O conde de Monte Cristo (I)

A ausência de Tomás Seixas e os sofrimentos do conde de Monte Cristo e Napoleão Bonaparte
01/08/2004

“Santa Helena: pequena ilha do Oceano Atlântico, colônia inglesa”. (Anotação de Napoleão, num pequeno caderno, ainda quando era simples tenente.)

Um dos prazeres intelectuais — para iniciados — do Recife, um dia, já foi ouvir Tomás Seixas discorrer (no seu terraço de face para um quintal cheio de mangueiras pesadas de frutos e água da chuva) sobre O conde de Monte Cristo.

O elogio ao romance de Dumas, Tomás o fazia com a saudade das leituras da adolescência (Adeus à adolescência foi o título do seu primeiro livro, que ele fez editar numa tiragem de 11 exemplares apenas), a olhar para as folhas tombadas no quintal, que o sol — irrompendo após o aguaceiro — vinha dourar sobre o cheiro da terra molhada. Ainda ouço o tamborilar dos pingos na cobertura de zinco do terraço, confundindo-se com a voz de Seixas, nas suas longas recitações de autores “ultrapassados” que ele amava, justamente por isso: haviam ficado para trás, num mundo elegante e dramático que não existe mais.

Falava deles com a intimidade do amante fiel que forja convites falsos sobre a bandeja de prata de uma atriz de teatro esquecida e inválida. Que tentação escrever isto: um frase cheia de pathos, um fragmento de um romance barato cujo fascínio é de um langor licoroso sobre um mesa forrada de vinho retirada, às pressas, de um parque abandonado.

Os sofrimentos de Edmond Dantès! Tomás os relembrava, comovido como se fosse os de um ser de carne e osso humilhado e ofendido, até chegar o dia do triunfo e da vingança dos justos maltratados pela vida que nos pune a todos, não faz graça para ninguém e, por fim, condena os Montes Cristos que somos ao mesmo esquecimento das folhas caídas, mais cedo ou mais tarde.

Perdoem a tristeza da tarde sombria de julho, que me faz pensar em Tomás da Veiga Seixas, no conde infeliz da ficção e em Napoleão na ilha de Santa Helena — tendo eu acabado de ver o filme Monsieur N, de Antoine de Caunes, produção franco-britânica (de 2002), que trata do exílio final do Imperador, no rochedo remoto do Atlântico Sul onde os ingleses o confinaram para morrer, lentamente envenenado com pequenas doses de arsênico, conforme hoje se sabe.

Que Napoleão Bonaparte foi o chamado “homem do destino” — maior do que ele mesmo — hoje também é certeza, após quase duzentos anos da sua morte planejada pelos superiores do governador de Santa Helena, Sir Hudson Lowe (um nome para se esquecer na lama das ilhas de ignomínia do Diabo vestido de santa bizantina pintada num altar da infelicidade). Era assim que Seixas, esta tarde é dele, eu quero recordar as coisas que o poeta amava: a justiça vencendo a injustiça, o esquecimento que desce sobre os cemitérios ao luar, o anjo do meio-dia e as damas da meia noite que dormem sobre a recitação de poemas de Rimbaud para a platéia de um puteiro em transe.

Napoleão Bonaparte foi o mais brilhante general da história, reformou o código de leis que ainda vigora na Europa, e deixou sua marca até na história do país lateral que era o Brasil, no início do século 19, ao fazer fugir para o Rio de Janeiro o rei comedor de galinhas assustadas. Dom João VI veio para a rude colônia tangido pelas tropas do Corso, trazendo a sua mulher louca e todas as taras da corte em polvorosa diante da investida da Grande Raposa, depois aprisionada na ilha de ratos, exposta aos ventos úmidos do mar, e tão solitária, que ainda hoje é Saint Helene

O conde Monte Cristo também foi prisioneiro (na masmorra de If), traído de forma tão vil como Napoleão ao se entregar a um almirante britânico com a quase ingênua certeza de estar protegido pelo sentido da honra e pelo sentimento generoso dos verdadeiros reis, cuja grandeza impõe acolher e dá a melhor guarida possível a um general inimigo que oferece a sua espada, em rendição confiante. Napoleão fez isso, em 1815. Inspirava-se, confessou ele, no gesto de Temístocles, ao entregar-se aos persas — inimigos de toda a sua vida —, ao invés de oferecer a rendição aos gregos. Os persas compreenderam o seu gesto, aceitaram a sua espada e protegeram e honraram Temístocles como só se honram os inimigos vencidos.

