O conde de Monte Cristo (final)

A ausência de Tomás Seixas e as longas conversas sobre o conde de Monte Cristo e Napoleão Bonaparte
01/09/2004

É preciso querer viver – e saber morrer.
Napoleão Bonaparte

Foi com Tomás Seixas — no terraço cercado da umidade da chuva — que eu mantive as melhores conversas sobre Napoleão, guardadas na memória abarrotada de conversas frívolas, sobre espíritos menores e escritores medíocres como Hemingway. (Contista esforçado da minha geração, recordo o choque de Maximiano Campos, quando eu lhe disse o que pensava sobre o atlético Ernest, com o seu O velho e o mar falso como uma nota de quarenta dólares.)

Tomás não perdia seu tempo a conversar sobre autores como o prêmio Nobel americano notável somente por alguns contos a respeito de pescarias no rio da infância, com iscas modestas e pequenos peixes brilhando, num cesto, como pinturas cerâmica infantis consagradas à suavidade de certos mortos.

Napoleão não era — nunca poderia ser — um morto suave, e Tomás e eu sabíamos que Deus tocou na face do imperador, para fechar seus olhos cravados nas vigas carunchosas da fazenda de Santa Helena onde o ódio da Inglaterra tentou confinar a grandeza do conde de Monte Cristo vencido que foi o Corso. A força da literatura sustenta a minha frase absurda: eu deveria dizer que o personagem de Dumas foi um pequeno Napoleão vitorioso — e não o contrário —, porém é mais eufônico e “soa” misteriosamente acertado pôr os carros adiante dos bois, neste caso. Napoleão Bonaparte foi um Edmond Dantès com o poder de enviar para a morte na neve quinhentos mil soldados tombados somente na desastrosa campanha da Rússia.

O mundo ainda se choca com o número — e talvez não pensa na morte individual de cada rapaz atolado na lama, a mão gelada a apertar a miniatura do retrato de uma moça de olhos cinzentos de Charleyville.

Tomás era fascinado pelo fato de o jovem tenente Napoleão Bonaparte (ali no seu quarto, escrevendo sob a luz de uma meia vela incerta, poderiam saber que a Europa seria profundamente mudada pela vontade e pelo gênio daquele oficial da Córsega, de baixa estatura?) ter anotado, ao acaso, num dos seus cadernos: “Santa Helena: pequena ilha do Oceano Atlântico, colônia inglesa”. Ao acaso?

Não é esse sinal digno do herói de um romance de Alexandre Dumas? Não há um duende nessa anotação no caderno de um jovem tenente da França que sonha, num quarto esquálido, com todas as mil palavras de revelação escondidas?

Napoleão era um predestinado. Ele — isto é, alguém coroado por uma cobra que forma o “N” — estava já representado no planisfério de Denderah, na nuvem escura do futuro longínquo de sentimentos arrebatados vulgares, tristes, alegres e extremados de triunfo e derrota (era assim que Tomás falava) que foi o que Bonaparte viveu, desde a Revolução até Santa Helena, passando pelo retorno perfeitamente montecristino de Elba.

Revejo o poeta da rua das Graças silencioso, a borda de porcelana da xícara de chá tocando o lábio enquanto seu pensamento voava para a solidão dos sombrios rochedos da ilha surgida, há milhares de anos, de uma erupção vulcânica e cheia de muralhas de lava, negras e abruptas, abrindo-se em fendas profundas diante de um mar cor de chumbo.

Saint Helene! Ao anos aproximarmos do porto, tomamos essas ravinas hiantes como sendo a entrada do Inferno. Estas muralhas sinistras não seriam obra de demônios? Ali, nada trai a mão do homem, a não ser alguns canhões dissimulados entre os rochedos. O solo, que não passa de lava esfriada, estala sob os pés do viajante. É a ilha da morte.

Esse fragmento do bom Emil Ludwig expressa bem o que é — ainda hoje — a aproximação da ilha pelo mar, como corre que os revoltosos pernambucanos de 1817 queriam fazer, armando um veleiro para trazer Napoleão para Pernambuco, sob a bandeira da Confederação do Equador a prestar todas as honras ao imperador dos franceses e, principalmente, ao vencedor de Lodi, ao general de Arcole, ao triunfador de Marengo, ao herói de Austerlitz, ao estrategista de Ulm e Varsóvia, ao conquistador de Viena…

Este é um texto que deve soar antigo e solene. Não posso homenagear Tomás Seixas escrevendo no estilo de Fernanda Young bêbada. Preciso ouvir, em paz, o poeta a recitar o seu texto elegante mesmo do homem em chinelos e com a camisa ligeiramente fedida dos velhos solteirões que não costumam primar pelos cuidados metrossexuais da masculinidade ambígua do nosso tempo:

“Napoleão e Monte Cristo tiveram amigos devotados e inimigos mortais, sendo que o Imperador, por haver sido uma figura humana e não um personagem de romance (embora Goethe sempre o tivesse considerado também assim), até depois de morto continuou a ter amigos e inimigos, dos mais variados tipos. No entanto, quando comparados à grandeza dele, todos os seus inimigos póstumos reunidos não valem um caracol… E se um Ramalho Ortigão o incluiu entre os monstros e os bandidos da história (As farpas), um falso historiador, ou historiador de meia-tigela como Van Loon, tentou fazer brincadeiras rotarianas com a dignidade do Imperador (América), e o romancista de loucos e degenerados, que é Faulkner, para o diminuir, num dos seus mais repulsivos romances (O som e a fúria) chama aos generais dos seus exércitos de ‘ilustres patifes’. Na neblina mental da sua habitual dipsomania, é bem possível que o escritor americano haja confundido os nomes de Ney, Marmont, Masséna, Murat, Lannes, Berthier, Junot, Duroc, Davoust e Mac Donald com os nomes de alguns generais da Guerra da Secessão ou com os de alguns políticos norte-americanos, de ontem e de hoje.”

O poeta Tomás Seixas — admirador de Conrad, Proust, Rilke, Mann, Joyce, Eça e Machado de Assis — não encontrava lugar, no seu panteão verdoso do limo do passado, não encontrava lugar para o santuário de William Faulkner no templo europeu das suas admirações mais firmes, todas fincadas num tempo em que se tentava ler até Goethe no original, aprendendo a línguas como Tobias Barreto aprendera o alemão: lendo os livros, com um dicionário capaz de dar de cabeça no meio da fumaça dos lampiões domésticos de Escada.

Quanto a Ramalho Ortigão, ninguém se tornar conhecido por esse nome e não ser um perfeito idiota. O co-autor de O crime da estrada de Sintra é unicamente lembrado pela narrativa escrita a quatro mãos (ou a duas mãos e duas patas). Ortigão, com a sua pança das tascas da Baixa, foi dos portugueses que aprenderam a odiar Napoleão e Junot, pela invasão de Portugal e mais nada. Mas nem todos os lusitanos seguiram tão caninamente as emoções dos liceus de jovens alfacinhas de tamancos ensebados. Almeida Garrett, escritor admirável, fez a defesa de Napoleão em Viagens na minha Terra: “Lembro-me muito bem que nunca me persuadi que ele fosse o monstro disforme e horrendo que me pintavam naquele tempo. Porque imaginei sempre que, para excitar tantos ódios, era necessário que ele fosse um bem grande homem”.

Quem viu Tomás Seixas lamentar Napoleão confinado em Santa Helena, há de seguir pela vida fortalecido contra todas as indignidades. Deixo que ele fale, nos meus ouvidos ainda encantados:

“Os inferiores costumam investir, sempre, contra os que são grandes. Edmund Dantès, desde a época em que era apenas um morto-vivo na fortaleza de If, donde saiu por desígnio de Deus, até ao mágico instante em que, igualmente por vontade divina, se viu transformado no poderoso Conde de Monte Cristo, foi sempre um homem admirável. E o mesmo se pode dizer de Napoleão, cuja volta de Elba não é menos surpreendente do que a evasão de Edmund Dantès, ou a sua transformação de trágico presidiário em Conde de Monte Cristo. E foi durante a retirada de Moscou, nos Cem Dias e em Santa Helena, que o Imperador, ou le seul Roi dont le peuple a gardé la mémoire (Stendhal — Napoléon), à exata semelhança de Edmund Dantès, no cárcere de If, deu as maiores provas de resignação, dignidade e coragem. E quem ignora que a epopéia de sua vida se acha para sempre associada a livros como O vermelho e o negro, A cartuxa de Parma, O tio Goriot, A pele do onagro, Guerra e paz e Crime e castigo, e ainda a muitas outras obras de caráter histórico, social e político da mais alta importância? Beethoven, que era bastante irascível e jamais cortejou o poder, ou os poderosos, lhe dedicou a Sinfonia Heróica. Stendhal, Byron e Goethe tiveram a maior admiração por ele. A lenda napoleônica — escreveu Goethe — é como a revelação de São João. Cada qual pretende que há mais alguma coisa, mas não sabe o que é! O que os séculos procuraram em vão, percebeu-o ele numa visão clara. Toda a mesquinhez desapareceu. Só o essencial — a terra e as águas — é que ficou. O homem deve voltar ao nada. Como, porém, tudo é feito de maneira natural, os demônios se encarregam de armar-lhe cilada por cilada. E foi assim que o próprio Napoleão sucumbiu.

Já era tarde. O lusco-fusco do começo da noite parecia um filme úmido de luzes rolando para além do terraço daquele homem furiosamente solitário. Ele olhou-me como um cego, e vi que chorava por Napoleão Bonaparte pouco depois de ouvirmos a hora do Angelus saída de rádio inocente, em alguma cozinha perfeitamente vulgar das proximidades. Saí pela rua das Graças, após me despedir de Tomás da Veiga Seixas — sozinho na casa assobradada que ele chamou “dos sonâmbulos” — perguntando-me quem ainda chorava pelo Imperador, em qualquer parte do mundo que é apenas uma ilusão, uma vertigem entre dois lapsos de luz e sombra, do nascimento à morte que nos apaga, na Santa Helena de cada um de nós, sobreviventes?

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho