O crânio de Castelao (2)

Leia o capítulo 2 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/02/2013

Capítulo 2

A manhã de 14 de maio escorria pela janela incerta da pensão, em sabres de luz e pó. O coro de buzinas engrossava, anunciando o engarrafamento de trânsito matinal nas ruas do Porto. P. distendeu os músculos e o cérebro, um estranho torpor toldava-lhe o raciocínio. Fechou os olhos, estancando as imagens fugidias de asfalto, pontes, árvores, casas, postes, correndo em direcção contrária. A viagem de Compostela ao Porto fora uma tortura de várias horas, os dedos crispados no volante, os olhos cravados na estrada e nos camiões em abalroagem eminente. O mecânico com ar de intensivista invadira a goela do capô, empunhara dois cabos metálicos e ressuscitara o decrépito Seat Marbella da tia Sara com dois fortes golpes de desfibrilador, ou lá que fosse. O motor tossicara, engasgara-se repetidamente, no ar pairava um intenso cheiro a gasolina e a fumo de escape, galinhas e gatos espantaram-se da bagageira da carripana. Está como novo, gritara o mecânico, limpando as mãos a um novelo de desperdício. P. olhara para o velho carro tremelgando ao ralenti, e sorrira, sem saber de quê. Fizera-se à estrada com ar decidido, esvoaçando um aceno de mão para a tia Sara, que limpava uma lágrima teimosa no canto do avental, fruto de alguma cebola picada na cova da mão, ou ataque agudo de saudades de sobrinho. Ao tentar acertar a folga da direção do bólide na trajetória da primeira curva, assaltou-o a odiosa dúvida: não seria a lágrima da tia Sara derramada mais pela perda iminente do Marbella nas ribanceiras minhotas? Sacudira este pensamento, um arrepio percorrera-lhe o corpo, eriçando-lhe os cabelos no cachaço.

Perguntarás-te por que te chamei, e por que marcamos aqui…

O rosto do professor F. reflectia-se no pára-brisas, um baixo relevo translúcido interpondo-se no seu campo de visão sobre a estrada. Os seus lábios finos, imóveis, coando as palavras, a fenda dos olhos contida pelo sapo das pálpebras, o cabelo branco ralo penteado das dezenas para as unidades, ou de estibordo para bombordo, em linguagem mais náutica. O velho Professor F. Catedrático de Patologia Clínica reivindicava na sua árvore genealógica um enxerto distante em cepa do navegador Gonçalves Zarco, e a paleta capilar decorando-lhe a calote craniana tinha mais pedegree assim descrita.

Tu estavas fazendo uma tese de doutoramento sobre um osso na cabeça, não é?

Rodou com raiva o volante, esmagando uma ratazana gorda que cruzava a estrada. O seu orientador de tese reduzia à mais ínfima expressão o projecto de investigação, As asas do esfenóide na identificação de indivíduos e a sua correlação com o Quociente Intelectual, como se o observasse ao fundo de um cano de espingarda, numa aula de balística. Como era possível ele encher assim a boca de banalidades sobre o seu trabalho? O tom displicente, perigosamente distante e básico, em que o professor F. se pronunciara sobre o projecto de tese que era suposto orientar, transmitiam-lhe uma sensação de alarme, medo. O distanciamento prudente cheirava a escaler arriado antes do naufrágio, mais uma vez a linguagem náutica era vestimenta adequada aos maneirismos intelectuais do velho professor. Antevia o conclave adunco e negro de catedráticos envoltos em togas sombrias, um bando de abutres disputando-lhe o cadáver científico anunciado, dilacerando-lhe o estudo em golpes impiedosos, o púlpito do exame semelhando um cadafalso. E, como qualquer bando de adivinhos medievos, vaticinavam-lhe o chumbo, lendo o futuro nas suas entranhas expostas em pleno interrogatório. Este sonho recorrente, premonitório, animava-se no reflexo do vidro do carro, enquanto atravessava o rio Minho, entre Tui e Valença.