Pobre Napoleão! Toda a experiência do mundo, do governo e da guerra não foi bastante para lhe indicar que já estava tratando com o mundo moderno incapaz de compreender a honra grega, a rendição samurai, o gesto napoleônico que resultou somente em humilhação, ofensa e morte (a longo prazo e traiçoeira) para o grande imperador dos franceses.

Quando subiu a escada do navio inimigo, para render-se, ele não contava com o caráter mesquinho e baixo da nova Inglaterra, expresso já no modo de tratá-lo (“Sr. Bonaparte”), nos primeiros instantes. O almirante inglês e seus oficiais haviam sido instruídos até nesse detalhe do tratamento — porque a intenção do “país de comerciantes” era tirar de Napoleão até o direito de ser tratado como imperador (que ele era), assim tentando arranhar a sua grandeza, na vontade furiosa de fazê-lo pequeno como o ridículo duque de Wellington, herói da “pérfida Albion” das ratazanas de perucas brancas na Câmara dos Lordes.

Quanta saudade, Tomás, de vê-lo chorar a desgraça do Corso tanto quanto os sofrimentos inventados — para Edmond Dantès — pelo autor do romance de folhetim que Umberto Eco chama de obra-prima da comunicação literária (uma vez que O conde de Monte Cristo não pode ser encarado como uma obra de arte suprema). O volumoso livro de aventuras — ilustrado com desenhos e gravuras que restavam na memória de Tomás como um filme tosco, em preto e branco — entrou na Coleção Plêiade, da Gallimard, ao lado de clássicos de alto valor literário (como O vermelho e o negro, de Stendhal, e Madame Bovary, de Flaubert), “passando por cima” de distinções entre “grandes romances” e “obras populares”, de acordo com o sábio Eco para quem “o Monte Cristo é, sem dúvida, um dos mais apaixonantes romances já escritos e, por outro lado, é um dos romances mais mal escritos de todos os tempos e de todas as literaturas”. O que parece uma contradição é explicado pelo semiólogo e romancista italiano a partir da sua experiência como quase tradutor de uma nova versão italiana do romance, quando o editor Einaudi convidou Eco para “enxugar” o livro de Dumas, “limpá-lo” das palavras ocas, dos adjetivos repetidos, das divagações e dos momentos frouxos que ele contém… Estudando a estrutura e o estilo da narrativa — para aceitar ou não a tarefa —, Eco vem a perceber que os “defeitos” do Monte Cristo participam intrinsecamente do seu fascínio, e que é um livro para ser deixado como está, máquina de comunicação funcionando perfeitamente, ainda, junto a velhos e jovens leitores.

Você morreu, Tomás, e não houve tempo para brindar — com uma xícara de chá inglês (a melhor coisa da Inglaterra, depois de Shakespeare e das pernas da inesquecível Lady Diana) — as tão sutis percepções do autor de O nome da rosa, que você detestou. Para isso, seria necessário esperar pelos junhos e julhos de tardes recifenses de chuva, quando você poderia contar de novo como, ainda menino, descobrira O conde de Monte Cristo num velho armário da casa dos sonâmbulos:

