Leio os poetas. Todos eles. Quando termino, volto ao mesmo ato: ler os poetas. Carrego o peso a mim imposto pelo meu avô materno, desde que ele roubou — das mãos do padre na pia batismal — a água; e aspergindo-a sobre a minha cabeça impingiu-me de um só golpe o nome e a sorte: vai se chamar Tristão. Será poeta ou mais nada.
Acorrentei-me à leitura ininterrupta e exaustiva dos poetas na esperança de cumprir o vaticínio do meu avô, contudo uma voz soprada do outro lado, ouvida por todos os parentes, se contrapôs à dele e até agora parece ter falado mais alto. Eu seria tudo, menos poeta. Beiro os cinqüenta anos, uma calvície pronunciada, renitente, desbasta meus cabelos com a mesma firmeza de um jardineiro que arranca as ervas daninhas da grama recém-plantada. Eu os encontro espalhados nos lençóis brancos, pelo chão do quarto, grudados às toalhas úmidas, estirados sobre meu corpo a parecer riscos feitos com lápis de ponta fina. Visita-me pois a calvície, nunca um verso. Jamais um deles veio às minhas mãos, brincou entre meus dedos, desequilibrou-se e me caiu numa vertigem na folha branca do papel.
Devo ser pálido, de uma cor semelhante à dos bonecos de cera, não aquela comum aos mortos. Não chegaria a tanto. Percebo-me surrupiando, para compor minha imagem, características de determinados poetas exangues, magros, tísicos, fantasmagóricos. O roubo em nada me favorece e com o tempo passou-me para o caráter o esmaecido da pele, como se a pusilanimidade fosse o meu invólucro, a carapaça que me defende do sentimento de culpa pela ausência das ações. Não sou eu aquele que protela, é a casca, ela, a armadura muito colada ao corpo, camisa-de-força a me manter de pés e mãos atados.
Acabo de chegar do enterro do meu irmão nascido cinco anos depois de mim, Laerte. Chamava-se Laerte e pôde ser o que resolveu ser; o avô das predestinações atadas aos nomes morrera um pouco antes de esse neto vir ao mundo.
Fomos ao sepultamento, eu e os poetas, não todos, dois ou três, até quatro, os que me acompanham por aonde quer que eu vá. As pessoas naquele velório deveriam estar inconsoláveis; não tanto pela morte do meu irmão, se bem que gostassem dele, mas por um fato incompreensível, fora dos padrões da normalidade, incompatível com a bondade e justiça divinas: por que ele e não eu? Não fazia sentido. Também acho. Deus poderia ter feito uma melhor escolha; se eu tivesse ajudado é bem verdade. Bastaria um grito e o corpo do meu irmão teria subido na calçada, buscando a proteção do muro, antes que o carro o pegasse rente ao meio-fio. Recostado no espaldar da cadeira de balanço do alpendre, senti parte da visão corromper-se em fragmentos metálicos e meus ouvidos se encheram de sons tonitruantes, barulho gordo, pesado, como que saídos das vísceras de algum monstro. Estava a terminar a leitura de um verso, pouco, muito pouco para se completar a última palavra. Quis levantar a cabeça, pôr os olhos na altura adequada à captação do que viria a ser os veios metálicos, pôr os ouvidos em total disponibilidade à voz absurdamente rotunda, e meu pescoço sustentou-me a cabeça pendida a finalizar o verso.
Cheguei aos pés do meu irmão, deitei-lhe a cabeça em meu colo e súbito um vento atravessou-me as mãos vazias; dei pela falta dele, onde está, onde teria se metido? Alucinado procurei por ele, o poeta. Percebi-o prisioneiro das mãos de Laerte que o estrangulava. Comecei a lutar para salvar meu poeta, arrancá-lo daquelas garras sujas de terra, borradas de sangue e só depois de vários puxões, gritos, pragas, é que consegui. Fechei-o de encontro ao peito, cerrei os olhos em agradecimento, avaliei com extremo cuidado os danos infligidos aos versos e pude, finalmente, aliviado, me dedicar ao bom Laerte. Todos hão de convir, não tive culpa. Foi ele, o poeta. Conseguira como? Atracar-se assim, daquele jeito, com o corpo quebrado do outro. Quem começara? Eram desafetos, os dois? Eu o havia colocado perto de mim ao me ajoelhar e de repente lá estava ele se engalfinhando. Ele e meu irmão.
Ando impressionado, suscetível, e posso mesmo tornar-me uma ameaça para todos eles, os poetas. Aconteceu, uma única vez, de a membrana esbranquiçada — que cola meus lábios — ceder; eles se despregaram um do outro e pela boca aberta, na entrada desse túnel, enxergou-se a voz precipitando-se na escuridão, explodindo na frente dos olhos amorosos de Heloísa, a sobrinha mais velha, a preferida, a de rosto bem acabado, tão parecido com as sutilezas das rimas de um poema perfeito: não fui eu, minha pequena, o culpado. Foi ele, ninguém admite, mas foi mesmo ele, Álvaro de Campos. A mãe chega veloz, como que por encanto materializa-se. Teria o dom da ubiqüidade? Retira a filha das vistas do estranho tio, some com ela, protege-a, esconde-a em qualquer lugar, longe de mim, o urubu, vestido sempre de preto, longe do negror da folgada jaqueta onde guardo biscoitos e também os poetas.
Preciso, feito Albertina, a cautelosa viúva do meu irmão, proteger os meus, esconder Álvaro de Campos, jamais delatá-lo, não deixar que meus arroubos chamem a atenção sobre ele, porque daí a me exigirem um retrato falado é um pulo. Além disso, há um terrível agravante, ele não é um só, mas uma quadrilha. São vários. Desde a morte de Laerte eu o escondi nas costas da jaqueta, fiz uma abertura no forro acetinado, joguei-o lá dentro e depois costurei a boca do esconderijo com linha forte, pontos bem arrematados. Recostar-me na cadeira de balanço para ler tornou-se um suplício; o livro me dói, o poeta esmurra minha coluna. Ademais, não foi uma medida inteligente. De que maneira tê-los sob os meus olhos? Muito penoso é, para mim, abster-me de tantos poetas, já que da cabeça de Álvaro de Campos brotam outros, e mais outros, fluem, espocam mais facilmente do que Atena da fronte de Zeus.
O último a nascer chamou-se Fernando Pessoa, dos filhos, o mais embotado, de acordo com Tristão nosso poeta aqui presente — dizia, em vida, o morto à dúzia e meia de amigos convidados à ceia natalina; falava erguendo-me um brinde, acompanhado da elegância de um sorriso curto que se irradiava apenas para os cantos dos lábios e morria de morte natural, antes que a boca se desse conta. Albertina, a onipresente, ria; os olhos derramados sobre o senso de humor do marido e eu encrespava as asas de urubu como se as possuísse de fato. O fato é que necessito o quanto antes salvar Álvaro de Campos. Poderia, para isso, ouvir com mais vagar meus anseios de quietude, aliá-los ao bom uso das minhas peregrinações pelo vastíssimo campo das ciências exatas e construir alguma coisa, projetar um esconderijo, aquartelar-me feito a precavida mãe de Heloísa.
Diria que hoje testei meu invento; um invólucro que me esconde, protege, camufla, a mim e aos poetas, uma espécie rara de escafandro, de cujo ventre, mais precisamente preso ao umbigo, sai um tentáculo com a extremidade aberta em leque. Este leque, posto em sentido horizontal e elevado ao meu campo de visão, se inclinará, se abrirá em dedos interligados por membranas, igual a uma imensa pata de ganso espalmada. Servirá o leque aberto de base ao livro; sob o meu comando esse arremedo de mão exibirá o poeta escolhido e os dedos a página desejada.
Informo a quem interessar possa que o tentáculo umbilical projetado para locomover-se de acordo com minhas vontades mostrou-se em parte satisfatório; uma vez que consigo ler os poetas assim expostos iguais a partituras. Os dedos, talvez, por não guardarem em seus códigos a memória das membranas, por não reconhecerem — como pertencentes — tessituras fora do padrão, falharam no objetivo para o qual foram projetados: virar as páginas. Preso à repetição é quase certo que eu me desconstrua, a mim e também aos poetas. O escafandro, descubro, acaba de travar-me a saída, o que me é totalmente irrelevante.
— Posso pedir-lhe, a você distinto leitor, para virar a página?