Os faróis do Marbella cavavam um túnel de luz na noite, cruzou Viana sem se deter, cachos de luz difusa na berma da estrada anunciavam outras povoações irreconhecíveis. Na ponte de Fão divisou os vultos dos pescadores de lampreia perfilados no lodo do rio, postados à espera com tridentes e pentes de aço na ponta das varas. De madrugada, os vermes fêmea subiriam a corrente para a desova e seriam apunhalados pelos homens da lama, de olhos afiados no escuro.

Chegara exausto ao Porto. Uma cidade fantasma, envolta em reposteiros de humidades, acendendo cones de nevoeiro debaixo dos candeeiros nas ruas. Feitos de luz e de sombra, os faunos nocturnos deslizavam nas esquinas, escondendo e desvendando silicones em longos decotes. Batidos pelo néon hesitante dos reclames, os prostitutos passeiam de um lado para o outro como feras enjauladas, comendo os carros com os olhos, as prostitutas enciumadas cruzam os braços, fartas da concorrência, os proxenetas controlam a zona a meia distância, os homens do lixo parecem deslocados no meio do putedo, o carro patrulha desliza silencioso como se lhe tivesse desmaiado a gasolina no depósito.

— Amigo, onde posso encontrar um hotel?

O sem abrigo agasalhou um sorriso cariado. Fungou nas costas da mão, apontou a meia lua da unha cheia de esterco para o fundo da rua e gargarejou uma resposta enrolada em saliva:

— Ali. Destorces à direita e manjas logo, na fundega da rua.

P. escorreu na rua em frente de montras cegas com codornizes a boiar em molho espesso, evitou os sacos negros de lixo tumefactos babando escorrências fétidas e rastos de couves podres, seguiu em frente junto das lojas desviando o olhar dos manequins decapitados, dos televisores encastelados como aquários opacos, da cascata de inutilidades da loja dos trezentos, do stand com o automóvel a girar indolente revolvendo o cartaz da mulher nua espalhada no tejadilho, da ervanária com uma descomunal raiz de ginseng dentro de um frasco de vidro, atravessou uma zona de penumbra entre portais sombrios, enfrentou o letreiro, soletrou as palavras desdentadas, Pensão Universal, é aqui, pensou. Deixou cair uma, duas vezes a aldraba de latão escuro em forma de punho fechado, o estampido de metal ecoou como dois tiros furando a noite. Memorablia corporea, murmurou, sentindo o frio cadavérico do metal. A porta suspirou nos gonzos, P. venceu o hálito grosso exalado do vestíbulo, e penetrou na pensão.

Dormira um sono pesado, compulsivo. Como se toda aquela história lhe pesasse uma tonelada no meio da testa. O ruído infernal do trânsito fenestrou-lhe a consciência, as recordações partiram como pássaros assustados. Barbeou-se contra o espelho riscado, tomou um chuveiro rápido, vestiu-se com a pressa lenta de quem toma decisões em andamento. Sentou-se na cama, abriu a pasta retirou o computador, o telefone celular, a agenda electrónica, as credenciais de investigador universitário, a câmara digital. Que fazer com esta instrumentalina espionnica, ruminou, registando o neologismo etimológico acabado de inventar, este latim em pó dá-me cabo dos nervos…

Saiu para a rua ajeitando o nó da gravata. Sentia-se um condenado à forca, com excesso de pescoço para o tamanho da corda. Alargou o colarinho com o dedo, engolindo em seco, a maldita sensação de asfixia continuava lá, para baixo e para cima.

Recordou o programa para o dia: encontro com o Professor Sanguedo Sobrinho, no café Majestic, nove horas; Entrevista com a doutora Taviana Viterbo, no Instituto de Ciências Bio-Médicas, onze horas; almoço às treze, na Abadia, com o doutor Lemos Rato; entrevista com o Professor Josias da Mota, no Instituto de Medicina Legal, às quinze; às dezoito, encontro no cemitério do Prado do Repouso com o coveiro Custódio.

