Se minhas linhas te parecerem ininteligíveis, te peço paciência, porque estou fraco e velho, e a força que ainda me resta, emprego-a para sustentar e mover esta pena.
— Meu nome é Rainer… Rainer Maria Rilke, ou melhor, a sombra que hoje restou. Somente um contorno esfumaçado e cinzento, e não é mais possível identificar o que um dia foram os traços do meu rosto, o formato do queixo, a largura da testa, as cores ou a forma dos lábios, uma incógnita. Mas minha memória está intacta.
Eu era autoconfiante. Um ser superlativo. A começar pelo meu padrão físico que se assemelhava, em tudo, a uma girafa. Cabeça lá em cima. Da cidade, era o mais alto, e bem entendido, não somente em estatura. Meu privilégio, portanto, o de ver mais. Mais alto, mais fundo, mais largo, e até as cores, generosas, se ofereciam a mim com mais tons. Meu horizonte era… além.
Meus olhos tinham aproximadamente vinte por cento mais volume do que quaisquer outros, fato este que me propiciou o efeito misterioso de, por duas vezes em minha vida, ver a alma. A primeira, na infância, sentado no sofá, na sala de casa, escutando um interminável sermão, entrando numa espécie de transe, minha audição sumiu, e o espaço foi tomado por uma luz que de início surgiu tênue, mas cresceu em intensidade até apagar, como a borracha de uma criança que conserta um desenho, todos os traços que se reconheciam como sendo meu pai, e em seu lugar, surgiu…, descortinada, plena e nua, a sua alma. Fiquei confuso, porque o que via em nada se parecia com meu pai, autoritário e distante. De repente uma sombra, só que inacreditavelmente branca, avançou em minha direção e quanto mais se aproximava, um calor ia me envolvendo, e passei a experimentar sentimentos de candura, aconchego, segurança e a sombra se formou no ar, como uma espécie de grande mão, e violentamente, mas sem dor, me jogou contra meu pai. Nesse momento, apesar de toda nebulosidade que aquele sentimento me causava, entendi que o que estava sentindo era amor. E a alma era o substantivo feminino para o amor. Acontece que a alma misturada com o corpo se despurifica, é poluída, distorcida, e se parece com o que não é. E agora havia visto uma, pura e desprotegida, mostrando o que estava escondido. Meu pai me fora colocado nos braços como um recém-nascido. E eu descobria, aos sete anos, o que era ser responsável. Era eu quem tinha de cuidar dele. Que poder acabara de ser-me imputado: conhecer meu pai mais do que ele a si próprio.
Fato difícil, mas inconfundível — o amor.
Desde criança havia em mim a estranheza de exercer sobre os outros uma espécie de magnetismo que os levava a desejar, com risco, imitar-me, seguir-me, como se inebriados por um perfume.
Consciente e empolgado de meu poder, aos quarenta e três anos, decidi tornar-me professor. Tinha muito a ensinar sobre como ser eficiente na vida. Sentia a superioridade da minha vocação. E o tempo parecia-me urgente. Passei a divulgar no jornal a intenção de ensinar minha metodologia. Faria uma seleção dos interessados.
Chegaram muitas cartas. Candidatos de diferentes raças, religiões, posição social, formação, ideologia política, etc. Uma, porém, intrigou-me, porque embora fosse de um cidadão daquele país, estava escrita em outro idioma, e era justamente nessa língua que também eu, secretamente, fazia anotações sobre minhas descobertas, impressões, estudos, e até poemas . Perguntava-me se o rapaz saberia disto. Como poderia alguém saber de meus registros escondidos? Fui tomado de inquietação, minhas mãos começaram a suar, tive uma sucessão de tonturas que me obrigaram a deitar, os ombros e o peito doloridos. Teria a camareira descoberto, no fundo falso de meu armário, meus livros escritos desde a infância? Precisava encontrar um modo de abordá-la sem que ela jamais desconfiasse que escondia qualquer coisa, pois aí sim, induzida por incontrolável curiosidade, se empenharia nas minhas ausências a descobrir o que eu ocultava. Melhor ainda, seria melhor não sair mais de casa às terças-feiras e mudar a fechadura, obrigando-a a bater para que eu abrisse.
Quanto ao jovem com quem cismara, escrevi-lhe chamando-o para uma entrevista.
Lembro-me bem daquele dia. Estava muito quente e úmido e uma leve sensação de sufocamento me incomodava. Pouco antes da hora marcada, buscando um pouco mais de ar, resolvi ir até a sombra do jardim, onde estava o banco de madeira, entalhado por meu avô há tantos anos, no qual, planejara, sentaríamos. Caminhei em meio ao roseiral admirado da beleza das suas pétalas em contradição com o perigo dos espinhos. Apesar da umidade daqueles dias, havia, quase descoladas dos caules, algumas folhas secas e velhas, que passei a arrancar.
