Capítulo 11
“Eu sou dos que apalpam a cara pra esquadrinhar a própria caveira e não fujo dos cemitérios endejamais”, assim deixou escrito o rianxeiro na introdução de Um olho de vidro. Memórias dum esqueleto. Mas, por muita querença que lhe tivesse à ossamenta, nunca pôde imaginar, de certo, que o seu crânio ia ser o protagonista dum folhetim. Desde há várias semanas uma série de escritores galegos, portugueses, brasileiros e cabo-verdianos andam a desenvolvê-lo.
Depois de muitos anos no cemitério buenairense da Chacarita, os restos de Castelao descansam, trás um polémico traslado, no Panteão de Galegos Ilustres do Mosteiro de Sam Domingos de Bonaval.
Com motivo do encontro “Galego no mundo. Latim em pó”, celebrado em Santiago, o professor Carlos Quiroga começou a escrita do folhetim. A polícia compostelá anda sobressaltada, alguém roubou o crânio de Castelao. A partir de aqui cada autor escreve um capítulo. Os ilustres restos já viajaram por Galiza e Portugal, chegaram a Cabo Verde, e mesmo parece que em qualquer momento podem sair para a Índia.
Xavier Queipo, Quico Cadaval, Suso de Toro, o cabo-verdiano Germano Almeida ou o brasileiro Bernardo Ajzenberg são alguns dos autores implicados nesta apaixonante história. Mas, até ao momento, só será possível segui-lo no Jornal de Notícias de Lisboa.
Atento carnocho, se esbarras num paquete suspeitoso, chama ligeiro a Sam Domingos de Bonaval, podes ser protagonista, sem sabê-lo, de um novo capítulo do crânio roubado.
Até aqui o recorte do jornal La Opinión que acompanhava a carta do professor F.
Depois de uns dias de alta febre e quadros de delírio, P. recuperava a consciência. Não marchara para Taiti, não. No quarto do hotel de Comore, ela seguia lá. Também o crânio de Castelao, como única obsessão, metidinho na sua cabeça, disposto a fazer-lhe trespassar outra vez, se for preciso, a linha da tolice.
A carta que determinava o fim da sua missão tinha estado semanas a aguardar por ele na recepção do hotel. Do outro lado do mundo, na Galiza, o caso do crânio de Castelao havia tempo que deixara de existir.
Para acougo de todos, no remate da temporada da pesca —explicava o professor F. — um truta truiteiro do rio Tambre enganchara o anzol nos restos duma cabeça humana. A caveira — as truitas tinham deixado limpinha como um coral —, devidamente autentificada por ele mesmo, ocupava agora o seu lugar dentro do Panteão de Galegos Ilustres de Sam Domingos de Bonaval. Nos meios sérios, nada tinha ficado de toda a polémica gerada. Mesmo o governo português, num sinal de boa vontade, conseguira libertar o carro do presidente da Junta da multa recebida em Caminha por excesso de velocidade. O crânio de Castelao agora já só pertencia — junto com O.V.N.I.S, lobisomens e o tsunami da Atlântida — aos programas radiofónicos sobre realidades ocultas e teorias conspiratórias.
Para afastar definitivamente os burburinhos do rego do real — a astúcia de F. não tinha limites —, conseguira introduzi-lo como argumento dum folhetim dentro dum congresso de escritores. Na carta, gabava-se de ter-lhe sugerido ele mesmo o assunto a Carlos Quiroga, professor de português, na cerimónia inaugural do curso escolar. Simplesmente estava a promover a antiga tradição: do encontro entre a mente prática e a imaginação humanística despontara o lume que, desde há séculos, alumia na Universidade de Compostela.
Por suposto o professor F. também dedicava uns parágrafos a agradecer a P. o tempo e o esforço investido na missão que lhe tinha encomendado. E apesar de ele não ter atingido fisicamente o seu objetivo, garantia-lhe, como prémio de tanto empenho planetário, um brilhante futuro nalgum departamento da sua Faculdade.
O texto rematava assim:
Chegou a hora de regressares, meu caro discípulo. Sei o que sentes: à frustração de não achar o teu objetivo, acrescenta-se, agora, a obrigação de manter em segredo a tua extensa epopéia.
Tardei tempo em dar-me conta. Na nossa indagação erramos o caminho desde o começo.
A teimosia do presidente da Junta em recolher ele próprio o crânio em Lisboa revelou aos meios a notícia da sua desaparição. E eu não podia consentir que o que decerto foi uma brincadeira de adolescentes bêbedos — os rapazes da rua de San Pedro sempre foram o demo — seguisse a provocar por mais tempo o desacougo de todo um povo.
Na minha decisão de substituir o crânio e fechar o caso pesou, pois, um princípio elementar de responsabilidade, ainda que tal iniciativa implique golpear outros princípios igualmente sagrados para um científico. Esse debate fica na minha consciência, não na tua. Afortunadamente, prezado cúmplice, dispenso-te definitivamente de tão pesada carregação. E despeço-me com a palavra que de seguro levas a aguardar durante meses, simplesmente: regressa, amigo!