Entrou na rua Santa Catarina, deixando ao largo a longa centopéia de carros, as fumarolas dos escapes e o estridor irritante das buzinas. Respirou fundo, apreciando a rua estreita, os prédios encimados por estatuetas várias, como se penetrasse num museu invertido. Um grupo de ciganos tocava um paso doble em trompete com amplificador e colunas transportadas em carrinho de mão, os vendedores de arte de alicate sentados de pernas cruzadas sobre panos negros, uma mulher de olhos vazios esticando migalhas aos pombos, os reformados decorando os bancos, olhando o infinito, o pedinte com três crianças lazarentas e letreiro “temos fome” espalhados no chão, dois surdos mudos conversando em linguagem gestual, o homem estátua de alabastro imóvel em cima de um caixote, o cego de óculos fumados e sorriso riscado na boca espremendo da concertina uma música ondulada, o velho seco de óculos vidro de garrafa pedalando em câmara lenta na trotinete, o par de namorados em linguado contínuo, a nuvem de japoneses em bicos de pés e de câmara em riste, o homem que plastificava todos os documentos em três minutos esperando os clientes, o cauteleiro anunciando a taluda, afiando o pregão na concha da mão.

P. espremeu-se contra a multidão, alheio a tudo o que o rodeava. No meio da confusão, um encosto, alguém caía à sua frente, uma mulher rolava no chão. Virou-se, tentando erguê-la, sentiu um esticão, a princípio não percebeu, depois viu a sua pasta voar nas mãos de um estafeta, esgalgado em corrida desenfreada, enquanto a multidão se fechava como lama movediça. A mulher tombada desaparecera também, P. gritou: ladrões, agarra! O mar de gente não se apiedou da sua aflição, continuando denso e viscoso, tentou furar pelo meio da multidão, perseguir os patifes e recuperar a pasta, quando conseguiu cavar um túnel na massa de braços e pernas já os bandidos iam longe.

Entrou no café Majestic ainda com as pernas a tremer. Voara com a pasta toda a instrumentalina espionnica, estava nu, despojado, entregue apenas ao seu instinto e bom senso. Sorriu, um estranho alívio preenchia-o, como se um balão esvaziasse lentamente no peito.

O Professor Sanguedo Sobrinho era um velho encarquilhado babujando uma meia de leite aos cantos da boca. Um gomo de torrada tremia-lhe entre os dedos, tentando acertar no orifício bucal. P. olhou em volta, apreciando o velho café de paredes forradas a madeira com espelhos encastoados, onde se reflectia a luz velada dos lustres. Concentrou o olhar na coxia onde se acantonava o Professor, aproximou-se, dobrou um cumprimento venioso e anunciou-se:

— Excelência, sou o tal investigador galego que lhe telefonou.

— Sente-se.

O gesto curto, de quem está habituado a mandar. Uma salva de perdigotos e pingos de leite, de quem já teve mais dentes. P. obedeceu, entrando directo no miolo do assunto.

— Estou a elaborar uma tese de doutoramento. O estudo do crânio de celebridades. Não vou maçá-lo com pormenores. Estudos de biomassa, ressonância positrónica, algoritmos, aquelas pimpineiras a que recorremos para demonstrar os postulados, sabe como é.

— Estou farto de saber.

Aquela frase soou-lhe rancorosa. Adiante. Prossigamos.

— É um grande aborrecimento, depois de uma trabalheira destas, descobrir que alguém se adiantou, e publicará antecipadamente um estudo semelhante, ou com traços e pontos de coincidência intoleráveis.

— Tudo é possível, nesta selva.

Frase sublinhada com murro na mesa, entornando o café com leite. Menos hostil, mais solidário.

— Soou-me haver aqui, na Academia do Porto, alguém a investigar em segredo nesta área. Tenho urgência em contactar esse grupo, discutir estratégias para não colidirmos e não prejudicarmos os projectos. Seria muito grave uma acusação de plágio, para um ou outro lado.

— Estou a ver.

Frase lapidar, emitida em entoação de quem nada enxerga.

— Sabe quem são esses investigadores?

Silêncio, septado por ruído de gengivas chuchando na placa. O jubilado de Psiquiatria Forense parecia tomar o peso dos argumentos, indeciso sobre o crédito a dar a um galeguista. Alguns segundos pareceram horas, o tempo deforma-se na ansiedade da espera, eis aqui um bom projecto para uma tese de doutoramento, pensou P.

