O adventício

Conto de Regina Iorio
Ilustração: Marco Jacobsen
01/05/2004

Quando o navio fundeou no Porto Pedro II, um homem, simpático, elegante e de meia idade, assomou ao convés, com ar abstrato, desinteressado de tudo.

As lanchas encostavam ao grande casco negro, despejando uma chusma de carregadores e camelôs de hotel, que faziam algazarra na disputa de passageiros. Por todo o navio havia grande movimento de malas. Uma indecifrável confusão de gente. Homens que se atropelavam num vaivém infernal para a separação da bagagem que iam desembarcar. Mulheres pálidas, convalescentes do mal du mer a titubearem passos pela escada de bordo, a fim de saltarem às lanchas. Em torno do vaso mercante, coalhavam-se pequenas canoas de vendedores de frutas. Tudo era movimento, aflição.

Apenas o homem parecia não se envolver com a agitação. Verificou calmamente se os seus volumes estavam sendo desembarcados. Neles estavam os principais livros que compunham sua biblioteca e seu volumoso dossiê literário. Após dois dias de viagem, proveniente da Capital da República, havia caprichado na toalete matinal, destacando-se dos demais passageiros da embarcação. Vestia-se à moda européia: terno xadrez com colete acinturado para afinar a silhueta, luvas brancas e pince-nez pendurado no bolso. Usava também discreta maquiagem — um pouco de pó-de-arroz nas faces, leve carmim nos lábios e pomada nos cabelos e bigodes tingidos à graúna… Embora os anos bem vividos, era ainda um homem atraente.

No momento em que a lancha ia partir para a terra, ele tomou a sua mala de mão que estava ao lado e desceu para a embarcação. Durante o percurso até o cais, observou a paisagem verde-clara da manhã e ao fundo “a fumaça branca das chaminés, onde palpitava a vida da cidade. Apreciou a temperatura, que mesmo em pleno verão, num dia ensolarado de janeiro, mostrava-se mais amena que a do Rio de Janeiro e a do Norte do país, onde nascera e passara a maior parte de sua vida”.

Esperava-o no desembarque um funcionário dos Correios de Paranaguá, conforme combinado anteriormente com a administração desta instituição. O amanuense mostrou-se prestativo e eficiente, procurando disfarçar o nervosismo que sentia diante da eminente autoridade. Apressou-se em despachar as pesadas malas para a estação ferroviária de onde seguiriam, ainda nesta tarde, no trem diário para a capital do Estado.

A seguir, se dirigiram à repartição federal para uma breve visita. Lá, a chegada do elegante senhor foi saudada com pequena recepção. Em rápidas palavras, o homenageado agradeceu aos funcionários parnanguaras, afirmando que não esqueceria a calorosa acolhida que recebia nesta cidade que tanto o impressionara, especialmente pela beleza das primorosas senhorinhas que ali floresciam, o que agradou muito as jovens auxiliares presentes.

Após o almoço, o homem embarcou no trem para Curitiba. Os olhares lançados à sua pessoa durante o embarque, seja pela elegante fatiota ou pela quantidade de malas, asseguravam-lhe a certeza que já se lhe antevia no coração: sua passagem pela capital do Sul do país não passaria despercebida, mais do que isso, acreditava, poderia projetar-lhe socialmente, colocando-o entre os principais assuntos discutidos nas rodas culturais do local, quiçá do país. Era apenas uma questão de tempo…

Durante boa parte da viagem ele perdeu-se em devaneios, relembrando Manaus, onde vivera por mais de vinte anos e os amigos e amigas que por lá deixara. Ainda repercutia em sua mente a carta de despedida à sociedade amazonense que havia redigido para publicação nos principais jornais daquela capital. Nela descrevera sua trajetória profissional, a atuação marcante nos correios, chegando ao posto máximo de administrador como seu pai, na política estadual, na imprensa e nas letras. Essa última era, com certeza, a parte que mais gostava, podendo recordar sua força e expressão.

