O cantochão e a sombra

Um conto de Silveira de Souza
01/08/2003

Foram dias de sono e abstinência. Mas depois vieram os meus amigos — a bem dizer quase irmãos —, e afirmaram que eu estava pronto para fazer a travessia. Os rostos alegres e resolutos, com os seus olhos sorridentes e comovidos, eram o testemunho da verdade. Marcela trouxe a vasilha de barro que continha o líquido verde. Eu deveria beber, disse ela, como alguém que se despede de uma terra estranha para chegar à verdadeira terra. Aquela que é única e exclusiva, mas permite compreender todas as outras.

Com as mãos trêmulas de fraqueza ou medo, segurei a vasilha de barro e bebi o líquido verde de uma só vez, até a última gota. Enquanto deitava novamente no divã, ouvi Marcela dizer para que mantivesse os braços, as pernas, o corpo inteiro numa posição de relaxamento, de completo relaxamento. Ainda vi aqueles rostos amigos distribuídos ao meu redor, ao redor do divã, Marcela e Flávia, Emanuel, Augusto e o Zé Carlos, todos a me olharem com alguma ansiedade, todos tão distintos nas suas individualidades, os traços tão característicos, personalidades estruturadas em carne e sonho, unidades complexas e diversificadas de matéria com um núcleo impreciso de sonho, com a essência de… Então fechei os olhos e vi o grande túnel como um caminho de sombra, o grande túnel que parecia estreitar-se ao longo de sua extensão, mas que acenava uma minúscula mancha de luz diluída na distância quase impossível de seu fundo. Mas eu sabia não existir fundo e que a luz esmaecente era sinal daquilo que por enquanto eu poderia alcançar, a primeira etapa da travessia.

 

Minha irmã! Por que estava ela, nua em suas carnes brancas, na campina que se antecedia à floresta silenciosa ao sopé das montanhas distantes? Era minha irmã quem se aproximava, nua em suas carnes brancas, o andar lento e elástico de ancas bem delineadas, os seios alvos e firmes como nunca os consegui ver, postos à mostra, nua em suas carnes brancas, e o olhar que me fixava com a expressão de franqueza e bondade e inteligência que sempre tivera, e os lábios sutilmente entreabertos num mal dissimulado trejeito de sensualidade, que também muitas vezes nascera secretamente dentro de mim e que eu rejeitara todas as vezes com sentimentos de culpa e horror. Mas era assim que em tantas ocasiões eu a imaginara, aproximando-se, ela própria tomando a iniciativa para a qual eu jamais tivera coragem, e se chegasse bem perto, nua, e que os braços macios enrodilhassem com suavidade o meu pescoço, e os seios macios tocassem o meu peito também nu, que os nossos olhos se encontrassem cheios de compreensão e silêncio e que uma música misteriosa e selvagem dentro de nós marcasse a partir daí o ritmo desordenado dos nossos movimentos de liberação compulsiva.

Rolamos enrodilhados na grama nascente da campina, eu agarrava com violência os seus cabelos, idênticos aos de nossa mãe, e mordia o seu ombro como um animal em desespero e ela arfava de olhos cerrados e a boca aberta e dizia às vezes num gemido rouco como o rosnar de uma cadela, “meu irmão! meu irmão!”, e parecia então recrescer de excitação, as suas pernas trançadas nas minhas pernas, numa pressão mais forte, mais forte, mais forte, mais forte, até que nossas bocas se encontraram numa ânsia de devorar-se mutuamente, a saliva escorrendo pelo rosto dela sobre o chão e soltamos aquele uivo espasmódico do orgasmo final e os nossos corpos afrouxaram, tombados um sobre o outro, e assim ficaram, tanto tempo, tanto tempo, até que a nossa respiração se recompôs e as dimensões da vertigem se apagaram e vimos que havia nuvens no céu, que havia um céu, e também ervas no chão e árvores distantes, que antecediam a floresta.

Eu estava, não sei como, novamente vestido, e minha irmã, ainda nua e sentada na relva, apontava para além, “estamos agora libertos um do outro”, ela disse, “e você vai seguir para a floresta”, fui então caminhando pela campina na direção da floresta e sentia uma compreensão maior nascer dentro de mim, não uma compreensão definida ou determinada, mas uma compreensão vaga e abrangente de todas as coisas, como se a nossa inquietação de repente pudesse encolher alguns milésimos de milímetros e cedesse o espaço para uma leveza interior que desejava se expandir, ou como um animal que tivesse a pele distribuída em tantas camadas e um dia conseguisse entender que perdeu uma delas tal como uma capa inútil e desprezível.

Fui então pela campina na direção da floresta, certo de que os milésimos de milímetro de leveza, se não eram ilusórios, também não se constituíam numa conquista definitiva, porque sensações de outros níveis ainda pesavam no íntimo do meu ser, e as primeiras árvores indicavam aquele chão umbroso como úmida pasta cinza e verde de mil pequenas formas vegetais entrelaçadas, e os troncos que se multiplicavam na formação de infinitos corredores interligados, sob espessa massa de folhas surgindo da confusão de tentáculos, ramos, galhos, armados e expectantes num silêncio intencional. E sob aquele teto de ramagens compactas, e emaranhado nas veias e artérias que me cercavam e batiam sobre o rosto e enroscavam-se no meu corpo e sobre as quais os meus pés tropeçavam, num chão de umidade que desprendia um cheiro de seiva estagnada, mas ainda viva, como esperma dissolvido num pântano limoso, eu senti a inquietação primordial de um feto num ventre monstruoso e escorregadio e úmido e silencioso, intencionalmente silencioso, porque era tudo como a preparação para que gritos estridentes e longínquos de pássaros irreconhecíveis ou zumbidos atormentadores de insetos ou coaxar de sapos escondidos ou silvos, cicios, martelar ou serrar de inumeráveis e diminutos seres quisessem evidenciar sua existência como meus companheiros de ventre, aos quais nestas circunstâncias eu deveria forçosamente dedicar a minha atenção pelo simples fato de terem nascido como formas vivas e estarem ali como companheiros de ventre. “Meus terríveis irmãos”, eu pensei, “agora sei que eles são os meus terríveis e desprezados irmãos no mesmo ventre.”

Talvez também fosse tudo não mais que uma preparação para o encontro com o mundo dos elementares que começava a surgir. Sim, deveria mais tarde saber que eles eram numerosos e multiformes, deveria saber que muitos os conheciam como os elementares, mas agora era uma pequena cabeça que de repente surpreendi a me espreitar por detrás de um tronco, uma pequena cabeça do tamanho de uma batata, com olhinhos diabolicamente maliciosos, orelhas pontudas e focinho de morcego, uma cabeça que subitamente eram duas, pois lá em cima, na bifurcação do tronco de uma árvore, lá em cima outra cabecinha me espiava com os olhos de verruma e uma careta divertida e perversa que descobria os dentes miúdos de serrote, duas cabecinhas que eram três, quatro, cinco, que eram cem, ou eram trezentas, espalhadas em todos os recantos imagináveis ou impossíveis a minha volta, no chão entre arbustos e troncos, no alto das árvores, sobressaindo por detrás de uma larga folha, ou simplesmente no ar, uma rede de cabecinhas que me enchia de inquietação e me ligava a um tempo anterior, que deveria ser a infância povoada de lendas sobre um mundo de florestas mágicas e criaturas encantadas, mas que parecia ser igualmente um tempo além da infância (onde? quando?), um ponto aprisionado num lugar qualquer na essência do espírito como se fosse a cristalização — ou o sinal de permanência, de preconcebidas invariâncias — de um outro lado existido (onde? quando?), um outro lado que ainda projetava reminiscências indefinidas para o lado de cá, na forma de imponderáveis incertezas e vacilações (o exasperante sentimento interior de que nada se esgota ou preenche a verdadeira meta, porque esquecemos a verdadeira meta), e incertezas, e medos, e vacilações, e insatisfações, mesmo nos instantes de vitoriosas conquistas. E então, já não eram mais cabecinhas e sim pequeninos monstrengos, morcegos-gente, miniaturas de gente em forma de morcegos, que acompanhavam os meus passos vacilantes através da mata.