— Olhe, você parece um tipo sério. Talvez mereça ajuda. Divulgar um meio segredo não é grave, mais dia menos dia, tudo se sabe. Quem anda enfarinhado em assuntos parecidos com o seu não é um, mas sim três grupos de investigadores. O Josias da Mota, esse ranhoso necrofílico é um deles. Outra é a Taviana Viterbo, aquela emproada. E ainda há o Lemos Rato, esse era capaz de roubar a caixa de esmolas da igreja, quanto mais o trabalho de um concorrente.

Bonito. Três dos próximos entrevistados estavam atolados até ao pescoço no assunto. A coisa prometia. P. preparou o estoque final, olhando distraído para os frescos do tecto do café:

— Sabe alguma coisa sobre memorablia corpórea ?

A meia torrada traiu o rumo da conversa, asilando-se na garganta do Professor Sanguedo Sobrinho, obstruindo-lhe a traquéia, mais precisamente no mecanismo de oclusão da valva da epiglote sobre a glote. O silvo de asfixia, a tez cianótica, os movimentos tónico-clónicos dos membros superiores remando em seco na atmosfera, todos estes sinais semióticos recolhidos pelo golpe do olhar asseguraram a P. o quadro clínico de asfixia por corpo estranho nas vias aéreas superioras. Deixando de lado os processos académicos, enfiou uma patada nas costas do velho Professor, que cuspiu em uníssono placa e torrada, recuperando o ar e as cores. Depois de quatro tosses e três fungadelas enchendo os pulmões mirrados, o professor Sanguedo Sobrinho recuperou a pose e a dentadura, encastoando-a na boca murcha.

— Desculpe. Dizia o quê?

Memorablia corpórea.

— Não conheço. O que é?

— Esqueça. Uma latinice em pó, apenas.

— Ah, estou a ver.

O pior cego é aquele que se anuncia vidente, pensou P.

***

— Sente-se.

P. obedeceu. O gabinete da professora Taviana Viterbo era pedante, como a própria. Ela olhava de cima para baixo para ele, o que era uma ilusão de óptica impossível, sendo ela de mais baixa estatura. Tudo nela era afectado, o trejeito das sobrancelhas, o esgar da boca, o penteado com demasiada laca, o nariz esfíngico. P. espalhou as credenciais na mesa como quem exibe uma seqüência máxima, ela estudou-as com o ar impotente de quem apenas tem na mão um terno de duques. Alguns segundos depois, abriu um sorriso contrafeito de circunstância, exibindo um incisivo em ouro, um artefacto kitch condizente com o conjunto.

— Caro colega. Investigador. Vinha cá por que…?

A pergunta assim formulada por frase incompleta flutuou no quadrilátero do gabinete, como fragmentos de dente de leão levitando sem destino.

— Crânios de celebridades.

A megera encolheu o sorriso adenóide. Uma ruga lavrou-lhe a testa, em preocupação aguda.

— Não estou a ver.

Este era um caso invertido, de falso cego.

— Trocar. Os repetidos. Em cada classe, posso dispensar alguns. Dava-me jeito outros. Está aqui a lista.

P. estendeu-lhe uma folha de papel onde tinha anotado:

Sobrantes: Salvador Dalí, Pablo Picasso; Generalíssimo Franco; Madre Teresa de Calcutá; Aristóteles Onassis; Albert Einstein; Madame Curie.

Em falta: Marilyn Monroe; Barão von Frankenstein; Camilo Castelo Branco; Daniel Castelao.

— Não estou mesmo a ver.

A voz traía-lhe a falta de visão. Taviana Viterbo estava enterrada no esquema até ao pescoço, por mais curto que este fosse.

— Todo o homem tem um preço. Uma mulher como você, deve ter dois. Vamos lá, quanto quer para fazer uma trocazinha?

O rosto da professora Taviana Viterbo era um espelho da alma. Em alguns segundos, tingiu-se de vários matizes camaleónicos, desde um cinza cobalto, passando por violeta de Giensiana, azul de metileno, rosa de Benguela a vermelho hematócrito e amarelo linfa. Esticou um dedo na ponta do braço e vociferou:

— Saia!