Na literatura, diz-me a consciência, que trabalhei sempre, nos meus livros desvaliosos, em artigos e crônicas, na correspondência e na palestra, pelo alevantamento do nome do Amazonas, para que este fosse conhecido lá fora como merece, no Sul que nada sabe de nós e, no estrangeiro, que nos desconhece em absoluto — a esta heróica terra que é de intelectuais, onde há uma mocidade brilhante e uma velhice sábia, e de que é um dos mais límpidos expoentes essa Academia de Letras, que é uma honra para o Brasil literário.

Um sorriso brotou-lhe nos lábios carminados ao lembrar as linhas que dedicara aos seus inimigos e caluniadores. A eles mostrara toda sua erudição de homem de letras.

Cumpri apenas o meu dever. Mas para o efetivar, tive de lutar. Daí, neste momento, como sombra natural do quadro, espadar a pequena onda dos ingratos, dos caluniadores. Dizia Emile Faquet, numa das suas páginas lampejantes como espadas nuas ao sol — “o ofício de benfeitor é perigoso. Como nos põe em relações com os melhores dentre os seres humanos e com os piores, pode suceder entre estes últimos se encontre quem nos assassine. É mesmo essa a única coisa que faz com que este ofício tenha merecimento…”. E Montaigne, numa das suas sentenças sábias, fulgurantes já dizia — “Le perdon ne sereit pas meritoire seil n’etait que l’oubri des injures”. Eu perdôo a todos eles.

As duras palavras que lhe dirigiram em insubordinado panfleto seriam logo esquecidas. Uma mágoa maior lhe apertava o coração, a saudade das bonitas morenas da região que tanta felicidade lhe deram… Por certo no Sul não encontraria morenas tão brejeiras… Em Paranaguá, ele já havia observado a influência européia na silhueta das senhorinhas e a tez bem mais pálida. Não que isso lhes tirasse a beleza. Talvez a transparência da pele se lhe permitisse penetrar mais facilmente em sua alma. Ah, a alma inquieta das mulheres… pensou, saboreando suas próprias palavras.

Ao final do trajeto, quase chegando a Piraquara, o homem teve a atenção despertada por acalorada discussão entre os passageiros do vagão. Um negro fardado, de nome Benedito que demonstrava vasto conhecimento, e um jovem impetuoso, de bigodes à Kaiser, que soube depois ser delegado de polícia na capital, debatiam os fuzilamentos ocorridos no quilômetro 65 daquela estrada de ferro. Pelo que apreendeu na conversa, ali padecera, entre outros, o Barão do Serro Azul, um ilustre paranaense. O debate iniciado sobre esse tema passou, em seguida, para a questão da educação no Brasil. Embora esse fosse um assunto recorrente nas rodas literárias e intelectuais que freqüentava, ele preferiu não se manifestar, gozando os últimos momentos de seu anonimato.

Logo chegaram a Curitiba. O trem arfava, galgando o aclive do Cajuru. Viu-se a seguir a torre da catedral, as chaminés das fábricas e o perfil elegante de pinheiros dispersos. O comboio atravessou a ponte da João Negrão. Em sua curiosidade de recém-chegado, ele colocou a cabeça para fora da janela e observou pela primeira vez as ruas ouvindo, distintamente, o pregão do guri oferecendo o Diário da Tarde. Ao fundo, as operárias da fábrica de fósforos terminavam sua jornada de trabalho e iam encontrar com os rapazes das oficinas ferroviárias. O sol morrente polvilhava foscamente de luz a cidade.

Ia pelo vagão a lufa-lufa dos preparativos atropelados do desembarque. Já o sino da locomotiva badalava, dlin, blão, dlin, blão, nos arrancos finais do monstro resfolegante de vapor e aço. A onda agitadiça dos que enchiam a plataforma assaltou os vagões, uns nas ofertas de préstimos, outros à procura aflita de amigos ou parentes vindiços.

O homem procurou um fretador a quem entregou suas malas de mão e os tiques de bagagem, indicando o endereço do Hotel Jonscher. Abandonou o carro e observou as dependências repletas da gare da Barão do Rio Branco. Uma grande comitiva, composta de funcionários da repartição postal, autoridades, intelectuais e literatos, esperava-lhe. Ao som de vivas, o ilustre adventício foi aclamado e saudado efusivamente pelos novos confrades. Após a simpática surpresa, todos se dirigiram para o corredor de saída.

Ao atingirem a porta principal, o homem estranhou o ar fresco da tarde a lhe bater no rosto. Deparou-se com ampla praça, de nome Eufrásio Correia, toda ajardinada, com fontes monumentais e estátuas. Seguiram pela Barão do Rio Branco, pitoresca alameda que se iniciava na estação de trens e era ladeada por belos e majestosos sobrados. Pouco adiante, avistaram o hotel onde se havia preparado uma breve confraternização.

No Jonscher, os convivas participaram do “Dinner Concert”, realizado todas as quintas e sábados no restaurante anexo ao hotel. Diversos escritores locais leram páginas literárias externando as boas-vindas ao recém-chegado, que agradeceu emocionado. As comemorações avançaram após o jantar. No entanto, devido à exaustiva viagem e ao vasto programa que passaria a cumprir nos próximos dias, o homem despediu-se, abraçando efusivamente um a um os presentes, e retirou-se para o quarto.

Apressou-se em desfazer a toalete e realizou a higiene noturna. Depois prendeu a rede nos cabelos e colocou carnes cruas nas bolsas dos olhos para suavizá-las. Ao encostar a cabeça no travesseiro, o homem abriu um vasto sorriso.

No dia seguinte, levantou-se mais tarde que de costume, dedicando um tempo maior aos lençóis. Sentiu-se disposto e revigorado. Como era de seu feitio, demorou nos preparativos matinais. Na descida para o desjejum, encontrou com graciosa serviçal.

Era Mimi, a arrumadeira mais bela dos hotéis de Curitiba, desejada por quantos viajantes a conheciam. A sua tez alva como o leite, seus cabelos negros como o ébano, punham tontas todas as cabeças que já tivessem mais de 20 anos… Trajava sempre vestes por demais leves, de saias curtas e invariavelmente de avental que caía de seu pescoço de neve, até a cintura roliça, para prender-se sob um laço enorme de duas faixas e depois descer até a barra do vestido. Pelo pequenino decote que usava, dir-se-ia que penetrava loucamente a ânsia indômita dos olhares curiosos e ávidos pela beleza de seus seios bem formados.

Entabularam rápida conversa no foyer do hotel e ela colocou-se à disposição do senhor para qualquer serviço, bastando para isso que ele a chamasse em seus aposentos. Após lauto café, ao estilo alemão, o homem saiu em companhia do Coronel Theodorico dos Santos, que respondia interinamente pela repartição dos Correios do Paraná.

Aproveitaram a manhã ensolarada para um ligeiro passeio pela cidade. Proclamava o desabrochar da grande aldeia, crisálida maravilhosa, na urbe irradiante e sedutora de largas avenidas e umbrosas praças, vilas e palácios, bondes elétricos e automóveis, clubes chiques e teatros confortáveis.

O recém-chegado observou que os edifícios públicos da cidade seriam notáveis, mesmo em capitais de maior importância, especialmente o Paço Municipal, o Palácio do Congresso, da Universidade, do Ginásio e da Escola Normal, havendo também grande número de prédios particulares, comerciais e residenciais, que rivalizavam em conforto e aspecto com os melhores das metrópoles estaduais brasileiras, igrejas de certa beleza arquitetônica e entre elas uma das mais belas do Brasil, a Catedral.

No centro, mais precisamente na Rua 15 de Novembro, principal artéria do coração da cidade, o homem visitou as redações dos jornais para apresentar-se, realizando uma curta palestra. Aproveitando a oportunidade, deixou com os editores uma cópia de seu dossiê literário e profissional e de sua carta de despedida ao Amazonas.

À porta do último periódico, despediu-se do coronel e resolveu percorrer o caminho de volta ao hotel a pé. Andou displicentemente pela 15, olhando as vitrines sem pressa. Observou os lançamentos expostos ao lado da Gazeta e dirigiu-se à livraria Mundial. Entrou. Folheou alguns livros e entreteve-se a examinar um volume ricamente encadernado. Era um ensaio de Foucher sobre Hegel e Schopenhauer. Decidiu comprá-lo. Passou depois na Confeitaria Bube para um refresco, encontrando ali diversos intelectuais citadinos, que todos os dias faziam ponto ali entre as 11 e 12 horas. Parado na porta do estabelecimento, ficou admirando o movimento de carros e pedestres, versejando mentalmente.

Na rua 15 ou numa praça
Ei-lo flanando… na verdade
Só para ver a fina graça
Das costureiras da cidade…
Ao sol das onze é que desperta
A alma da rua… nesse instante,
A turba em giro fica alerta
E a luz se torna mais brilhante.
Acorda tudo, clarinando
Ao sol das onze, como a um choque…
A essa hora é que, rindo e falando,
Vem as “grisettes” — toque, toque…
Ele é que o diz, com suas maneiras
De boêmio, rico de alegria:
“A hora em que saem as costureiras
é hora melhor de todo o dia”…

De volta ao Jonscher, ainda em tempo para o almoço, dividiu a mesa com Paulo de Alencastro, jovem de espírito original, vindo do Rio de Janeiro, mas que já viajara grande parte da Europa. Paulo exibia uma cultura geral mais ou menos elevada e possuía um brilho excepcional quando falava. Entabularam animada conversa sobre filosofia e sociologia, tendo o jovem se mostrado, ao final, um apaixonado por Hegel.

À tarde dedicou-se apenas à redação do discurso para sua cerimônia de posse nos Correios, marcada para o dia seguinte. Procurou as mais belas frases para apresentar aos funcionários os moldes de sua administração. Foi interrompido em seu trabalho, algumas vezes, pela visita de autoridades e intelectuais que vinham lhe prestar as boas-vindas. Tendo passado a maior parte do dia sentado, ora escrevendo ora palestrando, resolveu caminhar novamente após o jantar.

A noite estendia-se sobre a cidade quando chegou à rua 15 de Novembro, cheia de claridade e de ruídos diversos àquela hora. Garotos apregoavam o Diário e A República pelas esquinas; era o momento em que a rua mais se animava, sacudida por uma onda de vida intensa. Nas portas do café Art Noveau e da Livraria Econômica, grupos vadios palestravam, e no correio muita gente esperava que se fizesse a distribuição da mala. Os focos elétricos rutilavam, banhando a luz de espaço a espaço, e o bonde do Batel passava com um tinido de guizos, lentamente.

O homem comprou os jornais e sentiu-se satisfeito ao ver seu nome estampado na primeira página de todos eles. Retornou alegre e subiu para o quarto. Não conseguiu, no entanto, adormecer.

Foi então que a figura tentadora de Mimi começou a lhe perturbar a idéia e as suas palavras vieram-lhe à mente tornando-o quase inconsciente…

Como não pudesse suportar por mais tempo aquele estado de alma e corpo, levantou-se, enfiou um roupão e às apalpadelas saiu pelo corredor escuro à procura da porta do primeiro quarto, onde bateu de mansinho com os nós dos dedos falando:

— Mimi…, Mimi… estou precisando de uma cousa…

E uma voz macia respondeu logo depois.

— Quem é que está aí? O que quer de mim?

— O que a menina me prometeu… Eu preciso da menina, à noite!…

A porta rangeu e abriu-se.

Regina Iorio

É doutora em História pela UFPR com a tese Intrigas & Novelas: Literatos e literatura em Curitiba na década de 1920.

Rascunho