Surpreendi-me com uma voz muito fina e baixa que chamou meu nome:
— Senhor Rainer Rilke!
Estranhamente, apesar da alta temperatura, Kafka vestia uma casaca preta, de onde, a partir da cintura, descia uma cauda que se dividia ao meio até quase tocar o chão, a camisa branca estava impecavelmente engomada, e da gravata, também negra, pendiam, divididas, duas tiras. Antes de nos cumprimentarmos, um olhar mutuamente penetrante nos precedeu, instaurando imediatamente um inexplicável desconforto em mim. Aturdido, convidei-o a entrar.
Ele se aproximou caminhando em minha direção. Estendeu-me a mão geladíssima, e entendi, então, o porquê da roupa pesada e escura.
Apontei o banco para que sentássemos, e quando ele deu um passo, inexplicavelmente, tropeçou num pedregulho, e tentando se agarrar em algo, espetou seu dedo numa rosa.
Corri ao escritório e peguei desinfetante, atadura e fiz-lhe um curativo.
Sentamo-nos, servi-lhe chá quente e, no outro idioma que nos era comum, tivemos a seguinte conversa:
— A carta do senhor me pareceu bizarra porque está escrita em alemão, e não em tcheco!
— É que eu me sinto fragmentado em muitos pedaços, não encontro uma unidade, e para expressar essa estrangeiridade em mim, me comunico em outra língua.
— Como… como assim?!
— No dia em que sua carta chegou às minhas mãos, trazida por meu companheiro de quarto, Antoine, eu estava sentado num café próximo ao meu apartamento. Sentia muito frio e uma leve, mas profunda, dor em meus ossos, porque apesar de só ter vinte e dois anos, meu corpo me faz sentir como se fosse um velho. Meus olhos estavam parados, sem horizonte. Ao fundo escutava um som insistente, que entrando por meus ouvidos descia e se espalhava por todo meu corpo como se levado por minha corrente sanguínea. O som de fora e o meu de dentro se fundiram. Assim, eu me tornei o próprio som, que, sendo repetido e ritmado, me fez sentir o que nunca havia experimentado, uma organização.
Pela primeira vez em minha vida me senti inteiro. Ganhei uma visão de mim mesmo, não uma parcial e enevoada, mas ao contrário, plena. Era como se meus fios de cabelo, as costas, a nuca, as dobras das orelhas, e todos aqueles lugares de si, onde jamais alguém se vê, ficassem estampados, prontos para serem explorados. E esta visão não vinha dos olhos, mas dos sentidos. Desejei imensamente ir mais fundo.
Comecei percebendo os ruídos a minha volta, os quais estranhamente não podia entender, alguma coisa pulsava e não reconhecia meu coração, via imagens que não faziam sentido algum, senti um calor na boca e nas mãos. Não sabia o que era um café.
Estava absolutamente sendo, em silêncio, como os bichos.
Estes, sim, nesse momento entendi, podiam ter plena consciência de si, porque nada lhes é largo, profundo ou futuro, tudo está. Já.
Neles não há dúvida ou medo, nem a dor do tempo, da perda, da falta, da morte, simplesmente: É-se.
Além do mais, nunca aspiram sair de sua condição de bicho, para se tornar outra coisa.
Justamente quando estava mergulhado no máximo de mim, senti Antoine pressionando meu ombro, buscando acordar-me daquela letargia. Essa volta indesejada à realidade foi como um esmagamento a sangue frio. Tudo se desorganizou novamente porque, voltando à condição humana, reconheci que o som repetido que ouvia vinha do cortador de frios no fundo da loja. Segundos atrás havia estado inteiro, e agora minha unidade, como a peça daquele queijo na máquina, estava sendo fatiada em pedaços, e doía.
Antoine entregou-me então sua carta, marcando este encontro.
— Mas ainda não entendo bem a questão do idioma estrangeiro!
— Desde criança, sempre fui baixo, escuro… e como minha existência me pesava demais, tive sempre a sensação de precisar ter mais pernas do que tinha. Sem contar o estado rasteiro e furtivo em que freqüentemente observava meu espírito indo por meandros escuros, lugares de putrefação… Sentia-me como quem rastreia lixo. Estrangeiro a tudo, e, exatamente por esse motivo, passei a escrever em outro idioma, porque descobri que não havia comunicação possível, a não ser na solidão que é falar-se a si mesmo.
