O céu não é tão longe

Conto de Sergio Faraco
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2007

Ao prender a rédea no palanque, onde paravam já outros cavalos, notou Isidoro que, na cancha de osso ao lado do bolicho, os homens o olhavam, e tais olhares, embora insistentes, não eram provocativos, antes curiosos, surpresos. Gente conhecida, peões da vizinhança que folgavam, e Isidoro, que vinha de uma estância próxima, onde capatazeava, e ia para outra mais distante — as visitas domingueiras ao mano —, estranhou essa atenção. O zunzum sobre a menina cruzara já a porta do bolicho? Afrouxou sobrecincha e cincha, aliviando o ruano. Deu uma palmada na paleta do animal, pendurou o chapéu na cabeça do lombilho e arrodeou o palanque. Da cancha, ainda o olhavam, agora com disfarce.

Três homens ao balcão.

— Buenas.

Nenhum se voltou. Bebiam. Joaninha, saindo da cozinha, murmurou algo que ele não compreendeu e imaginou ser um cumprimento.

— Como passa o senhor seu pai — indagou à moça.

— Assim-assim.

— Continua no hospital?

Pois continuava, e derrubou o copo ainda vazio de Isidoro.

— Ai, desculpe.

Ao servir, as mãos dela estremeciam.

Os homens, que no toco Isidoro esmiudara, eram três polacos um tanto despilchados: dois de alpargatas, camisas remangadas, o outro com a túnica de um longínquo sargento, puída, sem botões, e tênis tão acalcanhados que pareciam natos já como chinelos. Admirou-se de nunca tê-los visto e, pior, não receber a saudação que se costumava dar a quem chegava, perguntando-se pelo destino e o estado do cavalo.

Era gente da cidade.

E pela estampa, gente ruim.

Na ponta do balcão, olhos baixos, ele degustava sua branquinha, e num gesto mecânico levou a mão ao coldre, na guaiaca. O revólver ficara em casa, não o carregava aos domingos. Um gole e sentiu-se menos cismado, e logo bem-disposto ao ver os polacos pagarem a bebida e se retirarem. Um deles disse à moça:

— As melhoras de seu pai, dona.

Joaninha abriu a boca, mas não se ouviu nenhum som.

— Outra — pediu Isidoro.

Ao invés de servi-lo, ela correu à porta para espiar. Isidoro a observava e ouviu o rumor das patas quando os homens ganharam a estrada, a trote. Joaninha se acercou, ofegante.

— Fuja, fuja!

— Mas que é isso, moça?

— Estão armados e dêle a perguntar pelo senhor.

— Ah é? E o que a moça disse?

— Que o senhor passava de manhã, ia visitar o irmão na Alvorada. Só depois vi o revólver… Fuja, seu Isidoro!

— Não tenho do quê, vai ver que é negócio.

— Não há de ser! Não há de ser!

— Moça preocupada com o pai…

E passou-lhe a mão no rosto, um gesto quase delicado.

Joaninha tinha 32 anos e era solteira, também dentuça, feinha, mas um mimo de mulher, se conduta e bom gênio contassem no juízo masculino. O bolicheiro desejava casá-la com Isidoro, mas este, por mulherengo, negaceava, não era de seu feitio aferrolhar-se a uma mulher e o que lhe apetecia era manter dois ou três cambichos nos puteiros de Maçambará. No entanto, a uma única mulher devia o perigo que talvez estivesse a correr.

— Não se assuste — tornou —, será algum interesse nos meus boizinhos. Em todo caso, se a moça vai se anervosear é melhor que eu leve aquela parabelo do senhor seu pai. Não que precise.

A caminho da Fazenda Alvorada, Isidoro devotava seus pensamentos a uma outra estância, a do Umbu, e figurava a caçula de Dom Romualdo Castanha, senhorita Maria Luíza.

***

Ao recorrer, com a devida licença, os campos lindeiros do Umbu, à cata de uma rês extraviada, vira o petiço na margem do arroio, amarrado a uma sina-sina, e Maria Luíza seminua, reclinada no pasto sobre a toalha. Rapariga levada. Já uma vez o provocara com requebros e nhenhenhéns, quando estivera no Itaqui para tirar um documento e visitara o pai dela. Era da raça do fósforo, bastava um risco, maiormente agora que despachara o noivo amaricado. Ia passar ao largo, mas a tentação de vê-la de perto foi mais forte.

Maria Luíza sentou-se, abraçando as pernas. O seio, encobrira com a ponta da toalha.

— O senhor por aqui, seu Isidoro?

— Eu mesmo. Desde cedo estou campeando a mocha brasina que varou o alambrado. A menina não viu?

— E que visse… Não conheço pêlo de vaca.

— Brasina é cor de brasa, malhada de escuro.

— Posso ter visto… sem ver. Não quer apear?

— Grácias, aceito.

Ao desmontar, atando a rédea na mesma arvoreta, não dissimulou uma olhadela à calcinha da menina, onde abojava aquela sombra densa. Acocorou-se a meia distância.

— Então… como passa Dom Romualdo?

— Bem. E seu patrão?

— Bem.

— Está aí?

— Não, foi ontem pro Itaqui.

— Papai foi hoje. Se estivesse aqui, eu não poderia me bronzear. Fico assim como o senhor vê, quase sem roupa.

Ele aprovou com a cabeça, embora lhe fosse difícil entender por que ela precisava se tostar ao sol da meia-tarde.

— São essas coisas…

— Que coisas, seu Isidoro?

— Bueno, coisas da vida…

Ela riu, e os alvos dentes do riso a tornavam mais convidativa. Na sina-sina, o petiço priscou, mordido pelo ruano.

— Olhe só o seu cavalo, que malvado.

— É retouço. Quem não gosta de um retouço?

— O senhor gosta?

— Eu mais que todos.

— O senhor é tão engraçado…

E riu de novo. A toalha tinha caído e Isidoro viu o seio nu, apertado contra o joelho.

— E a senhora, se desculpa o atrevimento, uma lindona.

— Acha? — e mordeu o lábio, e estirou as pernas, e nos mimosos morretes os bicos negros e eriçados pareciam apontá-lo e culpá-lo por falta de saliva. — De rosto?

— De tudo — a garganta lhe secara — e mais um pouco.

— Mais um pouco?

— Um pouco muito — e ajuntou, num arranco: — Uma dona como a senhora leva um homem até o céu.

— O senhor também, seu Isidoro?

— Mais que todos.

Ela se aproximou, de gatinhas, e tocou no braço dele.

— O céu é muito longe. Não quer ir comigo até a tapera, que é mais perto?

— Com a senhora — pôde responder, num cochicho, aturdido pelos corcovos de seu sangue —, vou até onde mora o belzebu.

Antiga morada de um posteiro, a tapera era o refúgio de um cacunda guacho que, durante o dia, esmolava na vila do Bororé. As paredes de tábua estavam prestes a tombar. Não tinha telhado, e folhas de zinco na cercania atestavam a violência do vendaval que a destampara. Tivera quatro peças, agora três com a queda de um tabique, e por tudo coalhava a flexilha, despontando no buraco das janelas. Por tudo, não. A um canto, a casita dentro da casa: uma pequena cobertura de zinco e couro, à meia altura da parede, suspensa em cada extremidade por dois pares de tramas em xis enrabichadas no chão. Debaixo, um pelego sobre tábuas e ali a menina deitou, arreganhando as coxas, as narinas a fremir como as das éguas.

E era limpa, cheirosa, e era macia. E como sabia se acomodar, espremida pelo macho, como o entrelaçava, apresilhando-o com as pernas trigueiras, como o aceitava, secretando a vereda de seu faminto abismo. E Isidoro, estuando de desejo e emoções desconhecidas, começou a descobrir que, em sua vida empachada de mulheres, era a vez primeira que veramente entrava num corpo que ansiava por seu corpo, era a vez primeira que veramente cobria uma mulher e o resto era bagaço comprado a pouco pila.

A fortuna é perversa: se dá o pão, tira o miolo.

Quando o cacunda os viu e abalou feito o gato da água, Isidoro pressentiu que sua descoberta tinha preço. De fato, na mesma semana soube que Dom Romualdo sapecara a filha, e esta, sem demora, fora devolvida à casa da cidade, à mercê da língua do povo e fadada a morrer solteira.

E agora aqueles polacos.

***

Avançava o ruano a passo, vigiado pelo passaredo na galharia que se debruçava sobre a estrada. Vinha uma jardineira ao seu encontro, com ela uma musiquinha, e Isidoro disse consigo que o peão da Alvorada, que nos domingos demandava ao bolicho por mantimentos, jornais e cartas, estava atrasado. Costumava topar com a jardineira mais cedo.

Pararam.

— Buenas — disse o peão, desligando o radinho Spica, sintonizado na Rádio Itaqui.

— Buenas.

— Como passa o senhor?

— Bem. E tu?

— Bem.

Calaram-se, por momentos olharam ao longe para algo que certamente não viam.

— E meu mano? — recomeçou Isidoro. —Guareceu do pé?

— Pois guareceu. Já hoje andou montando.

— Não dói mais?

— Diz que dói, mas menos.

— Tem que ir no doutor.

— É o que eu digo.

— Mas é xucro.

— Demais.

Isidoro dobrou a perna, repousando-a no pescoço do ruano.

— E esse tempo? Vem água pra de noite?

— E vem que vem, a formiga anda que só ela.

— Eu vi.

— Formiga não mente.

Riram. Isidoro ofereceu a fumeira.

— Tá servido?

— Como não? Já fiz o meu hoje, mas… mais um, menos um…

Fizeram os cigarros e fumaram em silêncio, com longas e prazerosas tragadas.

— Me voy — disse Isidoro, recolhendo a perna. — A formiga é sincera, mas que a manhã tá bonita, tá.