E as criaturas de trinta centímetros, morcegos-gente, se distribuíam inumeráveis, ágeis como os reflexos de luz de um caco de espelho nas mãos de um garoto, sumindo e reaparecendo por todos os lados, conduzindo-me como num fluxo de corrente, brincalhões, malévolos, irreverentes, obscenos, escorregando por entre as minhas pernas, puxando as minhas roupas por sacudidelas rápidas com as mãozinhas de morcego, mordendo-me a bunda ou a canela com os minúsculos dentes de serrote, levando-me aos tropeções num fluxo de corrente através da mata, cada vez mais fundo, para um lugar qualquer que eu não poderia sequer imaginar qual fosse, porque o desespero, a irritação ou a raiva impediam toda a tentativa para refletir. E assim fui sendo levado, reagindo às picadas agudas e aos puxões daquelas criaturas com braçadas cegas que não atingiam o alvo, procurando em vão pisoteá-las, soltando gritos e palavrões cheios de ódio, e também, às vezes, depois de um extremo esforço de contenção do ódio, que durava apenas segundos, buscava raciocinar, encontrar um modo de agarrar ou ferir os monstrengos intoleráveis, e então eles soltavam guinchos estridentes como gargalhadas de deboche e se movimentavam mais ágeis e redobravam as picadas, as mordidas, os puxões, na bunda, nas pernas, nos braços, milhares deles, num fluxo de corrente a minha volta, que ia e vinha, numa troca espantosamente rápida de elementos, e todo o esforço de raciocínio ou de esperteza vinha por terra, infrutífero. E assim fui sendo levado, cego e surdo de desespero ou raiva, e a reagir como um insensato, quando de súbito nasceu dentro de mim alguma coisa que se assemelhava a uma intuição da inutilidade das emoções, alguma coisa que levantava um novo enfoque da minha visão, como se um interruptor fosse acionado para dar origem a um outro plano de luzes no palco e eu, ator, olhasse a platéia indócil e exigente sob cores nítidas e reveladoras da sua pequenez cheia de ilusões, alguma coisa que partia definitivamente o elo do meu espírito com os atos de estupidez, crueldade, interesse, malícia, e ansiedade, e medo, e ódio, do mundo exterior, e me fizesse olhar os morcegos-gente como eles eram de fato: minúsculos morcegos-gente, elementares, fluxo de corrente que pretendia confundir os meus sentidos e conduzir-me para o seu mundo de inferioridade exasperante, o seu mundo de terra.

Assim, pois, dominado pela descoberta interior, cessei inopinadamente os gestos e os movimentos de resistência. Passei a olhá-los com uma naturalidade sem espantos nem julgamentos, despreocupado com as mordidas e os puxões. E comecei a observar que eles, a princípio, aumentaram a intensidade dos ataques, numa agitação furiosa e perplexa, com maior estridência dos gritinhos agudos. E que, depois, pareceram acalmar-se, tornando-se mais e mais silenciosos, e que, também, parecia diminuir gradativamente a intensidade do fluxo da corrente. E ainda depois, vi que andejavam eles todos pelo chão, absolutamente silenciosos, nos seus passinhos desequilibrados de morcegos, com as asas pontiagudas imóveis e descansadas, as pequenas cabeças de batata abaixadas como se meditassem, vencidas, eles todos no chão, formando um imenso mar silencioso a se mover para a frente em ritmada e suave ondulação. E que o silêncio e a escuridão dominavam aquele coração de floresta, e o cansaço entorpecia o meu corpo e mil alfinetes espetavam as minhas pálpebras pesadas de sono. Pesadas de sono…

Depois, foi como um sonho dentro de um sonho. Porque os meus olhos abriram e o espírito estremeceu de agitada inquietação ao som de poderosa voz que parecia ecoar por todos os ermos. E ali, diante de mim, diante da minha mente aturdida e confusa, estava um céu limpo tendo a claridade suave e atenuada da tardinha. Claridade que batia sobre os meus olhos, talvez há muito tempo, pois eles ardiam um tanto febris. E ao ensaiar um movimento, senti os membros presos ao chão. Pois era isso, eu estava deitado sobre o chão, os braços e pernas e tronco amarrados ao chão, no centro de um canteiro cujos contornos eu mal podia ver e que se me afiguravam vagamente a uma baixa armação de cimento ou metal em forma de triângulo e que me circunscrevia, que circunscrevia o meu corpo imóvel e os membros distendidos, corpo e membros que desenhavam um X preso ao chão. Seria de fato um triângulo? Mas ao voltar a cabeça para um lado e outro, podia perceber que o triângulo por sua vez ocupava o centro de uma clareira, circulada pela floresta agora densa e silenciosa que eu atravessara, e que os elementares monstrengos-gente ainda ali se encontravam, mas imobilizados ao longo de toda uma faixa divisória entre a clareira e a floresta, milhares deles, imobilizados como um mar congelado e escuro de infinitas e horríveis estatuetas de jardim. E eu era um X no meio de um canteiro triangular, e no meio de um círculo de clareira e cercado para além de florestas, montanhas e mares, e preso à terra e debaixo de um céu lúcido e azulado de tardinha, do qual os meus olhos queriam desviar-se mas que acabavam sendo forçados a voltar-se para ele, para a claridade que indicava a existência de um sol, que eu sabia ser irmão de incontáveis bilhões de outros sóis encadeados numa vastidão aparentemente sem começo e sem fim. E que, ao pensar nisso, eu era também forçado a integrar-me — eu, um X deitado no chão — a um processo desesperador e monstruoso e eternamente (eternamente?) vasto de infinitésimas poeiras de partículas em movimento, que adquiria sentido somente quando uma pequenina, absurdamente pequenina, vibração nascida (nascida?) no meu interior arrastava-me para um esquecimento que eu chamava de consciência. E então aquela voz poderosa que ecoara por todos os ermos e que me fizera acordar com tamanha inquietação, tornou a rugir como se brotasse ao mesmo tempo de todos os lugares, e se o que dizia eram sons ininteligíveis pronunciados em alguma linguagem primeva e ancestral, havia neles uma advertência estranhamente familiar, como o cantochão de religiosos e místicos de todas as épocas e todas as seitas, como uma súplica que jamais poderia ser codificada em símbolos perceptíveis pela razão consciente, mas que transcendia à própria emissão física do som e buscava imprimir uma “sensação” de realidade final, última e definitiva. Era um outro som quase impossível que ansiava por revelar-se no interior de um som produzido por instrumentação limitada e imperfeita e que, como a chama trêmula de uma vela, encerrava em si a sugestão de algo nunca aprendido e avassalador.