“Não, evidentemente aquele não era um livro como os outros! Ou melhor, era em tudo muito diferente de todos os que eu havia lido. E foi por um mero acaso que tive a sorte de encontrá-lo, perdido num velho armário de nossa casa, para onde fora atirado juntamente com antigas revistas de modas, postais, grossos rolos de papéis gastos e amarelecidos, atados com fitas de seda desbotada, e ainda um grande número de pequenos objetos fora de uso e de lembranças sem nome. Assim que comecei a lê-lo, compreendi logo que se tratava de um livro estranho e maravilhoso. E ainda hoje somente posso comparar as impressões daquela leitura, feita nos primeiros dias da adolescência, às provocadas em Rilke pelo pequeno livro de capa verde, que ele possuía na infância, no qual, entre outras histórias, se contava o fim de Gricha Otrepjov, o falso czar, e a morte, igualmente sinistra, de Carlos, o Temerário, último duque de Borgonha. Mas, ao contrário de Rilke, que em sua vida errante acabou perdendo o precioso livrinho, agora mesmo tenho diante de mim esse antigo volume de O conde de Monte Cristo…”

O livro que Tomás foi buscar — e que, naquela tarde, melou-se da cor da carne das jovens de Java, quando lhe caiu das mãos a xícara de chá — era um encantador livro meio ensebado, publicação da Empresa Literária Fluminense, de propriedade de A. A. da Silva Lobo, e havia sido impresso em Lisboa, na Tipografia de Vicente da Silva & Cia., situada à rua de São Mamede (Ao Caldas), 26. Não havia data de edição, infelizmente. A tradução, anônima, logo aos primeiros parágrafos se revelava lusa, para bem e mal, num certo gosto antiquando das palavras combinando com o velho volume precioso para o poeta até mesmo pelas ilustrações medíocres:

“São medíocres, sim, e bastante vulgares, na maioria. Mas, veja bem, entre as gravuras coloridas, A Fortaleza de If, A Envenenadora, O Sonho de Franz e Haydée no Bazar possuem uma certa beleza. Ao contrário, porém, das gravuras em preto e branco, da autoria de um artista (ou gravador) de nome Pastor, as ilustrações coloridas não trazem assinatura. Igualmente não são assinadas a ilustração da sobrecapa da brochura original (inteligentemente conservada pelo encadernador) e a do reverso da sobrecapa, que representa Haydée Nua e também Haydée Reclinada (olhe que encantador!, nesse amontoado de coxins, junto a um narguilé e um bandolim)…”

Voltara a chover. Respeitei o silêncio sobre o som morto de um bandolim desenhado, e esperei que Tomás retomasse, ao seu bel-prazer, o fio da memória recuada para as primeiras horas com o livro desigual, mas arrebatador, das desventuras do infeliz Dantès:

“Faz muito tempo que eu me refugiei ali (apontando para um banco de mármore, sujo de limo nas falsas almofadas), a fim de ler sem ser importunado, ou então na sala, (apontando para as obscuridades além do corredor pintado de verde), na sala deserta. Dentro de casa como no parque (ele chamava de parque o quintal despido, onde cultivara rosas e desistira de cortejar as flores tão cedo mortas), eu permanecia mergulhado na leitura e com a imaginação deslumbrada, até ao cair da noite. E era com um estremecimento, quase como o de alguém que se dilacera, que eu me desprendia daquelas páginas. Como conseqüência imediata dessa exaltação, que o começo da adolescência exacerbava, comecei a viver num mundo criado pela imaginação, cujas exigências, cada vez maiores, de solidão, eram tão imperiosas que me levavam a fugir dos amigos e até das pessoas de casa. Passava dias inteiros trancado no quarto, ou perambulando pelo parque. E o que era ainda mais estranho, estava começando a ser dominado por um sentimento que a mim próprio causava espanto, que era um misto de tristeza, de inadaptação, de revolta e desesperança. Contudo, embora perturbado por impressões tão confusas, eu havia descoberto o valor da solidão. Sim, porque a solidão de Edmund Dantès era uma riqueza tão grande quanto o tesouro que ele havia encontrado na caverna da ilha. Com uma solidão assim, é que aquele livro estava me ensinando a sonhar.”

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho