Número 73

Conto de Susana M. Marques
Ilustração: Marco Jacobsen
01/05/2006

Faz de conta que não viu. Olha pela janela — os olhos ligeiramente voltados para o alto, como se nessa posição as lágrimas vertessem para dentro. Cruza os braços. Aperta-os um contra o outro, desconfortavelmente, até sentir dor. A dor física é bem mais fácil de suportar. Ele gostava de dizer isso àquela rapariga. Quem é que ela pensa que é?

Abre o livro que acabou de comprar. Fecha-o. Volta-o. Não lhe interessa muito o peso, a grossura, o número de páginas, o volume que ocupa nas mãos; sim: o toque do papel, as badanas, a lombada. Gosta de capas. De contra-capas. E é onde perde mais tempo. Precisa de se seduzir, até que sente que chegou o momento. Abre o livro. Os olhos vêem as letras com toda a clareza, mas a leitura é turva. Não é possível ler com um pensamento parasita. É incomodativo. Por isso, folheia, desprendidamente, à espera de se cruzar com uma frase de força superior. Com uma só mão, obriga as páginas a deslizarem num leque veloz. Em vez de um homem que corre, uma mancha que corre. Quando a mancha pára, ela desperta do encantamento — os olhos focam nitidamente uma palavra: “desprezo”. Quem é que ela pensa que é?

É verdade que leva aos pés um saco que parece de lixo — de plástico negro opaco — e mais dois ao colo, de plástico às cores com nomes de lojas conhecidas na cidade. Talvez fosse importante avisar quando se entra num autocarro com sacos de plástico: não é lixo. Não é lixo, repete, e não dá conta que os lábios acompanham. Ainda não tirou os olhos da janela, mas nela também se vê o que se passa cá dentro. Numa espécie de exercício oftalmológico, entretem-se a trocar os olhos: ora se vê ao espelho, ora observa outros passageiros no vidro anoitecido, ora tenta destrinçar os objectos lá fora — só aqueles que passam: outros autocarros, carros, motas, bicicletas. Matrículas! Dá por si a procurar certos números. Codificados, secretos, milagrosos. Quando o primeiro entusiasmo passa, percebe, com alguma desilusão, que se trata somente de um jogo a que costumava brincar. Há muitos, muitos anos, muitos, muitos anos, muitos, muitos anos. Encrava na palavra muitos e simultaneamente esfrega os olhos. Muitos anos, os olhos já não são os de uma criança. Cobriram-se de rugas — não só no exterior, mas também no interior: dir-se-ia que em círculos que descem da íris em espiral. Pelo menos, é o que sente, quando a luz cai e tem que fazer um esforço suplementar para ver. Por um momento — muito breve, muito breve —, conseguiu esquecer a rapariga. Mas logo lhe ocorre: que pena não a poder ver enquadrada na janela. Não volta a cabeça. Não olha directamente para ela. Faz-lhe falta um filtro.

Gorro, blusão de pele, camisa de flanela axadrezada, calças de fazenda, botas: tudo coçado a um ponto que se torna difícil avaliar: um mendigo ou um pobre? E qual é a diferença? É assim que se vestem os pescadores e talvez seja um pescador em terra sem mar. Nesse caso, seria mais solitário do que um sem-abrigo. Já fechou o livro que acabou de comprar. Agora mesmo, é demasiado o esforço de tentar perceber onde vão dar as primeiras palavras das primeiras frases das primeiras páginas… O parasita passou a ser um hóspede. Instalou-se, e ela não tem outro remédio — convive com ele, nem o tenta afastar. Isso provoca um efeito: mal estar. A causa: culpa. Encosta a cabeça ao vidro. Se ele olhar para cá, ela pode fazer de conta que está a dormir.

Gorro, blusão de pele, camisa de flanela axadrezada, calças de fazenda, botas — sabe bem o que leva vestido. Mentalmente, faz o inventário e, de seguida, usa aquele estratagema ligeiramente esquizofrénico de se imaginar fora do corpo. Olha-se. Tem a perspectiva de um terceiro. Avalia, com a distância devida, o estado da roupa. Coçada é certo, mas não andrajosa. Tem a certeza disto. E tem a certeza de outra coisa: não cheira mal. É provável que não cheire bem, ou, pelo menos, não tão bem como determinados homens, talvez aquele, ao lado de quem a rapariga se foi sentar depois. Mas cheirar mal, não cheiro mal, pensa e o pensamento, infelizmente, não o alivia.

Foi o cheiro, primeiro. Depois, todos os sinais: os sacos; as mãos que os agarram firmemente para não tombarem, encardidas. Não tenho música, que pena. Quando se precisa. Nunca está à mão quando se precisa. Hoje, ela não trouxe o iPod, não tem nada que pôr nos ouvidos. Está irremediavelmente dentro do autocarro. Sem fuga, segue viagem e desiste de fingir que não olha para o homem. Sim, cheirava mal. E então? Nada que não fosse possível aguentar. Se neste momento, alguém fizesse uma festa à rapariga — nem era preciso ser uma pessoa próxima, bastava um estranho, por exemplo, o homem cheiroso de quem vai sentada ao lado — ela desfazer-se-ia. As lágrimas seriam como pó: sufocantes.

Já não olha para ninguém. Tem a sensação que toda a gente desvia o olhar. Nunca compreendeu esse fenómeno: as pessoas envergonharem-se pelos outros. Há mesmo aquelas que ficam embaraçadas pela simples sugestão de um embaraço. Eu não tenho vergonha, diz para si próprio em forma de rugido. Os olhos aumentaram neste pedaço de viagem e por mais que o homem se tente distrair ou confortar, não há dúvida de que está progressivamente triste. E já não é o gorro, o blusão de pele, a camisa de flanela axadrezada, as calças de fazenda e as botas, todas igualmente coçadas, ou nem sequer os sacos de plástico — o negro que parece de lixo e os com cores e nomes de lojas conhecidas na cidade — que metem pena. É o seu olhar que mete dó.

E os seus olhos carregam-se de muito escuro. Se pudesse levantava-se e ia sentar-se ao lado do homem outra vez. Mas talvez fosse pior. Enquanto considera a hipótese, alguém no autocarro repara como dois passageiros tão diferentes se olham de soslaio.

No outro dia. Quando foi? Há dois dias, ou terá sido há mais? Seria fim de semana, com certeza — é a quantidade anormal de crianças na rua que lhe permite saber quando é fim de semana. Mas se calhar as crianças choram com muitas pessoas. Não será só com ele. Ou será? Observa-se na janela. Tem as bochechas descaídas e isso dá-lhe um ar bom — abandonado, mas bom. Tal qual o cão. Um dia teve um cão. Nunca soube o que lhe aconteceu. Talvez um dia alguém pense o mesmo do homem. Uma rapariga, como a do autocarro: “nunca mais o vi, que lhe terá acontecido?”

Nunca viu aquele homem antes, mas, por alguma razão, é-lhe familiar… “Boudu Sauvé des Eaux” — reconhece traços do protagonista do filme do Jean Renoir. Como é que se chama? Como é que se chama? Não se lembra do nome do actor. Mas possivelmente foi essa a razão para, automaticamente, pensar: sem-abrigo, mendigo, vagabundo. E ainda que fosse — sem-abrigo, mendigo, vagabundo? Foi o medo, responde baixinho. Medo de quê? Não sei. Medo.

Se calhar teve medo. A criança tinha bochechas também e ficaram vermelhas e inchadas quando começou a chorar. A criança escondeu o rosto nas calças da mãe. E ele não tinha em quem esconder o rosto.

Não é medo de ser atacada. Não. Não. Não… Medo de se encontrar numa situação embaraçosa na cidade onde as pessoas conversam para o ar e tantas vezes para quem não as quer ouvir. Eles tanto andam a pé como de autocarro. Os loucos.

Se calhar teve medo. A rapariga. Quando ele era pequeno quando fosse grande queria ser assustador. Mas não era isto que tinha em mente. Desvia os olhos do seu reflexo na janela. Não se assusta a si próprio. Ainda. E é esta última possibilidade que o deixa desolado. Lá fora recomeçou a chover.

Lá fora recomeçou a chover. A rapariga também se vê à janela — desfigurada. E se poderia iludir-se — é a água —, sabe que não. Vergonha. Devia escrever mil vezes num caderno como na escola. Perdão. A rapariga tem vontade de sair do autocarro quando pára. Não o faz. Olha para a porta e deixa-se estar sentada. O autocarro arranca.

Nem o homem nem a rapariga contarão este episódio a ninguém.

Só um terceiro passageiro, alguém suficientemente sensível para ter reparado nesta minúscula dança de cadeiras, contará. Alguém impressionado com a crueldade de pequenos gestos: uma rapariga que se senta ao lado de um homem; que olha em frente e quando o homem não repara, para o lado; uma rapariga que se levanta com o seu silêncio.

A rapariga mete-se no lugar do homem, sem saber que o homem também se mete no lugar dela. A rapariga chora para dentro. O homem já não chora. Mais ninguém se sentou ao lado dele.

A viagem continua, porque nas cidades, com o tráfego, as viagens prolongam-se dolorosamente.

Susana M. Marques

Nasceu em 1976, na cidade do Porto, Portugal. Co-realizou o documentário Um olho para ver, o outro para sentir. Desde 2004, trabalha como jornalista. Em 2005, lançou revista de criação literária Base. Atualmente vive e escreve em Londres, onde colabora, como correspondente, com o jornal Público.

Rascunho