E a voz ribombava de todos os lugares escandindo as vibrantes e misteriosas sílabas do cantochão, como se nascesse ao mesmo tempo de todos os lugares, mas eu pressentia um ponto fixo por detrás da minha cabeça, um ponto que não era visto da posição em que me encontrava, mas que se fazia presente através de uma sombra também pressentida quando os meus olhos, num esforço de voltar-se para cima e para trás, enquanto a cabeça oscilava para a direita e a esquerda, os olhos pressentiam aquela espécie de vazio escuro de uma sombra por detrás da cabeça, que poderia ser a de um monstruoso animal ou a de um homem gigantesco, e à qual uma certeza interior me fazia relacionar com a poderosa voz. E então eu gritei por duas vezes “Quem está aí? Quem está aí?”, mas a voz continuou imperturbável o seu cantochão.

“É a voz dos avatares, de todos os xamãs ou de todos os cristos?”, perguntei alto, como procurando estabelecer uma conversa. “E essas sílabas não serão mais que um mantra para o despertar da minha iluminação? Mas, afinal, o que significam elas? O que deverei fazer?”

Eu perguntava ou gritava para o vazio, para uma sombra por detrás da minha cabeça, que eu nem sequer saberia dizer se de fato existia, gritava para alguma coisa que parecia ser uma voz vinda de todos os lugares, uma voz revelada num cantochão indecifrável, mas que (percebia agora, começava a perceber agora) poderia também não ser uma voz humana ou mesmo supra-humana, mas um som apenas, o som do vento a revolutear num fosso imensamente profundo, o som do vento a cantar sobre dunas de um deserto incomensurável lá para trás, o eco de um som subterrâneo que refletisse o movimento de todos os corpos do universo! Poderia ser isso! Poderia ser isso! E então o meu corpo foi sacudido por um acesso de riso irresistível e doloroso, porque o pensamento fulminante tomou de assalto o meu cérebro, com aquela implacável veemência que assalta o indivíduo logo após ter compreendido haver sido vítima de um grande logro: pois não existiam avatares, nem xamãs, nem cristos; existiam impulsos definidos que dirigiam rigorosamente cada espécie e existiam sons indecifráveis que eu confundia no meu sonho ilusório com avatares e esta — ah!ah!ah!ah!oh!oh!oh! —, esta era a única iluminação possível.

E eu ria no sonho dentro de um sonho — ah!ah!ah!ah!oh!oh!oh! —, um riso sibilante, incontrolável que, como um forte vento, contagiava a natureza ao meu redor e fazia contorcer as árvores, e espalhava nuvens que cobriam o céu, e levantava cortinas de poeira e folhas, e se transformava, mais forte, mais forte, mais forte, num terrível vendaval, árvores, terra, folhas, os elementares, numa poeira luminosa que assumia a forma de imensa espiral a voltear no espaço acima da minha cabeça, girando, uivando — ah!ah!ah!ah!oh!oh!oh! —, e que descia na minha direção como uma poderosa verruma apontada para um centro da minha cabeça, situado entre as sobrancelhas. Vinha rasgar-me, vinha dilacerar-me em mil pedaços num ímpeto de destruição, eu sabia, eu sabia, eu sabia…

Não fizeram perguntas, nada me falaram, os meus quase irmãos, quando surgi do sono. Talvez já tivessem sabido, por algum sinal, que em breve eu estaria mais apto para recomeçar a luta fundamental de todos os homens.

Silveira de Souza

Autor de O vigia e a cidade, O cavalo em chamas e Contas de vidro, entre outros.

Rascunho