O crânio de Castelao (1)

Leia o capítulo 1 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/02/2013

Capítulo 1

Na tarde do 13 de maio Santiago de Compostela estava já primaveril. Para o lado do Centro de Arte Contemporânea o Parque de Bonaval irradiava a calma do fim de semana, com isolados e vagarosos visitantes. Pelas vidraças baixas do edifício de Álvaro Siza entrava uma luz nimbada que deixava na atmosfera do bar um sossego quente.

Na mesa do canto estava sentado P. desde as 17h, com alguma ansiedade mal dissimulada. Aguardava alguém. O Catedrático de Medicina, o Professor F., “orientador” da sua tese de doutoramento, tinha deixado para ele uma mensagem para encontrar-se naquele lugar. E P. consumira um café com impaciência, tratando de imaginar o que podia querer o velho catedrático, sem alcançar uma explicação para o motivo da cita nem para a escolha precisamente do Museu.

O respeitável Professor F. nunca se afastava do seu gabinete, raramente alguém o ia encontrar fora da faculdade, e era contra a sua natureza, pensava o desconcertado P., tecer intrigas académicas. Por outro lado, não havia hipótese de ele encaixar em qualquer plano clandestino dessa espécie. Nem no ano escolar que findava, nem no próximo, pelo menos, cabia possibilidade de entrar como assistente por necessidades docentes. Tinha passado doze meses nos EUA, como bolseiro de investigação, e agora só lhe cabia concluir a tese na Galiza, sem muitas perspectivas imediatas. Era quase um desconhecido aqui, namorada americana de relações acabadas, sem amigos de estudos que reencontrar na cidade. Começava a reorganizar-se à volta do apartamento que lhe tinham deixado os pais, antes de se matarem num acidente na A9 dois anos antes. Era um fantasma à espera da autoridade, pensou, começando a esboçar um sorriso.

Mas levantou a vista e sentiu-se apanhado pelo sorrir já completo da empregada posto nele. Ia pedir um jornal, para descontrair, quando nesse instante apareceu o catedrático, cabelo branco, óculos, ágil como um rapaz, e vestido mais desportivamente do que costumava. Segurava uma pasta acastanhada na mão direita, que mudou para a esquerda cumprimentando, e desculpou o atraso. Compostela ultimamente estava impossível para estacionar, afirmou. Como era sábado, vinha de carro da sua casa em Cacheiras. Perguntou pela vida, tomou água natural de Mondariz, cuspiu um bocado contra a ocupação de professor. E sugeriu dar uma volta pelo jardim.

Logo de alguns comentários acerca da paisagem e do clima, com a pertinente pausa prévia, o catedrático começou a frase, De certeza te perguntas por que te chamei, e por que marcamos aqui… Então P., que o seguia impaciente, respirou profundamente e respondeu afirmando, claro. Mas a seguinte interrogação retórica sumiu-o no primitivo desconcerto: Tu estavas fazendo uma tese acerca de um osso da cabeça, não é? O bolseiro pensou, desencantado, que afinal o assunto era académico e que não ia ser do seu agrado, mais ofendido por tanto mistério que por o catedrático não recordar o trabalho que supostamente orientava. Seria que ia ser delicadamente desprovido da bolsa? Utilizado para alguma manobra? Sacrificado por outro…? A confusão agravou-se quando o velho professor começou a falar de repente em Daniel Castelao, que tinha falecido em Buenos Aires a 7 de janeiro de 1950, que era aquele grande galeguista escritor, artista, médico e coisa e tal.

— Já sabes quem é. O que não sei se sabes é o tumulto que provocou o seu retorno, o dos seus restos, claro, em junho de 1984, desde o cemitério de Chacarita para ficarem aí ao lado. Um amigo meu foi malhado pela Guarda Civil à saída do aeroporto, só por parar-se diante do carro em que vinha. E aqui na cidade foi tremendo. Nem tudo está esquecido, e Castelao, os seus restos, continua sendo símbolo para muita gente.

— Bom, perfeitamente, estamos do lado do Museu do Povo… Ei, Galiza! Mas não me diga que veio perder a tarde do sábado para contar-me isto.

— Isto, filho, ainda é mais complicado, porque o crânio de Castelao desapareceu…!

Nesse ponto da conversa, o bolseiro sentiu, de repente, que o motivo da cita tinha que tomar algum significado concreto para ele. Mas, relacionando os dados que até a altura se podiam reunir, só de longe chegou a prever como o assunto iria de encontro com a sua pessoa. Como podia afectar-lhe a vida. Só muito de longe chegou a imaginar.

— Não acredito… E que tem a ver com o senhor? E que tem a ver comigo?

— Rapaz…, não tinhas enviado desde América um artigo para uma revista da tua aldeia, creio que me tinhas dado um exemplar; não tinhas escrito algo acerca de um proeminente comerciante de memorabilia corpórea…, e de um dedo do último guerrilheiro antifranquista, ou não sei quê, objecto desse contrabando ilícito?

O mindinho esquerdo do Piloto anda na Califórnia, mas omitiram o título…

— Isso!

