O beijo de Schiller

Trecho do romance inédito de Cezar Tridapalli
Ilustração: Theo Szczepanski
01/04/2014

Pensar o tempo todo sobre os próprios pensamentos torna a vida do homem um inferno. Quando ainda queria transformar Luka em um biólogo, precisei ler algumas coisas relacionadas ao assunto e elas foram suficientes para saber que somente dois por cento do emaranhado genético haviam diferenciado o homem dos outros animais e feito dele um ser capaz não só de pensar, mas também de se pensar superior. E de pensar errado, o que não deixa de ser uma forma de pensamento. Isto é, de tornar sua própria vida um tormento cujo fim só se daria na cessação dos dois por cento. E esse sujeito aí atrás? Pelo pouco que vi, parece uma criança, esse filho que não tenho, o olhar infantil na paisagem: a vegetação exuberante da Serra do Mar. Falta apenas pegar seus super-heróis de plástico e deslizá-los contra o vidro do carro, simulando trajetos, personagens, aventuras. No entanto, em vez de super-heróis, ele traz consigo um revólver. Metal preto, cano curto. Há alguns minutos, tubo encostado na minha cabeça, um projétil separado do meu cérebro por poucos centímetros, chumbo inerte prometendo calar o que perambula pelo labirinto das sinapses. Era uma ponta cinza preparada para explodir minha massa cinzenta e levar os dois ou os cem por cento da minha humanidade, feita de tristezas e alegrias ilhadas pelo mar da indiferença e do esquecimento. A ideia de minha morte nunca havia passado de curiosidade intelectual. Dentro dessa mesma cabeça uma bala estava prestes a acabar com qualquer possibilidade de especulação, trocando o pensamento sobre a morte pela morte do pensamento.

Eu poderia ser dramático e dizer que nesse momento, uma semana depois de ter sido pisoteado por minha filha, parar de pensar não seria uma ideia ruim. Por pior que a vida seja, porém, eu quero ir até o máximo da experiência. Os vários minutos de caminhada diária e alongamentos insuportáveis não podem ser em vão. Precisam esticar mais do que o músculo adutor da coxa, precisam esticar a vida. Lembro-me do amputado que se arrasta esfolado pelo calçadão a implorar moedas suficientes para que possa ter forças para se esfolar no dia seguinte atrás de moedas suficientes para que possa ter forças para se esfolar no dia seguinte atrás de moedas suficientes para. Tenho esse apego canino ao osso da vida. Uma dor de cabeça, um ônibus atrasado, um copo a menos de cerveja, um vizinho que chamasse para mais um carteado, qualquer bobagem fora do ocorrido seria suficiente para me fazer não nascer. É que o roteiro se desenvolveu enquanto se desenvolvia (tenho horror à ideia idiota de destino pré-traçado) e eu nasci. Se levei essa sorte, quero ir até o fim, quando voltarei a ser o que era: nada. Eugênia não vai conseguir me demover dessa ideia com malabarismos religiosos, motivo de nossas mais recentes discussões. Que diminuíram nos últimos dias. Apenas uma pausa, sei bem, pequeno sinal de respeito pela minha dor. A conversa com minha filha, Vitória, abriu uma série de caminhos insuspeitados para mim e reorganizou o passado de modo que a estrada vigorosa que eu vislumbrava para o futuro se mostra esburacada, pinguela frágil. Primeiro, ela já falava como adulta; depois, falava como adulta que pensa, e pensa coerências, eu apenas abobalhado ouvindo facadas verbais tão lógicas que me emudeceram. Depois de longos minutos ouvindo toda a sorte de agulhas substantivas sendo enfiadas no meu ouvido, perdi o fio do raciocínio dela. Eu já não precisava entender nada. Cada nova frase, cada novo jeito de dizer, ilustrar, argumentar tinha como legenda a mesma tradução: eu era um péssimo pai, homem abominável. Estivesse ela falando em qualquer língua, a rede do enredo, tão bem tecida por ela, embrulhou os fios nos meus ouvidos e só dizia a mesma coisa: eu era um coitado. Pensei em dizer que pode haver injustiça mesmo na coerência. A versão que ela havia urdido para a nossa relação era perfeita. A realidade, no entanto, podia não corresponder àquilo que ela construiu. Mesmo assim, calei-me. Se eu falasse, estragaria aquela lógica de volutas barrocas com outro enredo: o meu. Portanto, cheio de empolação, resmungos, explicações que não avançam, rodeiam, precisam de tempo. Seria o mesmo que fazer um personagem de desenho animado como o Gaguinho interromper padre António Vieira para desafiar seus argumentos e sua retórica.

