Novela-Folhetim: História do fim do mundo (4)

Capítulo 4 do folhetim "A história do fim do mundo", de Miguel Sanches Neto
lustração: Marco Jacobsen
01/12/2008

Correntezas

1.
Quando a pessoa perde o amor pela casa o mundo corre grande risco, disse Prudenciana, tentando se conformar com aquilo que não conseguira evitar, nem com muros nem com provérbios, e completou: não há temor naqueles que não amam o próprio chão, Jerônimo ainda quis diminuir o peso das palavras: não é nada assim tão grave, mas a mulher estava inconsolável: um dedo que se levanta contra a casa tem força para derrubá-la, e ela ergueu o mindinho com sua unha sem pintura e com um roxo no meio, Jerônimo ficou olhando o dedo da mulher, logo a mancha de sangue desapareceria, a unha voltaria a ter a cor de antes, era assim a vida, as manchas nas unhas saíam sozinhas, embora algumas pessoas, para evitá-las, furassem-nas com a ponta do canivete logo depois da pancada, quando se acumulava ainda o sangue, dando vazão ao líquido, e era assim que Prudenciana agia, não querendo esperar que a mancha desaparecesse com o tempo, perfurava o coágulo, sofrendo a dor do pequeno procedimento, e o marido tentou ajudar: é apenas um menino, um dia se esquece de tudo, e será como se nunca tivesse se afastado de nós, mas estas palavras não fizeram efeito nenhum sobre ela, continuava só desolação em seu papel de terra abandonada, que os agricultores deixaram em busca de outras que guardavam novos encantos, e restava a Prudenciana dobrar os cuidados com Paulinha, ainda paralisada diante da tevê, fugindo da casa de uma outra forma, porque quanto a Natanael este se perdera, não era mais um dos seus, estava indo mal na escola, já não ajudava o pai, que também não precisava da ajuda dele, os negócios iam bem e ele estava com mais funcionários, no fim do ano, se a safra fosse boa, compraria um carro para levar a família a Minas, onde moravam velhos parentes, se bem que agora, com este problema, Natanael talvez recusasse tal passeio, viajar seria reafirmar os laços familiares que ele tinha rompido ao trocar a própria casa por outra bem mais pobre: o que você viu nesta gente, perguntou-lhe a mãe, inconformada com a desfeita, Natanael poderia responder que enfim fizera amizades, o menino solitário tinha com quem conversar, dava gargalhadas que nunca imaginara possíveis, ou ainda que uma casa para ser de fato casa carecia de confusão, muitas pessoas falando ao mesmo tempo, a mesa sempre posta, com imensos pães caseiros para que cada um comesse na hora que bem quisesse, que uma casa não atraía por sua forma, mas por quem vivia lá dentro: é que estou descobrindo o mundo, foi isso que ele disse, entre aliviado e constrangido, para ouvir da mãe: a casa é o mundo, seu criminoso, e ela voltou à pia da cozinha, onde cortava uma galinha criada no quintal, abrindo o peito com a faca fina e bem amolada, depois tirando a barrigada para separar o coração, o fígado, a moela e o ovário, sacando deste os vários ovinhos, em tamanho decrescente, ainda sem a casca, mas com uma leve película, era esta a parte de que Natanael mais gostava, a mãe refogava esses ovos incompletos e ele comia com farinha de milho, mas desta vez Prudenciana jogou tudo no quintal, para alegria do gato que se fartou naquela massa de detritos, e Natanael sabia que a mãe estava dizendo algo para ele, que a partir de agora não seriam mais considerados os seus gostos naquela casa, ela estava punindo o filho pródigo por suas fugas diárias, não haveria banquetes em seu retorno, o mundo que o roubara devia ser o bastante para ele, não poderia ter o mundo e a casa, e na hora do almoço, depois de ter tomado banho para ir à escola, não aceitava mais que o pai o levasse na bicicleta, agora ia a pé, com os novos amigos, depois de engolir a comida para chegar logo na casa dos vizinhos, aproveitando um pouco da confusão do almoço com tantos filhos, e agora ele via que nem o jogo, seu pedaço de galinha predileto, com a carne de peito branca e firme, a mãe tinha colocado na travessa, ele teria que comer a carne escura ou chupar o pescoço com as marcas do sangue coagulado, e então colocou apenas o molho rubro e brilhante sobre o arroz e repetiu mais uma vez para mostrar a todos que uma pessoa para estar no mundo não podia se intimidar diante de pequenas contrariedades.