— Conheci um comerciante, por meio do forense que lhe fazia as análises, e fingi uma entrevista com tudo aquilo. Havia realidade mas também fantasia.

— Conta-me algo da realidade.

— A realidade é que existe um mercado internacional de memorabilia corpórea, certo, e nesse negócio inclui-se muito mais do que ossos. Existe gente disposta a pagar fortunas por restos mortais de seres humanos. E existe gente disposta a fornecê-los. O tipo que eu entrevistei comerciava com esse género de artigos como com qualquer outro de coleccionáveis.

— Crânios incluídos…

— Os crânios abriam o que ele chamava os “Cinco Grandes”. A seguir, olhos e dedos, depois, massa cerebral. O resto entrava na “miscelânea”. Todos os artigos eram inventariados com um sistema muito particular mas lógico. Classificava-os, em primeiro lugar, por categorias físicas (dedos, crânios, massa cerebral, amostras de sangue, olhos…); depois, por categorias históricas ou culturais (presidentes americanos, artistas de cinema, nazis, criminosos e assim por diante). Quando aparecia um artigo, consultava a sua base de dados, com clientes não só da América, e num clique efectuava a transacção.

— Deuses! Tás a ver…! E parece que andam aí restos dos famosos mais inesperados… Que tipo de “artigos”? De quem?

— O homem mostrou-me um frasco com um olho e assegurou que era de Charlie Chaplin. E outro da famosa anarquista Emma Goldman. Jefferson Davis… e um par não autenticado de Edgar Allan Poe, que valia uma fortuna, se as análises fossem positivas.

— Análises que seguem procedimentos forenses…

— E não só. É pertinente reconstruir o “percurso do produto”, a carreira, proveniência, etc.

— Aí está, existe um percurso, mas no caso das peças procedentes da Europa será mais longo. Quero dizer, demoram mais a chegar, a historiar e a vender.

— Ninguém pode estar seguro. O material da Rússia, bolcheviques e czares, parece que já não merece grande crédito. Aquele indivíduo preferia não ter que enfrentar. Outra coisa era o dos nazis, ou os estranhos artigos da Argentina, tipo sangue de Evita, e assim… Outros artigos da Europa, escritores, políticos…, dependiam da procura. Ora, o maioritário era sempre o “produto do país”.

— Produto do país?

— Pedaços de pólipo do Reagan, de quando foi operado aos intestinos, até luvas de látex, todas sujas, usadas durante a operação. Muita procura do JFK, Lincoln num distante terceiro lugar. Quanto ao Jimmy Carter, o Bush, o Clinton, já eram só longínquos mananciais em potência, sobretudo o último. E o mesmo em relação à Bárbara, à Hillary…

— Por S. Bernardo, sabes tu mais detalhes que tudo quanto conseguiu averiguar a nossa equipa nestes dias… É incrível! Temos informação acerca disso, mas não acabo de crer.

— Essa informação já estava naquela revistilha, devia ter lido. Mas não sei que pode aproveitar para o caso que me conta, e para a sua “equipa”. O crânio de Castelao só pode acabar, seguramente, num circuito desses. Agora, se a tal equipa ou alguém aqui o quer comprar…

— Até seria possível se imprescindível. Mas não é tão fácil. Isto é muito mais complicado. E delicado. Muita gente que pode ter interesses. Qualquer indiscrição e arma-se. Para além disso, Castelao só leva uns dias desaparecido. Bom, a sua cabeça. E existem indícios de que só poderia ter saído via Portugal, e de que poderia haver motivos diferentes dos monetários para o roubo. Não posso contar muito mais, de momento, porque o tema está sendo levado com a máxima cautela. O escândalo poderia abalar o país. E mais de um posto.

— E qual é o problema? Colocam outro crânio no lugar e ninguém sabe. Já sucedeu com o Apóstolo Santiago, não é? Pois Castelao não devia ser menos.

— Ai, rapaz, não brinques com isso. De momento já é o que se fez, pôr outro, mas… chisstt! Como se não soubesses! Nem uma palavra…! Símbolos são símbolos, e o barulho de 1984 contra os políticos que transladaram os restos ainda está no ar. Por outro lado, hoje já não é fácil enganar, porque os dados forenses de Castelao não tenho só eu, espera aí… (Pegou um dossiê da pasta e entregou.)

— Qualquer opinião minha acerca de… não creio que…

— Não, homem. Não é isso. É para tu levares. Andam neste assunto interesses, intrigas e especialmente medos. A coisa é simples. Eu fui chamado para uma comissão, a da tal equipa, que trata de resolver a crise no maior dos sigilos. O certo é que, quando conheci os pormenores e o objecto do roubo, lembrei-me imediatamente de ti e dei o teu nome. Acabei por ser incumbido de recrutar-te (a palavra é deles), para que recuperes o crânio…

— O queeeê…?!

— A tua condição de investigador nesse campo legitima a tua intervenção, os teus movimentos, sem levantares suspeitas maiores. És galego, sabes de que vai Castelao, sabes idiomas, viajado. O indivíduo adequado.

