O bife

Conto inédito de Rubem Mauro Machado
Ilustração: FP Rodrigues
22/03/2016

Derrama-se quase no tamanho da mão aberta, réptil achatado contra o branco do prato. O outro é pequeno, retorcido sobre si mesmo, cadarço amarelado de nervos revestindo as bordas. O grande deve equivaler a três vezes o menor.

Raul percebe, Henrique também já viu o bife: suas pupilas azuis detiveram-se por uma fração de segundo nele, o suficiente para o registro.

Sentados frente a frente na pequena mesa coberta com toalha de plástico, ilha no arquipélago do refeitório, desempenham seus papéis na comédia: nada perceberam, ocupados com o que estão dizendo. Não estão nem aí para essa insignificância, o tamanho dos bifes. De jeito nenhum. São adultos, pessoas civilizadas: o que podem ver de transcendente, digno de maiores considerações, no fato comum, banalíssimo, de que na travessa de louça com dois bifes, em processo de aterrissar na mesa, um é maior do que o outro?

É verdade, seria hipocrisia negar: um bife é uma coisa valiosa. A carne contém proteínas, sais minerais, carboidratos. Os povos conquistadores sempre foram carnívoros. Um bife fornece calorias suficientes para movimentar por várias horas o motor orgânico, o corpo humano. Se não é tudo, um bife é muito. Um bife é um bife, é um bife, é um bife.

A situação, pensa Raul, é muito clara: um deles comerá o bife grande, ao outro tocará o pequeno. É em verdade questão medíocre, mas irremediável. Um comerá pior, um será prejudicado. Sente, a mesma avaliação esconde-se por trás dos olhos claros de Henrique. Ele cobiça o bifão, ambos querem o bifão.

Henrique estava a dizer algo relacionado com futebol, o compromisso do Grêmio domingo pelo campeonato, interrompe-se pelo tempo de um estalar de dedos, as palavras ficam estranhamente suspensas no ar, sons sem significado. Recupera-se, retoma o raciocínio, conclui fracamente a oração. Raul, atenção toda no bife, responde automaticamente com um “é sim”. E num acordo tácito, os dois se calam e olham francamente a bandeja.

Rosa, a copeira, vai depositando os pratos: arroz, feijão, cenoura cozida em rodelas, salada de alface nadando em vinagre, o pratinho de pão. Acomoda-os sobre a toalha ameaçando rachaduras. O prato dos bifes é o último: ela o colhe sem maiores reflexões na bandeja de madeira e o abandona no tampo da mesa para o ataque dos canibais.

A sorte favoreceu Raul: não só o prato dos bifes foi colocado mais próximo de si, como virado de tal modo que o bife grande ficou do seu lado. Se Henrique quiser fisgá-lo com o garfo terá o entrave ético e psicológico de ter de passar por cima do bife pequeno, virado do seu lado e, portanto, naturalmente, destinado a ele.

Raul imagina ver um sinal de contrariedade atravessar a expressão de Henrique, fugaz, só perceptível a alguém muito atento. Rejubila-se maldosamente, favorecido que foi pela sorte. Um acaso feliz. Ao mesmo tempo está levemente humilhado por aquela subserviente dependência de mísera fração cozida de carne de boi.

Henrique quis pegar o bife maior, que será dele, Raul. Bem feito, o outro que mastigue a derrota! O acaso assim determinou, azar dele. Poderia até, fosse vil, esboçar pequeno sorriso de vitória, de uma incerta vingança. Não o faz, é apenas uma ideia estúpida logo sufocada. Ambos são indiferentes aos bifes.

Que mediocridade! Quanta mesquinhez! Henrique é amigo, um amigão mesmo. Companheiros de quarto, estão sempre juntos. Daqui a pouco vai trabalhar, trabalha num banco. Depois do expediente, segue para a aula noturna. Janta só na volta, depois de onze horas da noite. Rosa deixa o prato feito dentro do armário do refeitório, protegido das moscas por outro que o cobre, emborcado. Raul sempre sente um pouco de engulho vendo-o comer a comida fria com apetite, não compreende como aquela paçoca desce goela abaixo. Henrique é um alemão grande de uma cidadezinha lá pros lados de Estrela, trabalha, estuda, precisa se alimentar, consome muitas energias. Que merda, por que não vieram dois bifes iguais, dois bifes grandes? Aqueles ali não têm termo de comparação em tamanho, aspecto, qualidade!

Não é guloso, até pelo contrário. Estivesse bem alimentado e pouco se lhe dava comer o bife maior ou o menor. Sequer estaria cogitando dessas miudezas. Acontece que na Pensão só dão bife duas vezes na semana e sem direito a repetição. Servem com certa frequência, é verdade, guisadinho com cenoura, ou com arroz, tipo carreteiro, ou bolinho de carne, que a turma jocosamente chama de granadas de mão. Mas bife, bife de chapa, só duas vezes na semana, aos domingos (domingo enseja também salada de maionese e um pastel grande, e ainda tem pudim de leite de sobremesa!) e às quartas-feiras. Duas vezes por semana!

Raul anda com fome. Não fome como a dos negrinhos, de jeito nenhum. A fome que sente é de outra espécie, muito diferente. É a fome (antes nem desconfiava que ela existisse) de barriga cheia, entupida de uma comida sem sustância e variedade. Embora sonhe à noite com comilanças e sinta já no meio da manhã um oco no estômago, adia ao máximo o momento de se dirigir à mesa, onde já sabe o que o espera. A alface vem coroada por duas rodelas de tomate, a sobremesa todo dia é sagu, bolinhas cozidas num vinho tinto vagabundo. Os chineses, mestres da tortura, assassinavam seus prisioneiros fornecendo-lhes meses a fio o mesmo e exclusivo alimento. A fome de Raul é fome sem direito ao uso do nome. Como alegar fome se não falta comida no prato? O que sente é fome, não Fome. Não é igual à dos negrinhos. Absolutamente.

Um dia invadiram a Pensão com um tropel miúdo de pés descalços. Eram quatro, esqueléticos, perninhas prestes a quebrar, uns cambitos. Teriam entre sete e doze anos, pediam comida, sujos, ranhento o mais novinho, levemente repulsivos. Depois do espanto, Rosa avança enraivecida para eles, pega dois pelo braço, é uma gringa robusta, despachada:

— Fora daqui, seus imundos. Desaforo, essa molecada invadir assim a casa dos outros. O que é que eles estão pensando? Fora, negrada fedorenta. Vamos!

Os hóspedes se erguem eletrizados:

— Rosa, deixa as crianças, deixa.

— Vai buscar pratos, vamos dar de comer pra eles — comanda Hilário, um dos estudantes de medicina.

Acomodam-se, cada menino numa mesa. A copeira, vencida, resmungando, traz a pilha de pratos vazios. Cada hóspede, são uns quinze no momento, contribui com comida para os pratos das crianças. Elas comem com ferocidade, com desespero. É preciso lhes dizer, “calma, come devagar, a comida não vai fugir”. De quando em quando um levanta a cabeça do prato, cruza o olhar com outro e ri, entre contente e envergonhado. Naqueles corpos apagados, só os olhos graúdos têm vida. Amanhã vão talvez nos assaltar na rua, se a tuberculose não os comer antes.

— Agora vai buscar café bem forte.

Rosa se vai, pisando forte. Dona Conceição espreita da porta da cozinha, suspeitosa, descontente, sem coragem de intervir.

Tomam o café, um não quer, têm de insistir. Quando saem, vão repetindo em coro, agradecidos:

— Muito obrigado, muito obrigado.

O olor dos bifes recém passados sobe até as narinas. O prato está próximo da mão direita de Raul. É fácil como roubar de cego. Basta segurar a borda, puxar o bife com o garfo, nada mais comum, nada mais natural. Estará apenas se servindo, quase com indiferença, de um pequeno paralelepípedo proteico, o mais próximo de si, e não por qualquer ardil seu, por mero acaso, em meio a uma discussão sobre futebol.

Hesitação incompreensível tolhe o gesto, paralisa o braço. Ao instinto atávico e egoísta do apoderar-se da presa, sucede o contra motivo da generosidade — e a resultante dessas forças simétricas é a imobilização.

No mesmo ínfimo tempo, Henrique também hesita. Sente, os bifes estão mais para Raul do que para si, mas se esticar o braço poderá se apoderar logo do prato, ainda que haja outros mais próximos: nenhuma lei decreta que devemos nos servir por último de carne. Ergue a mão; ela se desvia no meio do caminho, agarra a travessinha de feijão.

Raul sabe, Henrique não aceitou a decisão, passou a bola para ele. Raul continua paralisado por um segundo e então… também a recusa, dá sequência ao jogo. Toma do prato de arroz e começa a se servir.

Henrique larga o feijão e empolga o pratinho dos bifes. Meio contrafeito, torce o punho de maneira que o prato, executando um movimento semicircular, oferece-lhe o bife grande. Puxa-o para o próprio prato, como quem tira um peixe da água. Devolve o prato para a mão de Raul, que o aguarda no ar. Henrique diz: “não acredito que Pelé saia do Santos. É tudo conversa de jornal”. Raul se serve do bife pequeno, nada diz.

Comem sem apetite. O feijão é aguado como o leite do café da manhã, o arroz empaçocado, o excesso de vinagre da salada causa azia. O bife pequeno é riscado por uma ramagem de nervos. Só pode ser comido por metade. Raul, apesar da raiva, tenta algum humor com a piada surrada: “acho que esse boi era atleta”. Masca mais um pouco: “ou neurótico; nunca vi tanto nervosismo”. Henrique sorri sem graça na segunda tentativa. “O meu está um pouco melhor”, avisa condescendente, como se ambos não soubessem disso. Raul enfia na boca um naco de pão. A observação do outro aumenta sua irritação. Antes das três da tarde estará novamente com fome. Sente-se de certa forma logrado.

Volta-se contra si mesmo. Imbecil! Animal! Perder uma disputa ganha. Por estúpida polidez, por um moralismo cretino. As pessoas ricas, ou, pelo menos, bem alimentadas, podem se dar ao luxo de ser corteses, de serem superiores a essas coisas. Elas sim.

Foi generoso, é certo; Henrique é amigo. Mas ampara aos que padecem a carência o sagrado direito à mesquinharia. Tinha a obrigação, o dever, de pensar primeiro em si mesmo, no seu bucho. A vida, mestra despida de compaixão, vai ensinando sem pedagogia uma ética que não vem escrita em livros: “A tua generosidade começa por ti. Não dês aos outros o que não podes dar sequer a ti mesmo”.

Raul é bom aluno: na próxima vez comerá o bife maior.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho