O devedor

Conto de Ernani Buchmann
Ilustração: Nina
01/09/2005

Escapei de um ainda há pouco. Eu vinha chegando a pé no escritório, procurando com o rabo do olho, quando vi o cara. Em pé, atrás da árvore, do outro lado da rua. Fumando. Dei meia volta, acho que não me viu. Fui tomar café na Boca, aproveitei para jogar na loteria. Pena que não uso mais sapatos de engraxar. Se fosse engraxar os sapatos, filaria o jornal, leria o esporte, os crimes. Poderia abrir na página dos títulos protestados e mostrar ao engraxate: “Está vendo este cara aqui? Está falando com ele”. O sujeito ficaria pasmo, eu, orgulhoso.

Mas tênis não se engraxa. Tomei o café, sentei num banco da praça Osório. Fumei um cigarro também, homenagem ao cobrador. Pela hora do almoço acho que posso entrar no escritório. Credor também tem fome, graças a Deus. E este que está lá não parece aquele faquir da semana passada. O homem passou seis horas em pé na frente do prédio. Só pude sair de noite. A sorte é que estava chovendo, usei chapéu, os óculos de aro redondo. Não sei por que óculos redondos dão uma cara de babaca na gente que ninguém pergunta se você é você. Não, com aquele ar de bobão não teria condições de fazer dívidas, fugir de credores.

Ontem foram três: um agiota, o filho do senhorio e um oficial de justiça. Este de hoje deve ser daquela empresa de cobrança — os bancos hoje em dia estão mandando terceiros para cobrar. Nos primeiros tempos era pelo telefone, até cortarem a linha por falta de pagamento. Agora, ao vivo e em cores.

Quando é oficial de justiça, não tem problema. Assino a notificação e pronto. Eles que tratem de me executar. No sentido jurídico, claro. Os agiotas é que são problema: querem me executar no sentido literal. Os dois para quem devo exigem a mesma coisa. Ou pago ou não vou mais ver meus filhos. O fato de não ter filhos não resolve. Pensei em marcar reunião com eles, os dois sentados na minha frente, lá no escritório. “Muito bem, como não tenho dinheiro para pagar, vocês escolham quem vai fazer o serviço”. Talvez briguem entre si, esqueçam de mim. Ou não: a vontade de me transformar em presunto deve prevalecer.

Ando com saudades daqueles brutamontes do busca e apreensão. Com eles não tinha essa coisa de presunto. Cadê o bem, perguntavam. Eu dizia. Foi assim com o carro. Não era novo, mas era meu. Paguei quase duas vezes por ele. Quitei o primeiro financiamento há uns cinco anos. Depois tive que financiar o carrinho de novo quando o juiz mandou pagar em 72 horas a pensão da minha ex-mulher. Quem deve pensão sempre corre o risco de ficar uns dias em cana. Financiei o carro e paguei a sem-vergonha. Ao banco, paguei quase metade das prestações, aí desisti.

Os computadores do escritório também foram levados numa busca e apreensão, mas o cara era educado. Me chamou de senhor, limpou os pés quando entrou, não fez sujeira no escritório. Era melhor que o da televisão. Esse arrebentou a tampa de madeira da estante só porque o fio da televisão entrava por um buraco no móvel antes de chegar na tomada. Um porco, aquele busca e apreensão.

O que mais me irrita é o filho do senhorio lá de casa. Ele faz um jeito com o canto da boca, parece que está chupando o dente cada vez que não acredita no que eu digo. Se falo que não estou recebendo em dia, lá vem aquela boca e o barulhinho. Semana que vem vamos ver, eu digo. Barulhinho. Meu irmão vai mandar um numerário até o final do mês, assim que colher a soja. Barulhinho. Não vi o bilhete embaixo da porta. Barulhinho.

Se eu tivesse dinheiro contrataria os capangas dos agiotas para executar o filho do senhorio. Assim: “Faz aquele barulhinho com a boca, faz”. E tome porrada.

Eu era um cara direito, pagava as contas, tinha meus clientes. Aí começou. Foi minha ex-mulher. Eu não podia ter filhos, ela foi se irritando. Ameaçava engravidar de outro. Um dia, mandei ela passear. A vagabunda foi e logo com quem: com o Jéfo, meu amigo, meu melhor cliente. Perdi a mulher, o amigo, o cliente. Mas isso foi só depois. Quando ela apareceu grávida, disse que tinha sido milagre. Milagre? Sei. Escarafunchei, nada. A barriga crescendo. Até que um dia eu estava no escritório do Jéfo pegando as notas fiscais pra fazer o balancete do mês quando ouvi a telefonista passar uma ligação. “Marliza, pro senhor”. Marliza só tem uma no mundo. E eu era casado com ela. Foi quando mandei todos passear. Ele é casado, quem manda a Marliza se meter com homem casado? Mandei a mulher dele também para o mesmo lugar.

Aí fui perdendo as coisas. Parei de procurar cliente, fiquei sem nenhum. Deixei de pagar as contas, a pensão, tudo. Mandei os dois funcionários embora, nem paguei os direitos. Estou vivendo do salário-desemprego, vamos ver no que vai dar. O juiz do divórcio vai analisar a suspensão do pagamento da pensão. Estado de insolvência. O Jéfo que pague, o canalha.

Fico lá no escritório, todo dia, refazendo balanços. Pego um balanço da empresa do Jéfo, de 2001, por exemplo, e mudo tudo. Tiro notas, invento despesas, acrescento lucro. Até recibo e cópia de nota fria eu contabilizo. Tudo contrário às normas contábeis. Então faço uma carta de retificação de balanço pra Receita Federal e mando o catatau para eles. O Jéfo que se explique.

Até o final do mês termino o balanço de 2003, o último que fiz antes de descobrir o caso dos dois. Depois pego de novo os mais antigos para adulterar outra vez. “Prezados Senhores, em anexo tenho a satisfação de encaminhar a V. Sas. a retificação da retificação do balanço referente ao ano de 2000 da empresa Jefferson Calaminho Materiais de Escritório Ltda”. O Jéfo nunca mais vai se livrar da fiscalização.

O melhor é quando penso na Marliza.  Ela não sabe que ainda tenho aqui no escritório um monte de folhas timbradas da empresa do Jéfo, assinadas por ele, em branco, para as propostas que eu montava quando a firma entrava em licitação do governo. Vai enlouquecer com a carta. “Cara Marliza, tenho certeza de que o bastardinho é filho do corno do seu ex-marido. Vá procurar outro trouxa para pagar suas contas. Não me procure mais. Jéfo”. Bastardinho. Ela vai ter outro bastardinho quando receber a carta.

Se a polícia me procurar dizendo que tem queixa contra mim, nego. Nunca escrevi carta contra a honra de ninguém. Depois, bastardinho não tem honra, era só o que faltava. Essa gente não respeita a dignidade de um homem cumpridor de seus deveres.

Ernani Buchmann

É escritor e publicitário. É autor de A camisa de ouro, O ponta perna-de-pau, Quando o futebol andava de trem, Onde me doem os ossos e Heróis da liberdade, entre outros.

Rascunho