— Investigador em que campo? No do roubo de crânios? Eu tenho uma tese nas mãos e…

— Garanto-te que está feito quando voltes com o crânio. Em dois anos garanto-te uma vaga na faculdade e… Nesta pasta tens cartão de crédito a teu nome, credenciais de investigador universitário, cartas de apresentação. Encontrarás também um computador e uma câmara digital e uma agenda electrónica, com indicações de alguns contactos. Ai, e um telefone celular; esse por minha conta, para que chames informando da pesquisa. Na memória já está registado o meu número. Toda a informação está em papel e no computador. E já está marcado um encontro com um médico do Porto… para amanhã! Não existe ninguém no mundo mais indicado para esta busca!

Quando o velho professor desapareceu, ágil como tinha chegado, P. sentiu como o parque dançava sob os seus pés. Buscou um banco de pedra solitário e ficou pensando em tudo aquilo. Abriu a pasta que lhe tinham entregado e viu o pequeno computador, papéis, envelopes… E quase deu um brinco quando o telefone celular emitiu um agudo bip-bip, bip-bip.

Duvidou um segundo, mas acabou por pegar rapidamente. O coração batia-lhe com força ao premer na tecla azul do pequeno Ericsson T10s. Então, ouviu uma voz feminina que lhe pedia, amável mas imperativa, para subir ao topo do Parque e aguardar encostado à parede próxima a determinada árvore. E desligou. P. levantou-se com determinação, não para fazer o que se lhe pedia, mas para encontrar alguém suspeito à volta, alguém observando-o. Foi inútil. Começou, então, a dar voltas sinuosas devagar, subir, descer, para contornar o Parque e aproximar-se do ponto de encontro sugerido do modo menos esperável. Estava atento para toda a gente, atenciosa mas dissimuladamente; primeiro só para as mulheres, depois até para homens e crianças; de início para comportamentos estranhos, depois para todo o tipo de comportamentos.

Ficou cansado. Tudo era normal. Tudo era anormal. No topo não havia ninguém. Decidiu pirar-se.

Quando chegou à base do Parque, já a pé do Museu, molhou os dedos no último cano de água e refrescou a cara.

— Olha que és lento, tu!

Voltou o rosto húmido e encontrou uma mulher jovem, talvez 25 anos, que o estava olhando de braços cruzados. Recentemente, ao ver um filme em USA, Sandra Bullock tinha-lhe lembrado alguém que não conseguira recordar, a mesma pessoa que tinha diante. Mas agora só tardou uns segundos para reconhecê-la: a filha do Professor. Tinha-a visto no gabinete deste uma vez, havia três anos, de cabelos mais longos. Sabia só que ela optara pelas humanidades, contra o parecer materno, que não paterno.

— Andas a espiar o pai?

— Só quero perceber de que vai isto exactamente. O meu pai não solta prenda, fora do seu costume comigo. Pediu-me para comprar o teu telefone e fiquei com o número. Estive a observar-vos e queria ver que fazias ao chamar-te.

— Pois já está visto. Se queres saber “exactamente” de que vai, pergunta ao teu pai. Diverti-me muito esta tarde, e tu, imagino que mais. De modo que acabou.

— Foi simpático ver-te… pelo Parque. Parecia que tinhas perdido o cão, ou uma namorada… Mas não te ofendas. Acordo-me de ti; quando estavas fora o meu pai falou alguma vez do que fazias. E se ele acaba de montar esta espalhafatosa cita contigo é que algo interessante colocou nas tuas mãos.

— Talvez. Mas isso não é contigo. Contigo deixamo-lo no prazer de um encontro de… quase conhecidos, tá? Ou de quase amigos que podiam ter sido. Como tal que querias dar a bem-vinda. De modo que pelos States, bem, obrigado. E agora, não posso continuar a falar contigo. Ciao.

— Olha, que ninguém nos espia, ninguém te segue, e sou eu. Conta-me só que te pediu o meu pai, que para isso é meu pai, e aonde vais com tudo isso. Posso ajudar.

— Não pode ser. E lamento de verdade. Tenho que marchar. Adeus.

— Está bem. Mas diz-me pelo menos que levas na pasta, que tens que buscar, porque se trata de buscar algo, não?

Memorabilia corpórea… Adeus!

— O queeê? Que é isso…?

— Latim em pó!

NOTA
O folhetim O crânio de Castelao foi idealizado pelo escritor Carlos Quiroga, por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos, que serão publicados nas próximas edições do Rascunho.

Leia o capítulo 2 por Miguel Miranda

Carlos Quiroga

Nasceu em Vilasante (Galícia), em 1961. Formou-se em Filologia Galego-Portuguesa e Filologia Hispânica na Universidade de Santiago de Compostela, onde é atualmente professor de Literaturas Lusófonas. Fundou e dirigiu várias revistas. Publicou sete livros individuais, como A espera crepuscular (2002) e Venezianas (2007). Recebeu duas vezes o prémio Carvalho Calero de narrativa, por Periferias (1999) e Inxalá (2006), o primeiro editado também no Brasil, e o segundo em Portugal. Seus textos foram publicados em antologias como a alemã Hotel ver mar, a portuguesa A poesia é tudo e a espanhola Traslatio literaria.

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