O eterno retorno

Conto inédito de Stéphane Chao
Ilustração: Hallina Beltrão
24/03/2016

Depois de ter passado dez anos longe de seu país, Zaratustra quis voltar a sua pátria para instruir seu povo, que insistia em crer na existência do Bem e do Mal. Arraigado na superstição, o povo os representava na forma de gêmeos mitológicos, Ormuzd e Ariman, os quais alguns associavam a um casal de irmão e irmã, gerado pelo Sol.

Apesar de manter-se discreto sobre a vida que levou durante seu tempo de exílio, Zaratustra acreditava ter extraído ensinos preciosos de suas experiências. Queria, assim, mostrar ao povo que o Mal e o Bem eram um só, como Ariman e Ormuzd eram também o mesmo personagem, travestido alternativamente de mulher e de homem.

Zaratustra se pôs a caminhar e, ao chegar na Pérsia, vislumbrou um cemitério suspenso típico de seu país, em que os cadáveres eram devorados pelos urubus. A carne em decomposição era assim preservada de qualquer contato com a terra, considerada sagrada, bem como a água, o ar e o fogo. No entanto, o profeta ficou estarrecido ao constatar que os corpos eram expostos ao sol, profanando a luz, que ele considerava também de origem divina. Aproximou-se então dos agentes funerários e iniciou o sermão. Explicou que a sombra projetada por uma pessoa manifestava seu duplo, que ficava no estado latente, enquanto estava em vida. Mas após sua morte, a sombra poderia encarnar-se, adquirindo uma existência autônoma. Ou melhor, quase autônoma, pois se limitaria em reproduzir os atos passados de seu falecido dono. Além disso, essa cópia, que Zaratustra comparava com um cego sem guia, poderia apenas repetir as ações erradas, funestas, tenebrosas do original. E o profeta explicou para os agentes funerários que o único meio para evitar seu surgimento seria protegendo o cadáver da luz do sol.

E foi assim que começou a predicação de Zaratustra. Seu sucesso foi fulminante: recrutava a cada dia novos fiéis, convertendo até o poderoso rei de Báctria. Sua atividade missionária era tão intensa que parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo. Por isso, alguns acabaram até acreditando que existiam dois Zaratustras.

Em todos os lugares por onde passava, o profeta proclamava incansavelmente o caráter sagrado da luz. E ele proferia mandamentos muitos estritos, chegando a declarar que o ato carnal só poderia ser realizado na escuridão ou pelo menos na penumbra. Consistia, assim, em profanação suprema o ato de copular ao sol de meio-dia. Os pecadores eram, aliás, muito facilmente identificáveis, pois o fruto de suas relações ilícitas era um casal de gêmeos.

E tinha mais: segundo Zaratustra, a humanidade não se libertaria da crença dualista do Bem e do Mal sem uma estrita observância dos ritos. E instituiu orações em duas horas em que não havia sombra: uma ao meio-dia, outra à meia-noite.

Então, certo dia, o profeta chegou à entrada de Samarcanda que, além de ser um dos últimos bastiões da antiga religião, era também uma espécie de Sodoma e Gomorra da Ásia Central, onde se copulava em plena luz do dia, e onde os gêmeos eram sagrados. Ainda hoje, uma seita perpetuaria essas crenças de forma clandestina e perpetuaria orgias acompanhadas por um suplício ritual, geralmente com um estrangeiro de passagem. Apesar de omitir pudicamente sua existência, o povo de Samarcanda tem perfeito conhecimento dessa infâmia, considerada como uma antiga maldição que atinge a cidade.

Assim, diante das portas da cidade, Zaratustra hesitou e se perguntou se não cometia um erro, pois suas ideias eram realmente odiadas ali. Foi então que pensou fazer-se passar por um inimigo do rei de Báctria. Seu pedido de asilo foi aceito com facilidade, pois Samarcanda, apesar de ser súdita desse rei, estava em estado de rebelião latente contra o monarca convertido na nova religião. Sobretudo, Zaratustra beneficiou-se da seguinte circunstância: todos acreditavam que estava na corte desse rei, a dezenas de léguas dali.

No entanto, a notícia de sua presença se difundiu rapidamente em Samarcanda. As mães de casais de gêmeos foram incentivadas a travesti-los para protegê-los contra o furor fanático de Zaratustra, que estava incógnito na cidade. Foi em vão: este tinha uma vista aguda e instou uma mulher a sacrificar um dos gêmeos. E como ela não reagia, agarrou um deles para decapitá-lo. Foi então que surgiu um mensageiro do rei num cavalo rápido capaz de percorrer distâncias consideráveis num tempo muito curto, graças a um sistema muito eficiente de revezamento de cavalos, que antecipava o do império aquemênida. Ficou em frente às portas da cidade, onde sua sombra se projetava, e informou que Zaratustra tinha caído em desgraça.

O rei tinha, com efeito, levado a sério os boatos, afirmando que o profeta fora eunuco no harém de um pequeno rei da Caxemira, durante seu exílio de dez anos. Dessa experiência é que teria extraído o ensinamento segundo o qual o feminino e o masculino eram um só, como Ormuzd e Ariman, o Bem e o Mal, a luz do meio-dia e as trevas da meia-noite.

Seja como for, o rei acreditou ser possível dar outra dimensão aos laços de amizade que os uniam; a fuga foi a reação de Zaratustra à proposta. O mensageiro era assim encarregado de informar que todas as cidades eram obrigadas a entregá-lo, caso este viesse a pedir-lhes asilo.

O povo de Samarcanda não queria obedecer às ordens do rei de Báctria e deixou o mensageiro ir embora em seu cavalo veloz, sem falar nada. Porém, perguntou-se como o profeta podia ter chegado antes do cavaleiro. Alguns se lembraram, assim, da suspeita de que existiriam dois Zaratustras e, nesse caso, ele era intocável em virtude da sua religião que cultuava os gêmeos. Mas essas pessoas não foram escutadas. Na verdade, para a maioria do povo, isso não tinha muita importância, já que o estrangeiro tentara, de fato, matar um gêmeo. Zaratustra foi então esfolado vivo e sua carne desnuda foi exposta ao sol do meio-dia.

Durante sua agonia, o profeta percebeu, assustado, que ele morreria exposto à luz do dia. E durante as horas que antecederam sua morte, se arrependeu amargamente de ter entrado em Samarcanda, remoendo seu erro em seu foro interior. Num último sopro de vida, conseguiu revelar sua mensagem:

A luz da vida irradia apenas uma vez,
por isso, ela transcende o Bem e o Mal.
No entanto, quem morre com arrependimentos
é fadado a reviver sua vida,
experimentando perpetualmente os mesmos erros.

Antes de morrer, lançou um anátema contra a cidade, a amaldiçoando até o fim dos tempos. Essa cena impressionou muito o povo, de tal forma que este acabou levando a sério aqueles que desde o início consideravam esse sacrifício um crime contra a religião gemelar. E alguns dias depois, enquanto a polícia real estava ainda procurando Zaratustra, a sombra de um estrangeiro se desenhou nas portas da cidade. E depois de ter hesitado, o profeta do eterno retorno pediu asilo em Samarcanda, a cidade onde os gêmeos eram sagrados.

Stéphane Chao

Nasceu em La Rochelle (França), em 1974. Foi diretor do Escritório do Livro na Embaixada da França no Brasil entre 1999 e 2003. Em 2007, idealizou o prêmio Cunhambebe de literatura estrangeira no Brasil. Organizou Antologia pan-americana e o Atlas universal do conto, com Alberto Mussa, ambos publicados pela Record.

Rascunho