita e “ex-boêmio” Matheus de Freitas, recusou-se sete vezes a conceder entrevista (“Sou um personagem de ficção, e não me parece razoável de sua parte entrevistar um personagem.”). Já sem esperanças, mesmo assim mandei as perguntas por e-mail e por e-mail recebi as respostas desta reportagem inédita e exclusiva.
— Fale um pouco sobre você. Quem é Matheus de Freitas?
— Hoje, apenas um apóstolo que prega o Evangelho. O Evangelho segundo Nelson Cavaquinho. Se você tivesse perguntado quem foi Matheus de Freitas, eu responderia que ele foi no mínimo duas pessoas durante quase toda a sua vida: um fiscal da Receita concursado, já aos 25 anos, quando voltou de um mestrado na London School of Economics, e um boêmio, um “rei vagabundo”, como o próprio Nelson se definiu numa música. Durante o dia, vivia o materialismo burocrático, ajudando o governo a tirar dinheiro da população; à noite juntava-se a ela, gastando o que ganhava e procurando a poesia que a sua própria vida sufocava. Boemia é uma palavra romântica, até o dia em que descobri que era sinônimo de dependência química, que é o nome de uma doença. Chamada também de alcoolismo. Depois de quase 40 anos e de uma profunda crise pessoal, descobri que (como o Nelson; a diferença é que nunca lhe foi dada a chance de sabê-lo) eu era portador dessa doença incurável. Hoje sou apenas um alcoólatra em recuperação. Foi aí que eu renasci. Escrever O Evangelho foi parte desse processo de renascimento.
— Você imaginava que seu livro causasse esta polêmica toda?
— Nem de longe. Não era a minha intenção. Pretendi apenas dar meu testemunho sobre um testemunho maior de vida que foi a existência de Nelson Cavaquinho. Um alcance que nem ele mesmo, sempre mergulhado na maior das humildades, jamais imaginara. Ele apenas nos deixou sua bondade pessoal e um punhado de hinos, ou sambas iluminados, e esse é o seu verdadeiro Evangelho. Ninguém cantou tanto e tão bem o sofrimento humano, ou a história do bem e do mal, como ele diz em “Juízo final”.
— Mas aproximá-lo ou mesmo identificá-lo com Deus, não seria um exagero?
— Não pretendo que ninguém venha a vê-lo como Deus. É apenas a minha experiência de ouvir a palavra de Deus através da palavra musical e da própria vida dele. E não vejo por que se surpreender com essa revelação: ou será que Deus não fala através dos nossos semelhantes? Tenho uma amiga que foi salva do suicídio lendo Em busca do tempo perdido. Isso pode nos surpreender, mas não chega a ser polêmico: afinal, Proust é um artista superior. O que talvez tenha chocado os homens cultos, os novos doutores da Lei, no caso do meu Evangelho, é que esta, digamos assim, iluminação que conto no livro, se deu através de um “mero sambista”, um homem pobre que nem o primário terminou e cujos conhecimentos religiosos se reduziam a algumas aulas de catecismo quando ele tinha cinco anos de idade. Mas Jesus não atraía os pecadores, os doentes, os miseráveis? Malandros, bandidos, prostitutas adoravam ouvir Nelson nos botequins. E Mangueira era apenas uma palavra para ele falar em Terra Prometida.
(“…e então voltei pra casa tarde tarde… voltei pra casa e… senti que ia morrer… e não quero, não vou chamar os vizinhos pra me socorrer, porque eles até que queriam que eu morresse pra não incomodar mais eles. Eu não vou incomodar ninguém, pensei. Tava ruim, me deitei, essas coisas todas, e senti com toda a força: é hoje que eu vou morrer. Dei um beijo no violão pendurado na parede e no cavaquinho que eu abraçava, me deitei na cama, parece que eu vou deixar vocês, meus amigos, parece que eu não vou mais incomodar vocês, não vou mais beber com vocês, não vou mais ganhar dinheiro com vocês. Deitei na cama e tive um sonho esquisito, sabe? Sonhei que ia morrer às três horas da manhã, e o relógio despertou às duas e meia.
Continua.)
— Como o senhor o conheceu e como percebeu que ele era especial?
— Um raio cair uma só vez no mesmo lugar é mais do que suficiente. Uma vez só e é muito, é definitivo; pode ser fulminante. O raio se chamava Nelson Cavaquinho: ele foi um raio que caiu na minha juventude lá pelos anos 60… O lugar era eu mesmo. Houve um relâmpago, ou uma iluminação que vinha da palavra musical divina: vinha dele e me atingia em cheio. E virei seu amigo mais novo, passei a acompanhá-lo pelos bares da vida, na Lapa, nos subúrbios, na Zona Sul… É a história de uma conversão, primeiro à boemia, depois a uma vida mais livre, itinerante, de “rei vagabundo”, como falei antes, de “rei sem trono”. Só evoluí da pura racionalidade (não se esqueça que eu era fiscal de rendas) para a poesia da noite, la luce della notte. Abandonei o emprego, na realidade fui demitido, devido às minhas faltas: não se pode servir a dois senhores. O que eu queria — queria e não conseguia — era sair das trevas. E foi só agora, trinta anos depois, ao escrever meu Evangelho segundo Nelson Cavaquinho, que a iluminação se completou e eu percebi que, quando ouvi Nelson pela primeira vez, ele plantou a semente poético-divina em mim. Foi por isso que freqüentei a noite durante mais de trinta anos, o que acabou me levando a freqüentar o AA. Mas na época, estou falando dos anos 60, eu tinha 24 anos, e voltava da Inglaterra com um mestrado da London School of Economics.
— E como foi esse “raio”? O que ouviu Nelson cantando pela primeira vez?
— Tinha saído do trabalho e ia tomar um chope no Amarelinho, na Cinelândia. De repente vi um homem na minha frente; ele segurava um violão e olhava para mim, sem falar nada. Reconheci Nelson, que na época começava a sair nos jornais. Ele deve ter me confundido com alguém, pois depois de ter lhe saudado, ele disse, “Matheus, vem comigo”. Paguei a conta e segui com ele. A partir daí eu passei a me chamar Matheus. (Meu verdadeiro nome não importa.) Fizemos a via-crúcis dos botequins da Lapa. Eu me lembro que fomos primeiro para o Nova Capela, onde eu lhe paguei um jantar; foi quando, se acompanhando ao violão, ele cantou “Juízo final”:
O sol
há de brilhar mais uma vez
A luz
há de chegar aos corações
Do mal
será queimada a semente
O amor
será eterno novamente
É o juízo final
a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
a maldade desaparecer
E o velho boêmio, ou ex-boêmio como ele se classificava, silenciou — estaria emocionado?
— Nelson não viu a maldade desaparecer — concluiu, se recompondo. — Ele mesmo morreu devido à maldade que a vida e a bebida lhe causaram. Mas em todas as suas mais de 400 músicas cantou como ninguém essa história do Bem e do Mal que sempre foi a história cotidiana da humanidade. E Santo Agostinho não disse que cantar é uma forma de falar com Deus?
(Eu disse, é hoje que o Nelson vai embora; parece que desta vez não há recurso nem malandragem, não. E ia vendo o ponteiro subindo, subindo, e eu bolando tanta coisa pra escapar… Tou pensando numa solução, vamos ver se dá certo: quando o ponteiro chegou às cinco para as três, eu me levantei num pulo e atrasei o ponteiro para meia-noite, e disse: Eu não vou desta vez, de maneira nenhuma, não vou.”
Do livro Tira teu sorriso do caminho, de Matheus de Freitas.),
Bairro Peixoto (Rio), set. 2001