P. devia ter-se alegrado, e muito. Trás dias de febres e alucinações — todo ocidental tarde ou cedo tem de pagar em forma de furrica a portagem de entrada na terra do Monção — eis a chave do retorno e do sucesso laboral.
O êxito profissional na Faculdade quedava bem resguardado pelo segredo compartilhado — “prezado cúmplice” — por se nalgum momento o professor F. decidia esquecer estas promessas. Paradoxos das antípodas, aquele que em Compostela apenas era quem de lembrar o tema da sua tese doutoral, tratava-o agora de “amigo” e “caro discípulo”.
Tudo resumido nesta palavra-talismã: regressa!
Mas retornar não ia. Também P. — como no texto do recorte — pousou a mão na face e tentou apalpar a caveira. Era muito mais que uma obsessão, o crânio de Castelao, abofé, estava dentro dele, a abraçar cada uma das neuronas. E os seus mandatos tinham muito mais poder que qualquer indicação do “professor-orientador”.
Sabia que nesta procura tinha chegado muito longe, ainda que não fosse quem de relacionar correctamente as informações que fora apanhando por meio mundo. Desde o começo estivera a lamber a solução, mas também desde o princípio tinha minusvalorado o problema. E uma e outra vez caíra de bruços ao tentar pisar firme num mistério sempre mais fundo do que intuíra.
Agora — em Timor-Leste, além da febre e da furrica — erguia-se de novo para não cair mais. Antes de que sua mente enfrentasse a batalha definitiva, cumpria amanhar algumas questões, bem físicas, por certo. Nesse mesmo dia acudiu com a sua companheira ao banco que se lhe indicava na carta e retiraram os fundos destinados ao bilhete regresso a Lisboa. Mandaram-lhe uma boa encherola a base de camarão tigre. Em seguida subiram ao quarto do hotel e principiaram uma sessão de fodedela impenitente.
Muitas tradições optam pela mortificação física para superar a pulsão sexual e libertar a consciência. Eles decidiram seguir o caminho oposto. Com muita aplicação por ambas as partes, depois de uma semana de tropicalho sem acougo, foram quem de calmar o arroalho que geraram as jornadas de ócio e flagelação integrista prévias ao encontro com o coronel Pedro Santiago.
Bem aliviadinhos, sem fôlegos para nenhum tipo de iniciativa física, P. volveu buscar com a mão o crânio de Castelao que levava dentro. Apertou bem forte. E só achou confusão. Confusão no tráfego de ossos, nas terríveis advertências dos memorabilia corporea, confusão nas encruzilhadas, nos aeroportos, nas indicações do professor, confusão na própria presença no leito da sua doce companheira. Mingou um chisco a tensão dos dedos sobre a pele e abriu os olhos. Bem perto, sossegada, ela seguia a dormir. A gorja encheu-se de umidade e cambiou a música do cosmos. Nas ruas de Comore choutavam lanças de água. Estava a principiar o tempo das chuvas. E outro monção rachou dentro disposto a limpar o lixo das ruelas da cabeça. Depois de tanto pó, de tanta sede: o trovão.
No fluxo da consciência aboiou firme a antiga intuição: a procura da caveira representava muito mais que a demanda de um objeto. Como o Graal, o crânio de Castelao tinha de ser a chave de uma porta metafísica. Fora seguia a chover, dentro, as respostas boiavam cada vez com mais claridade: por que o professor F. e sua secreta comissão — da que nada sabia — aguardaram a que estivesse do outro lado do mundo para proceder à segunda — e definitiva — substituição? Se ao remate todo podia ser explicado como uma brincadeira, por que seguiu a alentar a sua viagem…?
Não seria a aventura do “caro discípulo” a melhor coartada do professor-orientador. Se algum dia uma investigação independente tentasse chegar ao fundo do caso, ninguém teria ocorrência de incluir o excelso científico na lista dos possíveis autores. Mesmo quando se descobrisse a troca de caveiras, F. iria aparecer como um patriota abnegado que esteve disposto a tudo para honrar a memória de Castelao. Arriscara o seu prestígio profissional e mesmo tinha sido quem — cometendo evidentes irregularidades — de enviar um dos seus melhores discípulos pelo mundo adiante.
Monção de Timor, licor da verdade, noutro lado do planeta por fim tinha a certeza de que tinha sido o verdadeiro responsável do roubo. Agora só cumpria saber porquê.
E chegaram águas de mais longe, desde a própria infância. Ondas do mar do Orçám e outro professor, o mestre Peteiro, nos tempos da escola na Corunha. Quinto ano do ensino geral básico, excursão de fim de curso a Santo André de Teixido. Segundo insistira o mestre durante a viagem, iam conhecer as falésias mais grandes da Europa.