— Não creio que esteja te entendendo! E…
— Há alguns anos, decidi desenhar-me para ver, se de alguma forma, descobriria quem era. Levei alguns dias trabalhando no retrato, mas estranhamente acontecia que, por mais que me esforçasse, só conseguia ver as partes desconectadas do desenho, nunca o todo. Um dia, porém, inesperadamente, olhei e vi, por inteiro, o meu retrato. Ao olhar espantado para o papel, vi um borrão. Havia uma linha central que dividia ao meio, o que parecia ser um par de asas largas, que se afunilavam ligando-se à cabeça, de onde saíam, na altura da testa, dois fios, que se projetavam como antenas. Os olhos estavam estáticos e as pernas eram muitas e finíssimas. No desenho, eu estava completamente nu, e era uma barata. Somando-se a esta evidência, refleti que no amor havia sempre me sentido assim. Não poderia haver relação possível entre uma mulher e a barata que eu era, a não ser para espantá-la, ou ser pisoteado por ela. Abdicara para sempre de amar.
— Mas você é um homem e não uma barata!
— Não, porque a partir daquele dia, resolvi experimentar viver como uma barata, mergulhei no presente ininteligível, no som sem palavras, na visão sem sentido, passei a viver a realidade como ela é, sem entendimento algum, assim como os bichos.
Comecei a sentir-me mareado e, na medida em que ouvia, era como se meus conceitos assépticos e eficientes fossem escorrendo das páginas dos livros, no fundo falso de meu armário, transformando-se em borrões indefinidos e imundos, como se tudo que sempre acreditei estivesse ruindo como um castelo de areia levado pela maré.
De repente, como um sopro no meu rosto, lá estava de novo, pela segunda vez em minha vida, diante dos meus olhos, a alma de um homem. Era mais branca ainda do que a que vira em meu pai, mas estava como se salpicada de pontos escuros, principalmente na altura da testa e do coração.
O que era aquilo?! Sentia urgência em entender. Era como se alguém estivesse prestes a morrer na minha frente e eu fosse a única pessoa por perto para socorrer. Lembrei-me da sombra branca que, havia anos, me jogara contra meu pai, fazendo-me conhecer o amor. Procurei me acalmar e fiquei em silêncio. Ao fundo ouvi que Kafka continuava falando, e isso me fez suavemente voltar ao banco sombreado e rodeado de roseiras, e ao homem sentado ao meu lado.
Ficamos mais alguns instantes conversando e, terminada a segunda xícara de chá, nos despedimos. Sugeri que se realmente desejasse tomar as tais aulas comigo, ele poderia começar me escrevendo e contando um pouco sobre sua rotina.
Passados alguns dias, recebi uma carta que dizia:
— Prezado senhor Rilke, na noite que se seguiu ao nosso encontro, a ferida causada por aquele espinho infeccionou, e tive febre alta, acompanhada de delírios, em que via uma roseira que crescia de forma desordenada e fantasmagórica, contendo muitos espinhos e quase nenhuma pétala, um descontrole desconcertante, assombroso.
Nas noites e dias que se seguiram tenho sentido, freqüentemente, acelerações repentinas em meu coração, como alguém, surpreendido por constantes sustos. A febre continua indo e vindo descontrolada, fazendo-me, todos os dias, perder muita água do corpo, que mal tenho força para repor. Quase não me alimento, e o espaço de meu apartamento foi ficando cada vez menor, até se limitar à medida de um metro e oitenta por dois metros, que é o espaço ocupado por minha cama mais a escrivaninha que tenho encostada na cabeceira.
Sentia-me impotente diante da morte progressiva daquele rapaz. Entrei num estado meditativo, fui ao quarto e retirei do fundo do armário os registros escondidos.Durante horas, folheei-os sentado no sofá do escritório, buscando na memória minhas mais tenras lembranças de infância e as emoções que me despertavam. Depois pensei o quanto havia sido bem-sucedido usando a razão, minha grande aliada, dirigindo minha vida pelo que chamei de “pensamentos certos”, aqueles que economizando minhas emoções e minha inteligência poupam-me da distração do que é inútil, e focam-me no essencial para acertar. Imaginava um modo de alinhavar minha vida. Da mesma maneira como alguém pegando pano, fios coloridos e uma agulha vai tecendo até ver pronta sua tapeçaria. Naquela noite, assim como em muitas que se seguiram, quase não dormi, empenhado que estava em escrever um livro. Quando ficou pronto, a primeira pessoa a quem o remeti foi para Kafka.
Passaram-se muitos anos e numa tarde fria e chuvosa de outono, passando em frente a uma livraria, vi um cartaz anunciando para aquela mesma noite o lançamento de “O Castelo”, de Franz Kafka.
A livraria estava lotada e quente. As pessoas alvoroçavam-se com o livro nas mãos, esperando na fila por um autógrafo, ou comentando sobre os lindos desenhos de nanquim com os quais, o próprio autor, o ilustrara. Algumas estavam pelos cantos lendo trechos do texto aos companheiros. Comprei um exemplar em que na primeira página, li: “Dedico esta obra a Rainer Maria Rilke, homem que, com seu livro, me levantou do leito de morte, me presenteando com a literatura, minha única possibilidade”.