Talvez eu escrevesse para ela. Seria ela tão boa que teria formulado a narrativa da minha nulidade assim, de improviso? Era possível que não, e isso mais me doía, prova de que ela já ruminava tudo aquilo havia muito tempo. Uma mulher — sim, ela já era uma mulher, reconheço —, quando puxa um milímetro de fio em uma meada, não consegue mais parar. Um cérebro feminino está sempre mergulhado em hormônios e a apneia o entorpece. Ela puxa o fio inerte, o novelo se desenrola e então vai se arquitetando a teia com a qual ela nos prende e devora, enxurrada de palavras colhidas no terreno fértil da sopa hormonal.

Vitória faz vinte e um anos em setembro. O menino aí atrás pode ter a mesma idade dela — eu não consegui encará-lo no momento em que nos rendia. Minha lembrança é fugidia, meu medo de olhar para ele é feroz.

O terror trava. No espelho interno do carro, não tive o sangue frio suficiente para checar minhas pupilas, tampouco detalhes do rosto desse delinquente sentado no banco de trás. Somente o olhar periférico vê — ou os anos de conhecimento permitem deduzir — Eugênia a meu lado, retesada, sem dizer palavra alguma. Percebo-a tensa, o monstro do pânico sentado no seu colo, imobilizando-a. O velocímetro marca sessenta quilômetros por hora na estrada que liga Itapoá a Garuva. Em outras circunstâncias, eu estaria fazendo o mesmo trajeto a cem. Caminhões e carros velhos fazem fila indiana atrás de nós, jogam luz alta, nos ultrapassam. E se a polícia tentasse nos parar? Seria o fim do pesadelo, ainda que sem saber de que forma, se nos devolvendo para a vida ou para a morte. Não sei ao certo como ele é, mas sua estranha ameaça (estranha na forma, não no conteúdo) de alguns minutos atrás, desde a intrusão, ressoa nítida: “não tenho nada a perder, qualquer bobeada e eu estouro seus miolos”.

O mundo lá fora não quer saber de nós. Exibicionista, estampa o céu de um azul arrogante, que nos esnoba com seus contrastes, a mata verde pontuada de flores coloridas. Muitos morrem de modo trágico em meio a uma paisagem exuberante. Outros recebem notícias excelentes abafadas por raios e trovões. São mundos sem pontos de contato, indiferentes um ao outro. A natureza desdenha dos êxtases e das dores do homem, capaz de chorar por bobagens inventadas por ele próprio, incluindo aí o valor de beleza atribuído às paisagens naturais. Nem de longe parecem a mesma natureza.

Há também o artificial. Penso na nossa casa, minha, de Eugênia, onde Vitória morou tão pouco — começo a entender a urgência com que decidiu se mudar tão logo os dezoito anos chegaram. Para essa casa é que rumamos agora, ainda que a passos arrastados. Vejo a porta de entrada, o corredor amplo, as escadas que passam ligeiras, levam aos quartos do andar superior e me conduzem ainda para o terceiro nível, para a porta do cômodo único, o escritório onde se aninham os livros. Sei que cada coisa está em seu lugar. Papéis, lápis, canetas, computador, dezenas de pequenos blocos de anotação em branco. Estão lá, diferentes da natureza (mas tão indiferentes quanto ela), imóveis, esperando para que alguém faça algo, levante a mão, use o polegar opositor para pinçar um lápis, exerça alguma força de atrito para esfregar o grafite no papel branco e materializar um sentido. Se ninguém aparecer para isso, os papéis não trovejarão, nem os lápis azuis desenharão algum tipo de céu. Quantas vezes devo ter assistido a Toy Story com Vitória? Aos quatro anos, ela não parava de se agarrar às minhas calças, pendurando-se em meu cinto para que víssemos outras e tantas vezes aqueles seres inanimados que ganhavam vida longe dos olhos humanos. O olhar humano era medusa: tirava a alma dos bonecos, devolvia-lhes à matéria de cuja combinação não soprava nenhuma porcentagem de vida: um amontoado de plásticos e tecidos imitador de formas reconhecíveis. Assim é que me perco imaginando papéis e livros — a ideia não é original, mas me distrai — ganhando vida na minha ausência, conversando com canetas e lápis. Mas sei, mesmo com a impossibilidade da certeza, que estão lá inertes, sequer submissos, o que implicaria algum tipo de intenção. Então me sinto Calvin, o garoto que dá vida ao que é morto. Que recria em Haroldo suas outras faces, seus contraditórios, seus paradoxos, com ele discute, por trás dele se esconde, culpando-o, abraçando-o, apoiando-se nele. Calvin, o menino que não fui e que não tive.

Dentro do espectro que vai de Woody e Buzz Lightyear até Calvin e Haroldo, forma-se um sistema de pensamento capaz de pensar a relação entre o sujeito e o objeto. Eis uma boa introdução para alguma palestra. Luka poderia falar sobre isso também. Já que não se fez biólogo, pode explorar esse conceito como arquiteto, nem que force a barra para especular sobre o espaço das relações e a relação entre os espaços, as coisas e os homens.

Ainda preciso ver se Luka continuará existindo ou se meus miolos estourarão antes.

“Se estão pensando que eu sou um demente mental, estão enganados.”

Era a voz do marginal que irrompia em meio ao som do vento e dos pneus no asfalto. Assim como às vezes sonhamos estar sonhando, levei um susto dentro do susto maior, pano de fundo do terror que estávamos, Eugênia e eu, vivendo dentro de nosso carro. Desde a confusão permeada por balbucios agressivos de meia hora atrás, o silêncio havia se estabelecido. Um silêncio que permitiu devaneios inusitados, passear por Calvin e Toy Story. Três pessoas em silêncio dentro de um carro, uma delas armada. Três vozes caladas, constrangidas. Mas não era só eu quem pensava muito, misturando assuntos desconexos. Alguém devia estar pensando a toda a velocidade para que a força centrífuga das palavras não vencesse as curvas e escapasse pela boca. Se estão pensando que eu sou um demente mental, estão enganados, foi o que ele disse.

— Você quer dizer “doente mental”. “Demente” já é “doente mental”. Falar “demente mental” significa o mesmo que falar “doente mental mental”.

— Ah, entendo: se pensarmos na equação (demente) + (mental), na qual demente = doente mental, então teremos (doente mental) + (mental), ou seja, “doente mental mental”.

— Seu raciocínio matemático é perfeito.

— Obrigado.

Chegamos ao final da estrada de Garuva. Curitiba está à direita. Faço a curva. Esse aviso que ele nos dera no meio de parênteses cravados no silêncio poderia ser entendido como o contrário do que quisera dizer? Seria ele um doente mental tentando expurgar o rótulo? Se esse delinquente for mesmo insano, isso pode ser pior do que um sujeito apenas mau. Ou perdido. Se ao menos eu pudesse saber o que Eugênia está pensando.

— Você poderia nos dar um minuto? Preciso conversar a sós com minha mulher. Você sabe, não? Coisas íntimas. De casal.

— Mas claro, desculpem minha indelicadeza. Quando quiserem, parem em algum lugar. Eu desço do carro, vocês conversam e depois me chamam.

— Quanta gentileza. Não teme que o deixemos na estrada a comer poeira? Ou que eu engate uma ré e lhe esmague o crânio?

— Ah, recuso-me a acreditar que casal de tão fino trato incorreria em tamanha falta de decência. Os bons princípios ainda prevalecem e é por isso que tenho fé na humanidade.

Minha ousadia me deixa apenas girar a cabeça um pouco para o lado, onde vislumbro Eugênia, primeiro suas coxas, depois subo meus olhos até seus olhos, que não me olham. Parece uma boneca de cera. Os guardas do Madame Tussaud devem estar atrás de mim. Apesar de retesada e imóvel, mãos crispadas no cetim da saia amassando as varizes, Eugênia tem um semblante indecifrável.

Uma pequena ousadia leva a outra. Em frações de segundo, passeio meus olhos pelo espelho retrovisor. Vejo apenas um vulto, não arrisco a sustentação do olhar. A setenta quilômetros por hora, mesmo as curvas da serra se aproximando, seria possível olhá-lo com mais vagar, desde que ele fosse um filho, um sobrinho. Mas um rapaz armado que diz não ter nada a perder, promete estourar nossos miolos e jura feito doente mental que não é demente mental inspira cuidados, prudências, covardias. Sou fraco para exibir coragem e tento procurá-lo sem que me veja. Minhas olhadelas veem apenas um rosto mal enquadrado no retrovisor, meia face aparecendo, outra metade sem o alcance de espelhos. Vejo sem ver, meu olhar sempre desviante. Dou mais um zap em seu rosto e torno a olhar para frente. Umas quatro ou cinco vezes repito o ritual, a esguelha tirando tinta da sua pele, o olho que busca e não quer encontrar a correspondência com o outro porque teme a brutal resposta, mesmo procurando um naco de empatia. Sei, porém, que é preciso conhecer o inimigo.

Tento mirá-lo, então, mais uma vez. Parece absorto, o olhar nas montanhas. Vasculho boca, desvio, vejo um nariz bem formado, volto para a estrada, expressão das sobrancelhas sem significado aparente, retorno para o caminhão que me ultrapassa. Volto o olhar e ainda vejo seu olho perdido e agitado mirando a Serra do Mar.

“Olhando o quê? Nunca viu? Quer que eu te estoure os miolos? Não sou demente mental, mas não tenho nada a perder. Qualquer bobeada, bum. Se você parar na polícia, vou preso, mas você.”

Os sentidos se embaralham e se anulam. O entendimento cai por terra. Eu olhava para seu olho direito, um olho que apontava para a serra. O que fazia aquele outro, todo esquerdo, olhando direto para mim? Frio súbito na boca seca do abdômen e desorientação. Ironia medonha: o olho direito era torto. O estrabismo como recurso. Encarei por pouco tempo o olho sinistro, que me via.

Os olhos díspares faziam coro à discrepância que eu continuava intuindo: que palavras agressivas para essa voz suave sem projeção nem arestas.

Há recomendações da polícia: não argumente, não reaja. Não foi por recomendação alguma que me calei. Não sabia o que dizer, como dizer, esbocei um “mas…” que não saiu da garganta áspera, prevenindo-me da ausência de palavras futuras. Se não sabia o que dizer depois do mas, melhor que ficasse preso.

A estátua de cera ao meu lado — as intermináveis borrifadas de luz alta atrás de mim seriam mesmo a guarda do Madame Tussaud? — crispou um pouco mais as mãos, erguendo a saia acetinada, brilhante e viscosa. Há quanto tempo não via um pedaço daquelas pernas? Lá fora, a Serra do Mar esnobando-se toda. Ao meu lado, as veias minúsculas das coxas de Eugênia eram estradinhas azuis que recortavam a paisagem de carne e subiam, prenunciando a mata previsível e há muito tempo intocada. Veredas e varizes seria bom título para um livro. Grande sertão: varizes.

Os recatos de Eugênia começaram de repente. Talvez uma vingança pela nossa história de vida. Ou ao menos para o enredo que criei sobre a nossa história de vida. Além dessa hipótese, há outra, complementar: andara se convertendo — ela jura que não — aos ritos católicos, com os quais aprendera, segundo ela, as mil lições que a religião tem para nos ensinar, seu apego à vida em comunidade, seu modo de preservar rituais de passagem, seu jeito de reforçar o valor da família e da proteção aos mais frágeis por meio das figuras emblemáticas arquetípicas de um pai, um filho e uma mãe. Que essa mãe engravida mas é virgem e cria uma pombinha branca que a fecundou depois da visita de um humanoide com asas, isso Eugênia não me explica, não tem importância alguma para ela, o que conta, diz, são os símbolos que emergem dessa imbricada relação. Ela chama de complexo o que eu chamo de delírio criado em uma época obscura e que, ainda hoje, é sustentado por alguns picaretas. Você nem parece escritor, ela me acusa, não consegue abstrair nada, não consegue espremer essas histórias e ficar apenas com o sumo — ela diz o suprassumo — delas.

Então, uma combinação entre sua conversão tardia e a transfusão de forças que nossas vidas sofreram é a nova versão que tenho para explicar seus recentes recatos, suas fugas aos mínimos toques.

Eugênia é oito anos mais velha do que eu. Nos conhecemos nas muitas festas que os centros acadêmicos da Universidade Federal do Paraná organizavam no início da década de 1980. Ela fazia sua segunda graduação enquanto eu acabara de entrar na primeira — e única. Vi na faculdade a tábua de salvação para meu grande projeto de ser escritor. Era a tábua na qual queria entalhar o meu destino. Nada além de dois poemas escritos me dava essa garantia. A arrogância adolescente tem a vantagem de esconder de nós mesmos as fragilidades e não nos faz ver — e essa cegueira nos resguarda — que provocamos no outro a temida vergonha alheia. Um poema social e outro de amor eram o meu portfólio para entrar em uma faculdade de Letras para ser escritor. Não para aprender, claro, já que um jovem de vinte anos não tem mais nada para aprender, mas sim para mostrar o que já era capaz de compor, conhecer pessoas, publicar nos pequenos jornais dos estudante até que alguém passasse os olhos e descobrisse o gênio que ali se escondia. Minha infância não teve interesses maiores. Se Vitória, aos quatro anos, me pedia para ver e rever Toy Story, eu, aos quatro, ouvia meu pai contando sobre as bordoadas que dava em estudantes na Reitoria e no Politécnico durante o fervilhante ano de 1968. Essas histórias eram os meus contos de fadas.

É possível que ele tenha batido nos pais de Eugênia. Gosto de pensar nisso. Hoje menos, mas nos momentos em que tínhamos um casamento mais ativo, nas horas das grandes brigas que só os apaixonados são capazes de armar, eu adorava imaginar, cena a cena, meu pai, cassetete fálico em punho, desferindo doses bem distribuídas de pancadas, tatuando hematomas na pele branca e ainda firme da mãe de Eugênia. Não gostar de sogras é um atavismo que os livros de piadas se especializaram em descrever. Não há novidade nisso. E quando Eugênia repetia os discursos da mãe, narrando o drama de quem sofreu na pele e nos ossos a brutalidade de cavalos de toda a espécie, e sofreu o terrorismo psicológico das fichas do DOPS em Curitiba, começávamos intermináveis brigas entre a minha visão de mundo vagabunda, de quem se encostava na família dela a fim de sugar o sustento para a carreira genial, e a visão de mundo da família dela, ex-combatente da ditadura que julga ter vencido as agruras e só por isso construiu sem peso na consciência mansão no Jardim Social com cinco carros na garagem. No início, Eugênia me bancava, era meu escudo, minha couraça à prova de balas. Depois deixava passarem alguns tiros até que, por fim, também arriscava umas puxadas no gatilho. A tudo isso eu atribuía a mão da mãe dela, um anel em cada dedo, irrompendo das sedas com as quais sempre se vestia. Eu tinha uma antagonista, alguém que jamais compreenderia que o gênio precisava dormir durante o dia, pois estudava à noite, estendia as aulas para os bares, escrevia obras-primas em guardanapo, fumava, bebia, buscava inspiração. Temos que usufruir o capital desses concentradores de renda que não produzem, eu pensava. Não posso sustentar vagabundo, a mãe de Eugênia dizia. Originalidade: zero.

Cezar Tridapalli

Nasceu em Curitiba, em 1974. Em 2011, lançou seu primeiro romance, Pequena biografia de desejos (7Letras). Em 2013, venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, com o romance O beijo de Schiller, a ser publicado pela Arte & Letra em 2014.

Rascunho