— Que sentes diante desta imensidade? — perguntou-lhe Peteiro nos outeiros da Capelada.
P. ainda não cumprira os onze anos, mas já sabia o que tinha de fazer para conquistar a máxima qualificação: “Orgulho de ser galego”.
Então um refacho de vento mareiro ascendeu os setecentos metros de pedra e petou contra o queixo do professor. Revirincharam-se as crechas da sua barba de druida, reviraram-se também as órbitas dos olhos e chegou o transe:
— Estás a ver a cancela. Oceano, porta mística da verdadeira Galiza: a da quarta dimensão, onde lateja o planeta dos bons e generosos. O lugar de nós, dos iniciados, dos que guardamos o sacro segredo do Partido Galego Místico. Dos que, como Pondal, sabemos da luz verdadeira das palavras: “Desperta do teu sono, fogar de Breogám”, o espertar da consciência, a iniciação, vieiro único de plenitude…
Naquele dia as toleimas do “druida” Peteiro provocaram-lhe medo. Depois, em cada retorno a Santo André, essas lembranças davam-lhe riso. E velai estava agora, no outro lado do mundo, a buscar o crânio de Castelao. Suspirou. E, ao esticar-se, a mão viajou desde a face cara a nuca. Os dedos tropeçaram com uma cadeia. No seu extremo, outra revelação: a medalha dos Milagres do Monte Medo.
Comocionou-se. Levava-a pendurada no pescoço desde a infância, com mais teimosia desde a morte dos seus pais, pois tinha sido tia Sara, muito devota desta virgem, que lhe tinha dado quando o levara à romaria do Concelho de Banhos de Molgas. O Monte Medo, isto é, uma das possíveis localizações do Medúlio, mito fundacional da nação galega, onde — ocupada já toda a Lusitânia — os derradeiros galaicos livres decidiram imolar-se antes de sucumbir ao jugo romano.
Tirou a cadeia da cabeça e ao instante sentiu a força da medalha transformada em pêndulo. Entre os apetrechos da sua instrumentalina espionnica, buscou um atlas na mala e abriu-o nas duas folhas do planisfério. Pegou um extremo da cadeia com os dedos índex e polegar e achegou a medalha à página esquerda até situá-la na vertical do princípio da sua viagem, no centímetro de ribeira atlântica que abrange a costa de Galiza e Portugal.
A sua excitação era extrema. Mas o pêndulo não se moveu. Apertou com força a outra mão contra a caveira até sentir dor nas órbitas dos olhos e… Nada. Nem vibração, nem cócegas nos dedos, nem toque elétrico, nem nada.
Voltava a confusão, a escuridade mais terrível: a do que pensou ter visto a luz. O monção de dentro abrira fechos a eito: as lembranças da infância, a quarta dimensão, o Partido Galego Místico, a própria descoberta do pêndulo. Levava-o aguardando mais de vinte anos no pescoço para conduzi-lo, agora, diretamente a nenhures.
Um momento. Conforme fechou o atlas um arrepiou o choutou. A medalha tocara muito levemente a folha direita, muito longe da Galiza, na outra banda do planisfério, nalgum ponto de Ásia, de África Oriental, de Oceânia…
Situou o pêndulo sobre a folha direita e com a outra mão voltou a buscar a sua caveira. Por fim chegaram as cócegas à ponta dos dedos e uma vibração constante na medalha que o conduzia ao lugar onde o estava a aguardar, de certo, o crânio de Castelao.
Mas a mão não quis tirar Timor como P. intimamente desejava. O pêndulo preciso, constante, teimoso, assinalava no noroeste da ilha de Madagáscar, um ponto sobre o oceano onde havia exatamente: nada. Estava desfeito. Parecia-lhe que se apertasse um chisco mais poderia fazer estalar a cabeça entre os seus dedos.
— Por que não repetes a operação num mapa de mais detalhe, paspám?!
Afortunadamente, ela — Elva, Joana da Costa, Paula Casarão… —, cuspidinha a Sandra Bullock, seguia ali. P. buscou no atlas a página que mostrava as ribeiras do Índico. Imediatamente o pêndulo voltou situar-se por cima do mar, no noroeste de Madagáscar. Mas desta vez, aos 10. 25º Latitude S, 56.35º Longitude E, apareceu uma silhueta minúscula.
Eis as coordenadas que conduziriam ao “Entroncamento”, a solução ao enigma da ilha do Pico: o último sítio em que se lembraria de procurar. E contudo, não poderia ser mais fácil”. A medalha do Medúlio, do partido místico dos bons e generosos, ordenava-lhe buscar o crânio de Castelao num pelouro perdido do Índico chamado — o narrador omnisciente que isto transcreve aforra explicar o simbolismo das ilhas: (sic) Agalega.
NOTA
Estes foram os capítulos finais do folhetim O crânio de Castelao, idealizado pelo escritor Carlos Quiroga por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos.