O campo de dor

Conto de Leonardo Vieira de Almeida
Ilustração: Maureen Miranda
01/09/2009

O doutor Manes, sentado à escrivaninha de nogueira triste, recortava com seu semblante castanho o campo que contornava o hospital. Era um homem robusto, de gestos eqüestres, se bem que esses últimos traços ficassem reservados às pernas. Umas pernas longas, fincadas no solo como colunas de ferro, de ferro enferrujado próximo ao marrom. Seu cabelo sedoso, ruivo, terminava numa crina cor de mostarda. Os olhos eram algodões sonoros, sem mostrar as pupilas, sem mostrar o que estava pensando, apesar de que o branco revelava sua energia, a doce, sonora, revigorante energia que une os homens da terra. A cadeira muscular, de ferro e coração, sobre a qual sepultava o corpo cansado, tinha à sua frente uma outra cadeira vazia, com braços alcochoados que deveriam ser cariciosos para os braços dos pacientes. Mas os braços dos pacientes são sempre de cor clara, cor de açafrão, de cinza-limão ácido. Muitas vezes magros, muitas vezes frágeis.

Agora Manes observava a menina na cadeira triste, de rosto não tão triste, mas claro, vestida em alfazema. Uma menina que gostaria de estar brincando com suas amigas, mas, ao invés disso, permanecia sentada na cadeira muscular, sorrindo para Manes. Ao seu lado, a mulher de rosto pérola não demonstrava a mesma tranqüilidade inocente. As feições, longe de seu equilíbrio original, assumiam o desenho de uma flor num copo: as pétalas umedeciam a superfície polida. Mas a flor conseguira suar toda sua seiva, era uma flor quase seca, quase cinza, apesar de bela. Pois a mulher ainda conseguia manter sua beleza ingênua, face ao mistério que, naquele instante, unia as três figuras. A pergunta que não podia ser respondida pairava no ar como um pássaro gelado. Era a incapacidade dessa pergunta que matizava o rosto pérola da mulher do cinza-nuvem que retesava os traços.

O médico, sem tirar os olhos da mulher, por trás do branco algodoado dos olhos, que lhe dava o aspecto de um cego eremita, pensava em como deviam ser os dias da sra. Alena. Faziam comentários sobre seu marido. Estava sempre viajando a negócios. Nesse tempo, falavam dos casos de Alena. Manes não distinguia nenhum outro homem por trás da máscara pérola. Nem alegria, muito menos tristeza. Essa última devia existir. Era só olhar para a menina ao seu lado, os cabelos de trigo maduro, as faces brumosas como a papoula esmaecida. Como seria possível que uma outra menina vivesse dentro dela. Uma menina que continuava lentamente a devorá-la. Podia se notar esse outro corpo pela magreza dos braços e pernas, o cinza-limão ácido da pele. O sorriso em seus lábios seria da outra. As pupilas brancas do médico procuravam a menina escura, que brincava dentro da menina branca. Que movia suas pernas para frente e para trás, que sorria seus dentes claros. Era por causa dela que a mulher cuidava em retesar os traços perolados, não pelas falas secretas, os bicos como os de gralhas que diziam, deslizando entre as ameixeiras e carbúnculos: “O sr. Rudi está no norte, não volta logo”. “Ele tem uma pasta grená e um capote cinza.” “Vi-o ainda ontem…” “O sr. Rudi?” “Não, o rapaz cor de neve é que eu vi, que eu vi entrando na casa de Rudi, e ele não está lá.” “Ele não está e a mulher está.” “Mas ora vejam, é possível que isto aconteça, que a pasta grená e o capote cinza não estejam e estejam a mulher e o rapaz cor de neve?” “E há também os cor de montanha, cor do campo, cor das ravinas silvestres.” “Deve ser por isso que ela ficou assim, por isso que eu digo que ela ficou assim por causa dos rapazes, da cor que os rapazes não têm, ela ficou assim como quem paga porque é assim que vai ser mesmo ela tem que pagar porque a pasta grená e o capote cinza não voltaram e ela está com a montanha, o campo, as ravinas silvestres.” “Ele deve voltar logo.”

Nada disso a incomodava, nenhuma conversa sussurrada por trás das portas e janelas, o que a incomodava era a cor da menina e a outra menina escura tão próxima que sorria seus dentes. A piedade tocava o campo de neve dos olhos do médico, retirava com bisturi afiado a pele lustrosa, decalcava rótulas vermelhas nas íris que se ocultavam. Um estremecimento passou pela menina, fê-la fremir como fremia a haste de clematite no copo sobre a escrivaninha do médico. Fê-la fremir como as cortinas sopradas pelo vento do campo. Fê-la fremir — e, então, o bisturi acabara de extrair totalmente a pele dos olhos, dois carimbos rubros, como selos episcopais de cera quente, estamparam as órbitas do médico; seu queixo eqüestre abriu uma garra, as pernas eram tubos de ferro que não suportavam o peso do corpo — como uma cruz de madeira na parede. Manes viu seu vestido no cimo do Gólgota soprado vazio como uma roupa crucificada.

Eles vieram uma vez ao consultório de Manes, a pasta grená e o capote cinza, vieram uma vez porque Rudi tinha algo nos rins, a urina saía escura e cheirava a feno. A pasta grená escolheu se sentar na cadeira em que naquele instante se agitava Alena; o capote foi abandonando o corpo, um corpo magro, branco, um corpo que trabalhava para o mercado de peixe, que executava transações no interior dos cascos dos navios. O escaro dava sempre mais lucro, negociava seu transporte sob o olhar estático de uma escarpa; enfrentava horas de listas azuis, com todos os nomes daqueles peixes gravados numa geleira. Naquele corpo tão branco que se entregava ao escrutínio das mãos de Manes, apalpando o ventre, a princípio sem sinais de algum mal. Mas elas saberiam reconhecer, antes mesmo que necessitasse de exames, algo estava ali, uma turfa negra comendo-lhe os rins, enquanto o capote o olhava sereno, talvez pedindo às suas mãos que lhe ensinassem a linguagem das profecias.

O homem estaria num daqueles mundos gelados, talvez numa proa de navio, esfregando as mãos para que não morressem; sentado diante de um agente do comércio pesqueiro, não pensando nunca em Alena ou na filha, mas em cifras, no lucro com o raro merlim? Costumam, nessas negociações, soerguerem torsos de peixes recém-abatidos: o dorso de uma baleia desventrada, com a espinha imersa em tegumentos de espermacete e gordura, fisgada num arpão a vários metros do solo. Dava-lhe náusea o cheiro de carne de baleia, e até a ordenha do sangue, pingando como chuva nos baldes. Porque se pode brincar com torsos desventrados, pode-se pescar numa escarpa um pensamento, de água clara, de campo e trigal, pode-se triturar com os dentes o que dizem de Alena. E depois de meses ele voltava, para casa, mas logo depois partia. Partia de novo e ia se esquecendo. Voltava e as duas eram como a imitação dos peixes, possuíam olhos globulosos, nadavam num ar branco gelado, eram mãe e filha imersas numa água parada, num reduzido bloco transparente, em que seus rostos adquiriam a tonalidade das águas-vivas.

— O que tenho, doutor?

Manes pôde descobrir na pergunta de Rudi a face extinta, a face de mais de vinte anos, face trespassada pela dúvida. Face da brancura do lírio, frágil quase como se não fosse a face de um homem, ou ainda a fragilidade das coisas não vistas, das coisas mortas que se fazem claras. A face que olhava Alena e expandia-se, como uma rosácea de igreja, como o mirto colhido em sua cor. Pois naquele preciso instante o doutor Manes, o respeitável médico de aldeia olhava Alena. Metade de seu corpo, as pernas fincadas no solo do consultório, férreas e da cor da ferrugem, de pelame marrom escuro, era através delas que a olhava, um olhar das pupilas vermelhas tendendo ao escuro, o ponto negro abrindo sua carnadura de líquido claro, berrando o focinho, as narinas de tegumento que não possuía, porque suas narinas eram brancas, aquilinas, narinas de homem, mas pernas de músculo eqüestre. Não, seus olhos não podiam dizer-lhe o que verdadeiramente sentia, porque um ser como Manes não poderia sentir com os olhos, ou boca, coração, sentiria com as pernas exigindo a terra, palha, café e saliva nas tábuas que pulsavam junto com ele, as pás do ventilador de teto filtrando o ar parado da sala de consultas, o ar acariciando o cabelo da menina, cabelo claro tendendo à cor, não cinza-ácido dos limões, mas verde campo, dos limoeiros e folhas dedilhadas pelo vento soprando no campo em volta do hospital, em volta do monte calvo aonde, naquela hora, os camponeses voltavam dos estábulos, à procura dos cômodos de pinho, de madeira olorosa e fritilárias, sumo de cerveja, raspas de canela suave, travesseiros de penas de ganso que são como os algodões na época da colheita.

Ele pensava, pensava enquanto suas mãos apalpavam o ventre de Rudi, olhando Rudi, o homem pequeno, encanecido, mas cujos olhos brilhavam, única forma que vive e busca uma palavra: “Diga-me, doutor, diga-me a verdade”. Não, ele não queria aquela verdade que imitava um seio, o seio desnudo que as mãos de Manes acariciavam, as mãos de dedos longos, finos. A verdade é que ela tivera um caso com o rapaz do colégio, durante a última viagem do marido para negociar um barco de escaro, na costa sul de um dos países gelados do norte. Ele os vira, não Rudi, porém Manes, vira-os sob a copa do sicômoro antigo: Alena protegia a cabeça do rapaz em suas mãos. Ela não pudera vê-lo, naquela hora, o doutor Manes no meio do campo de relva seca, hirto, da metade para cima, e as pernas frágeis. Não pudera, ou evitara vê-lo, um homem que a contemplava, ser que nunca desafiara o confranger-se, prostrado de pés e palavras. Quando terminava o dia no hospital, Manes doava o corpo ao campo que se estendia por entre as árvores mirradas e esparsas fazendas, em cujo centro auspiciava o sicômoro, sua coroa de ramos adormecia em sombras os quintais e canteiros das casas, os veios da estrada que atravessava o campo até a cervejaria, onde o lêvedo maduro ardia com a anfractuosidade do milho e do calor. Sob a crista coroada, batizados pelo pôr-do-sol, Alena e o rapaz dourado não se beijavam, não trocavam nenhuma palavra de egoísmo, pois é egoísta o corpo em sua faminta miséria, na condição dos que rogam, insatisfeitos consigo mesmos, assim pensava Manes, que um corpo só deve a si mesmo confessar, a parte de Manes que sobressaía da escrivaninha de nogueira triste era essa confissão, oferenda ao entardecer que pelos braços do sicômoro quebrava-se nos rostos das casas, linhas de luz e palavras ocultas, nos semblantes dos cavalos, dos cavalos prostrados sob os figos do sicômoro, os figos verdes que os cavalos pensavam ser os corações de si mesmos, os cavalos, as pernas de Manes enterradas nas tábuas do consultório eram suas irmãs.

Ele possuía irmãos, como todos. Seus irmãos eram a folha, a terra não saciada, o ligustro, o ar, a montanha. Eram as vidas de todos no campo, de todos do hospital, porque ele imitava as vidas, conhecidas e desconhecidas. Também eram seus irmãos os visitantes das enfermarias, os que vinham ao seu consultório apenas por algumas horas, ou aqueles que ele adorava por um tempo mais longo, ainda aqueles que mantinham os olhos para sempre abertos nos leitos, pálpebras que fechava com suas mãos, sabendo que lhes doava seu golpe surdo. As palavras que ouvia na surdez, no clorofórmio, as palavras que suas mãos colhiam, a semeadura dos corpos, e como eles estariam nos dias por vir. Até mesmo Rudi, até mesmo seu capote cinza sentado numa cadeira se tornava a leitura, sua ciência, de predizer as sombras que vivem por todos nós. E nós poderíamos admirá-lo, enquanto acariciava o seio de Rudi, o seio morno em seu ventre, a turfa negra que lhe devorava os rins. Suas mãos, que penetraram tantos corpos, no leito macio sob as luzes de sódio; que sentiram seus corações quentes, que os escutaram tocar, os címbalos, sinos, harmônios: ele, Manes. Ele, o paciente; elas, suas mãos. Como ele, Rudi, Alena. Como ele, a filha, Alena. O tríptico, encimando a parte mais alta de um sacelo, no interior da igreja de tábuas antigas, apresentava as outras vidas vividas por Manes. E aos pés do sacelo ajoelhavam-se cavalos. Cavalos de barbas tripartites, com pernas de ferro fincadas no solo.

Rudi iria viver. Continuaria respirando dentro dos barcos de pescado, ilhado em meio às escarpas, andando por plataformas, sob guindastes, sob galos de ferro coroados na madurez. Sua urina quente e cheirando a feno, seu seio primaveril, apenas renderiam alguns meses. Manes não tinha ódio por ele. Mesmo enquanto meditava sobre Alena, sobre sua filha, Pérola, enquanto ele as protegia à sombra do dorso marrom, cujo pelame soprado pelo ventilador de teto estalava como agulhas dobradas pelas mãos de costureiras melancólicas, ele pensava também em Rudi, pensava no rapaz dourado abraçando Alena sob os galhos do sicômoro, pensava nos cavalos fechando um círculo em torno das árvores, peixes pintados, velhos, novos, cinzentos, em torno da água de seu próprio batismo, porque o rapaz escutava de Alena que Pérola era uma menina, ele sonhava uma menina sem corpo, ele a bebia, sorvia-a, mordia os dentes, respirava o ar sazonado do cesto de maçãs, cidra e calor, era como uma parte das árvores lá fora. Para Manes, os dias de sua infância lembravam Alena e a filha, porque ele sempre lembrava, e, nesse lembrar, canto de paciência, carpintaria do tempo, lia e se afastava de si mesmo, enquanto dormia, corpo acolhido numa flor anestésica, o besouro, ou um cavalo subindo o dorso do campo de relva. Elas dormiam, Alena, Pérola, dormiam e metade de seus seios respirava, metade de seus órgãos dormia nas mãos de Manes, lavadas inteiras, dentro de suas águas, nas margens do rio que cortava o campo do hospital até elevar-se música sobre os celeiros, sob as rodas das carroças, nas cartilhas dos bedéis, na flor dos chapéus, na maciez das luvas, no interior das máquinas triturando o milho, no cansaço.

Não, ele não tinha raiva e nunca a poderia ter, pois todo seu cansaço provinha da cor do vinhedo, não era em Rudi que experimentava o cansaço, mas eram suas pernas que pesavam enquanto a tarde ia declinando nas enfermarias do hospital. Da mesma forma Rudi, como Alena e Pérola, também sentado a enfrentar Manes, sentindo o seio suplicar por baixo dos fios cardados do capote cinza, rogava que o médico lhe dissesse “a verdade”. Mas como poderia confessar, porque a “verdade” ainda estava de pé, sob a coroa do sicômoro, uma “verdade” dourada, fincada na terra que a tudo devora. Manes olhava o homem envelhecido, pequeno como um cupim, que de inseto passara a rastejar na terra: ele sabia sobre Pérola. Sabia que aquela turfa negra não era a mesma que lhe comia os rins, que havia em Pérola uma outra Pérola, mais encolhida, mais velha, de rosto engelhado como de um duende, que passara a viver pela menina, que se nutria, respirava, dormia por ela. E de que forma seria possível a um homem buscar ainda a “verdade” se o amor (o cavalo brotando na janela como uma aglaia na margem) de sua carne ia renascendo — o amor poderia ser descoberto nas mãos trêmulas de Rudi, mãos antes inertes — à medida que Pérola reunia com cada vez mais afagos as gaultérias, o lúpulo, as folhas de marga?