— E movimentada.

— Não diga.

— Digo. No mato aqui pra trás, perto da cruza da sanga, vi três pilungos maneados.

— Três?

— Um, dois, três.

— Um gateado e dois rosilhos?

— Encilhados.

— De que lado?

— Pro senhor, às direitas.

— E os fulanos?

— Até parei pra olhar. Não se mostraram.

Por isso se atrasou, pensou Isidoro.

— Bueno, te aguardo na Alvorada com o mate andando.

— Com muito gosto — agradeceu o peão. E para o cavalo: — Te mexe, lasqueado!

A jardineira se afastou, erguendo difusa polvadeira, e Isidoro cutucou o ruano. Inquietava-se, mas não era homem de fazer volteios diante de um aperto. De que adiantava refugá-lo? Conseguindo hoje, amanhã não conseguia e então era o caso de apurá-lo, quando menos para não passar dias e semanas no puxa e afrouxa, com prejuízo do serviço. E mais: fazia oito anos que, no domingo, ia matear com o irmão, que retribuía no seguinte. Não ia atropelar o costume, entregando as fichas àqueles sebentos.

Meia-légua adiante a estrada serpejava coxilha arriba. Além, no fim do lançante, assanhava-se um fio d’água entre pedregulho que chamavam Sanga dos Antunes, e grassava o mato pelas bandas do caminho. Quem quer que lá estivesse à espreita avistaria um ginete no topo da coxilha, mas Isidoro, a passo, seguia rumo ao seu destino.

Seguia também o dia no campo, que se abria qual um mar: a garça-vaqueira no meio do gado, a inocência estrábica dos nhandus te mirando, e te mirando também, de um moirão, o perverso quiriquiri, e o grito das saracuras num banhado, e a vigilância ruidosa dos quero-queros, e o vôo remoto dos infaustos urubus, evocando a morte, e a doçura das rolinhas-picuí a namorar num garupá, evocação da vida. Uma súbita preá cortou a estrada, em busca de seu gravatazal.

À distância, podia afetar que o ginete cabisbaixo vinha adormecido ou borracho, mas seu olhar espiolhava o cenário: acabara de ver adiante os cavalos, onde lhe indicara o peão, e os fulanos, decerto, estariam à esquerda, supondo que haveriam de surpreendê-lo. Apeou e, com o ruano a cabresto, entrou no mato, não muito, o bastante para arredar a montaria do bochincho. Com rápidas passadas retornou à orla e se ocultou atrás de uma guajuvira. Enxergava o caminho de laço a laço e, por supuesto, quem tentasse atravessá-lo. Sabiam os polacos que ele apeara ali, mas o que não sabiam nem podiam saber, porque eram da cidade, é que ninguém se move despercebido num capão cerrado: aqui vai o intruso, diz o bulício das asas nas grimpas do arvoredo.

Ao pé da guajuvira, esperou.

Eles se aproximavam e acima de suas cabeças esvoaçavam ora a juriti-pupu, a caturrita, o bem-te-vi, ora o pardalzinho, o sabiá-laranjeira, o tororó, e Isidoro crispou-se quando a revoada alcançou as primeiras árvores esparsas. Encostou a pistola no tronco e não precisou esperar mais: lá se vinham, arrastando-se entre as guanxumas. Então ignoravam que a natureza os denunciara? Divisava uma perna e era nela que lhe dormia a mira, um susto e os botava a bom galope. Mas eles trocaram de lugar e então Isidoro, a dez braças se tanto, viu distintamente apenas dois polacos.

E o terceiro?

O terceiro, ele não veria jamais.

Sentiu o baque nas costas, que o grudou na guajuvira. Intentou voltar-se, outro tiro o atingiu na nuca e ele escorregou, abraçado ao tronco, até ajoelhar-se e logo despencar de bruços na folharada.

— Alguém lhe manda lembranças — disse o homem da túnica.

Tossia, deitava sangue da boca, do nariz, mas naquele veloz instante, antes que o nada lhe carcheasse todos os pensamentos e todos os dias por viver, pôde figurar mais uma vez a caçulinha dos Castanha. Na memória da pele ainda guardava o cheiro dela, um cheiro alado que o remontava da orla do mato para um peleguito entre flexilhas, onde o deus que mandava no desejo, andando de quatro como um bicho, trazia nas ancas, em balaios de ramaria, o sabor agridoce da pitanga e os suspiros e os gemidos da menina. Não era tão longe o céu. Que lhe cobrasse a vida chica! Ao menos não a perdia por doença, mordido de coral, em salseiro numa cancha de osso ou contra a faca de um maleva encachaçado, mas pro via de um dourado corpo de mulher e com o recuerdo daquela tarde na tapera.

Sergio Faraco

Nasceu em Alegrete (RS), em 1940. É autor, entre outros, de Dançar tango em Porto AlegreRondas de escárnio e loucura e Lágrimas na chuva.

Rascunho