Este conto não existe. Ele foi apagado, rasurado da memória, esquecido junto das ações que as palavras deveriam dizer. Simplesmente ruiu, escondido em algum lugar de minha massa encefálica, atrás de algum giro cerebral, no silêncio de alguma sinapse suspensa, interrompida, desfeita. Está recalcado, talvez, ou quem sabe somente espalhado, partícipe de memórias alheias, memórias nas quais sou mera personagem, personagem provavelmente inadequada, inconveniente, de fala mole, sem conseguir empunhar a insolência que promete, as pernas se embaraçando para andar. Eu: uma mulher espalhada e em breve desimportante em noites antigas de outras pessoas. Este conto foi dissolvido em álcool.
Para onde, afinal de contas, vai a memória que o destilado apaga? Sobra dela alguma coisa sequer? Onde estão meus gestos daquele começo de noite? Um bloco de carnaval, o meu filho, o pai dele me dizendo hoje é seu dia. Pois quando acordei e me vi deitada na cama do menino, ao lado dele, vestida e suja, e tentei revisitar o que aconteceu antes de dormirmos, não me lembrava de nada. Ele, de pijama, o cheiro de sabonete na pele macia, no banheiro os rastros do banho, a toalha úmida largada no chão, as roupinhas; na cozinha, resquícios da janta, o prato largado na mesa, com as sobras que dessa vez não devo ter insistido para ele comer. Que parte minha cuidou dele e descuidou de mim? A respiração calma do peito do meu filho que subia e descia, a ressaca, o coração dele bem guardado lá dentro.
As tantas vezes que cheguei de carro, quando morava na casa da minha tia, bem antes da Lei Seca. Era longe da faculdade a casa dela, era longe das festas, do bar, da razão, e pela manhã eu precisava fazer o exercício de percorrer mentalmente o corpo, que não dói, que está inteiro, e olhar em cima da mesinha e com alívio encontrar as chaves, a carteira, não o celular, que ainda não existia, e me perguntar a cada vez quem é que havia dirigido, se minha consciência não estava. Quem é que havia carregado o meu corpo para aquela casa, para aquela cama, de volta para aquela vida que o despertador vinha toda manhã anunciar.
Nunca mais vou beber era uma decisão diária, e a ressaca, resultado muito mais da exposição que do álcool em si, muito mais moral que física (o coração esmurrando o tórax era as duas juntas). O que eu fiz? O que eu sou quando não lembro o que falei, o que fiz, o que fizeram comigo?
E eu chorava. Me diziam que eu chorava, em um determinado momento da noite, chorava convulsivamente, sem que ninguém conseguisse entender, a Virgínia de novo bebeu demais, ela quebrou pratos (um estilhaço de memória aqui, meu braço lançando, gargalhadas), e depois a tontura, o mundo girando, girando, girando (o barulho do prato quebrando no chão, talvez, mas aí talvez já seja invenção, mesmo as memórias verdadeiras, para serem nossas, precisam ser inventadas). As plantas da decoração do casamento explodindo dentro da minha mão enquanto a noite ia explodindo dentro da minha cabeça.
E os degraus que a memória consegue galgar com o álcool, só com ele. Encontro alguém numa festa, a pessoa me cumprimenta, respondo por educação, sem fazer a menor ideia de quem seja. Passados dois drinks: você! Como se a bêbada só se comunicasse com a bêbada, como se a sóbria e a bêbada fossem estranhas, habitassem mundos insuportavelmente incomunicáveis.
Mas às vezes a subida é tão para o alto que nem o álcool faz escada. Eu já tinha bebido sei lá quantos copos de cerveja quando chegou aquele homem, aquele senhor, e veio em minha direção, e me olhando pronunciou meu nome, Virgínia?, como se estivesse há anos à espera daquele exato instante. Vasculhei, vasculhei, não encontrei aquele rosto em lugar nenhum do meu passado, você deve estar me confundindo. Mas você não é a Virgínia? Pois era a Virgínia que era eu que tinha, uma década e pouco atrás, com menos de vinte, ido à casa dele com um amigo da escola. Havia algo de muito terrível em você, Virgínia. Disso eu lembro, lembro exatamente dele dizer isso pra mim, ele que era pai de amigo de escola e nos recebeu bando de adolescentes em casa e você tinha um isqueiro na mão e colocou fogo no tapete, no tapete da minha casa.
Eu?
Pois havia fotos, havia a memória dele, intacta, seria impossível esquecer daquela garota diabólica queimando um tapete que até hoje está queimado.
Como se arrepender do que não se lembra? Como me desculpar se a habitante daquele passado era e não era eu?
Não existe, nada disso existe, no entanto as palavras, o fogo, o corpo.
Quando acordei era dia alto, um dia e um lugar desconhecido. Desconhecida a noite que me levara até ali, desconhecido o homem deitado ao meu lado. Minha roupa, a cabeça, a dor, a culpa (a sensação), a saia, a blusa (de sexo), colocar logo o sapato (no corpo), aqui minha bolsa, essa pessoa, essa pessoa ao meu lado quem é, ele acorda e me diz oi e me faz carinho e se aproxima mais e já levantei com repulsa e preciso ir e eu deixei? Eu deixei? Quem é que deixou eu me deitar com essa pessoa que eu nunca vi, de quem não sei nem o nome? Qual o nome do que ele fez, se alguém em mim deu permissão?
Saí sem perguntar o nome, o nome, eu sabia o endereço do hotel, estávamos em Florianópolis para o ano-novo e quando cheguei meu pai e minha irmã não sabiam se me matavam ou abraçavam, estavam prestes a chamar a polícia.
Minha amiga disse que contei o segredo dela, o segredo que ela me confiou.
Virgínia faca. Virgínia que escorre pelo ralo. Nunca mais, nunca mais essas que não se encontram, eu e eu. É pior assim, quando é no outro. A dor de não se lembrar da dor.
Essas lembranças, como este conto, já não existem. Nunca existiram. A vida em estado puro, sem depois, e a pergunta onde, onde, onde estarão todas essas, a dança, o verbo, o caminho, onde estará, talvez num recinto, senão dentro de mim, do mundo, um lugar feito de estilhaços, talvez no inferno — talvez seja esse o significado de inferno. Um lugar onde exatamente agora a outra de mim festeja, chora, gargalha, trepa, dança, abraçada com tudo o que sou.
Mas não sei. Eu não me lembro de nada.