Mas antes que pudesse responder a Rudi, o doutor Manes percebeu que um corpo doente pode ser uma salvação. A cabeça avermelhada de ossos do doutor Manes se erguia ante o campo noturno, em seu dorso Alena e Pérola, o urso de seus cabelos dizendo a todos que o amor, mesmo sem amor, tem o direito de pedir uma retribuição. As mãos do doutor Manes, abertas para o ar que soprava dos ramos do sicômoro, suas mãos mergulhavam como pássaros de neve na tinta das granadas, nos bulbos e féculas, por entre os gerânios que desenhavam a aléia, sob a carne das mulheres, o dorso marrom sabia amá-las nesse momento, suplicava-lhes a espada e o trigo, o tigre e a fábula, ele, com suas mãos sagradas, levava-as pelo campo, montadas, as princesas do branco, do marfim, do gelo puro. Suas mãos, na união com a carne, dentro das mulheres, afiadas facas dentro das mulheres dormindo insones, eram toda a infância numa oferta, infância que nascia a cada instante nas enfermarias do hospital, inventada todas as vezes que Manes possuía dez, cinco, três anos, brincando com mulheres, como se brincam as paredes dos órfãos. Algumas voltavam para seus lares, voltavam, mas retornavam depois de alguns dias, meses, anos, pois sempre retornam às suas mãos as filhas ou para o homem de ferro que as acolhe, o grande homem de pernas de ferro fincadas no assoalho de tábuas que lia seus corpos, um campo estéril, a vindima sem frutos.

Manes, porém, enquanto atravessava o campo com Alena e Pérola em seu dorso, não desejava a carne, mas o sonho. Elas dormiam em suas noites (até mesmo ele, Rudi), sem lua no céu, de orvalho nas campinas, dormiam como pássaros capturados na caixa de ferro, com sua música asséptica, a superfície lavada e fria, lendo seus corpos, traduzindo o campo de sua pele, numa página tão aguda como um salgueiro molhado e carregado de carriços, e a página era virada pela mão de Manes, para uma outra página branca suave, cor nas margens de chaminés, cor nas margens de casas de tijolos e cheiro de cerveja, pele branca, camisola fina branca barata, cabelos louros maduros, cobertores, a quentura, o amor.

E pela primeira vez, pela primeira vez em anos que já atingiam a longevidade de uma rocha em suor, que um escultor esculpiu até lavar patas de primavera, marrons e escuras, como uma túnica envolvendo o torso de um homem belo, querendo só a delicadeza da chuva, voz do pinho, mãos das avezinhas, pela primeira vez Manes olhava um corpo, atado em lençóis. Ele sonhava um corpo. Lembrava-se (e suas pernas tremiam) da mãe de Pérola, de que seu rosto, mesmo sem revelar muita cor ou graça, rosto de limão cinzento ácido, ainda era um rosto que o fazia tremer, rosto que levava, com a suavidade das falenas, as roupas da filha para casa, como se levam flores para uma cidade cantada por mortos. E se naquele campo toda a terra fosse uma conversa de mortos, pensava Manes, fosse um diálogo de moças mortas conversando no miolo da terra, trançando uma corola de forma que o rio que cortava o hospital imitava o rio em sua cauda até as plantações e a imorredoura cidade, cidade de luzes oblíquas, telhados, força máscula, força feminina, rocio, choro, escolas, igrejas, casa de dois velhos acariciando as mãos, inventando filhos. Pela primeira vez Manes descansava o corpo, curvava-se ao peso dos lençóis limpos e brancos que iriam lhe oferecer em breve a pele, a metade de um seio, a respiração quase finíssima que atravessava folhas, lírios, vilas, ardósias do lábio, partidos que se entregavam nas ruas familiares ao beijo da última noite. O corpo de Manes deslizava cansado, num torpor, num morno torpor provocado pela fécula dissolvendo-se em seus lábios, gosto de limão cinzento e granada, torpor de anestesia, ou de flecha, da flecha que agora cravava em sua metade marrom sedoso, íntima, violenta, mas cansada. Que o fazia tombar, a outra metade lisa, polida, esférica. E suas mãos rogavam à enfermeira, que acabava de derrubar uma bandeja de instrumentos cirúrgicos no chão, pediam à enfermeira assustada que as cobrissem com lençóis, que as esquentassem na noite de milho maduro, de cerveja e ebriedade, na noite que domava o corpo de séculos, galgados e eqüestres do doutor Manes.

Leonardo Vieira de Almeida

É escritor, mestre em literatura brasileira e tradutor. Autor do livro de contos Os que estão aí (2002).

Rascunho