— Mas…

— Saia!

Esganiço de garganta, olhos injectados, artéria túrgida na têmpora, sinais inequívocos de apoplexia eminente e tiro na mouche, reflectiu P., enquanto abandonava o gabinete no Instituto de Ciências Bio-Médicas.

***

O vento frio batia o cemitério do Prado do Repouso. P. ofegava, sentindo um suor gelado colando-lhe a camisa às costas. As duas últimas entrevistas tinham falhado, o doutor Lemos Rato não aparecera no restaurante Abadia e estava incomunicável, o professor Jusias da Mota pretextara uma qualquer reunião de emergência do Conselho Científico da Faculdade para cancelar a entrevista. A tarde saldara-se por longas horas de espera e encontros falhados. Um insucesso relativo, as ondas de choque da conversa com a professora Taviana Viterbo produziam estragos visíveis, e isso era bom.

O homem empurrando um carrinho de mão cheio de crânios e tíbias era Custódio, o coveiro, não precisava da certidão de nascimento para ser identificado. Bom, pelo menos este não falhou, suspirou P.

— Mestre, preciso de umas informações.

O coveiro coçou a testa, com a manápula cheia de terra de campa.

— Difícil, agora. Estou a arrumar os Pereiras.

P. espiou a carreta, os Pereiras vinham descompostos em ossadas encasteladas.

— Eu espero.

O atarracado cava-mortos seguiu empurrando o carrinho, arrancando um gemido de metal nas rodas mal oleadas. Hoje o dia é de esperas, pensou P., encolhendo um arrepio nos ombros. O hálito gelado dos mármores do Prado do Repouso causava-lhe náuseas, detestava estes apeadeiros de almas onde os vermes reciclavam as carnes e os Custódios tratavam dos ossos. Quando o homúnculo regressou, P. apressou o interrogatório. As respostas eram de início vagas, imprecisas, relutantes. Uma nota gorda animou-lhe a memória e o discernimento, por uma milena Custódio perdeu a amnésia e cantou quem encomendava crânios, falangetas, vértebras, apêndices xifóides de falecidos renomados.

— Os gajos só querem material de gente fina…

Abandonou o prado do repouso com as mesmas dúvidas e certezas. Taviana Viterbo, Lemos Rato, Josias da Mota, todos aclientados do Custódio. Que fazer com este tripé de cientistas?

Sentiu uma mão no ombro, virou-se de um salto.

— Tu, aqui?

A filha do professor F. Tentou recordar-lhe o nome, apercebeu-se que não o sabia, ela não tinha dito e ele não tinha perguntado.

— Por que não atendes o telefone celular? Estou farta de te ligar.

— É uma longa história.

— Temos tempo.

Olhou para ela. Estava muito bonita, um raio de sol arrancava reflexos de cobre no cabelo que lhe emoldurava o rosto. Os olhos indomados, decididos, incendiavam-lhe a alma.

— Vamos.

Aconchegou-lhe os ombros na cova do braço, sentindo-lhe o corpo firme e perfumado colado ao seu. Tinha muitas perguntas a fazer-lhe, como o tinha seguido, por que teimava em querer participar na investigação. Ficariam para depois, naquele momento era mais importante sentir o eloqüente silêncio que lhes unia os corpos e reprimir a imensa vontade de a beijar. Ainda não era o momento nem o local certo. Talvez mais tarde.

Talvez…

NOTA
O folhetim O crânio de Castelao foi idealizado pelo escritor Carlos Quiroga, por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos, que serão publicados nas próximas edições do Rascunho.

Leia o capítulo 3 por Antón Lopo

Miguel Miranda

Nasceu no Porto (Portugal), em 1956. Licenciado em medicina, especializou-se em Medicina Familiar. Participou de várias coletâneas de contos e é autor de Contos à moda do Porto (1996, prêmio APE de Conto), A maldição do louva-a-deus (2001; prêmio Fialho de Almeida), O rei do volfrâmio (2008) e Dai-lhes, Senhor, o eterno repouso (2011), entre vários outros. É membro da Associação de Escritores de Gaia, da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto e do Pen Clube Português. Foi publicado na Itália e na França.

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