2.
Ansiava pelas manhãs, passara a acordar antes de Jerônimo, quando os primeiros galos da vizinhança rasgavam o silêncio, e, com os olhos abertos, acostumando com a escuridão que ia cedendo ao sol que se levantava numa distância apenas pressentida, ele ficava esperando a claridade se anunciar no vitrô do quarto, e era o primeiro a deixar a cama, trocava de roupa, lavando rapidamente o rosto, escovando os dentes, e saindo sem tomar café para o ar fresco da manhã, que fazia com que seus mamilos rosados se arrepiassem e os pêlos de suas pernas descobertas, quando estava apenas de calção, se eriçassem, tudo em sintonia com o estado de excitação de mais uma expedição que começava sempre na casa dos Pietro, no meio da quadra, do lado esquerdo de quem descia para a cidade, uma casa tão diferente da dele, em que não havia cercas, ali funcionara um armazém, um prédio comprido que abrigava também a casa, e tudo era muito precário, a construção nunca fora pintada, as paredes se entortaram, como que cansadas, não havia luz elétrica, embora a energia passasse na rua, e o chão era um piso bruto, varrido apenas na parte da manhã, depois que as camas eram arrumadas, e esta precariedade encantava o menino, a família morava ali havia anos e estava ainda meio acampada, a qualquer momento poderia recolher a lona de sua moradia, como os ciganos que apareciam de tempos em tempos, e seguir adiante sem deixar mais vestígio do que os sinais da ocupação do terreno, talvez por isso, por transmitir esta sensação de que em breve tudo se acabaria, Natanael desejasse viver intensamente dentro daquele espaço e mal amanhecia ele já rondava a casa, não precisava bater palmas porque não havia nada que a cercasse, e a porta da cozinha, numa das laterais, já estava aberta, ele subia um calçamento de tijolos mal conservados e se aproximava da porta para ver alguém na mesa de café, podia ser Dona Jerusa, embora fosse mais comum já encontrá-la no pátio de tijolos, onde ficavam a céu aberto os tanques, e ela estaria ali cuidando das roupas dos clientes, na sua rotina de lavadeira, integrado ao imenso quintal desprotegido, onde havia uma horta cultivada pelo marido, um hominho pequeno que andava pela cidade com um carrinho de mão vendendo verdura, este quintal era verde no chão e de teto colorido pelas inúmeras peças de roupas a secar, Dona Jerusa acordava logo pela manhã para dar conta da lavação e passar pilhas e pilhas de roupas, que chegavam das casas da cidade em grandes trouxas brancas, que os carros deixavam no pátio, e que depois seriam entregues numa bicicleta de carga idêntica à do Armazém Entradas e Bandeiras por um dos filhos do casal, nunca pela filha adotiva deles, Ana, que a mãe de Natanael resolveu contratar como empregada depois que ele adquiriu esses vícios mundanos, mas o mais comum era Natanael encontrar na pequena cozinha com uma mesa de madeira descascada e extremamente limpa, lavada todos os dias, o mais comum era encontrar um dos filhos mais velhos, o Luiz ou o Nilson ou o Quincas ou a Branca, que trabalhavam fora, sem contar Ana, que estava sempre pronta para sair, e quando o via, brincando, perguntava: vamos trocar de casa agora, e já lhe passava uma fatia grossa de pão caseiro, feito de forma diferente, com fermento de litro, e não com o comprado na mercearia, e esta diferença dava um gosto especial ao pão, ele pensava, mas talvez tudo não passasse da impressão, pois se alimentava longe de casa, como se estivesse andando solto pelo mundo e comesse coisas improvisadas em lugares encontrados ao acaso, o sabor da aventura melhorava o pão que ele comia em pé, ao lado da mesa, bebendo uma caneca de café, caneca de lata, que deixava um travo ferruginoso na boca, e tudo isso era a alegria de que tanto falava a Bíblia, e ele estava ali numa comunhão com o mundo, numa Santa Ceia em que os discípulos repartiam com ele o mais valioso alimento, e ele sentia o cheiro de graxa e óleo queimado na roupa dos rapazes que trabalhavam numa oficina de tratores e vestiam, pela manhã, calças sujas para começar a labuta, estranhando ver aquela casa, onde as pessoas buscavam purificar-se, liberar de seu ventre de madeira aqueles três moços, dois morenos e um loiro, com as roupas tão sujas, eles só as trocariam no final de semana, quando cortavam as unhas negras, e por mais que aparassem sempre ficava uma parte escura, e lavavam a mão com a buchinha usada para a roupa pesada, esfregando muito, deixando-as de molho na água com sabão, mas mesmo assim a sujeira não saía de todo, até as linhas da mão ficavam com graxa, mas, no sábado à tarde e aos domingos, eles exibiam roupas tão limpas e cuidadas quanto aquelas que Dona Jerusa entregava aos clientes mais ricos da cidade, talvez pela honestidade dessas roupas sujas pela manhã, eram trabalhadores partindo para mais uma jornada, talvez pela simples novidade do cheiro, Natanael gostava de comer ao lado deles, gostava mais ainda de ficar ao lado da Branca, que estava bem vestida para sua tarefa de ajudante numa lanchonete, tinha passado algum perfume, fazendo da cozinha um canteiro de bálsamos feridos, numa mistura tão estranha de cheiros, que ia do pão à graxa e a flores inidentificáveis, e isso abria o apetite de Natanael, um apetite para coisas ainda não-imaginadas, e quando eles se iam, despedindo-se da mãe que trabalhava no tanque, dava para ouvir a batida da roupa no esfregador de madeira, como se fosse um ponteiro barulhento do tempo que se esvaía, Natanael deixava a cozinha e entrava no corredor que levava aos quartos masculinos, os fundos da casa divididos em duas alas, tomando a metade exata do espaço, do lado direito ficava a cozinha, com uma porta dando para um quarto onde Dona Jerusa guardava as roupas, que dava para outro quarto, o do casal, pequeno, e este dava para o último quarto, o maior deles, ocupado pelas meninas, Branca, Ana e Elis, esta com pouco mais de dois anos, e esses cômodos tinham janelas laterais, mas raramente Natanael os freqüentava, era território interdito, embora tivesse franqueado o outro gomo da casa, com três quartos também, identicamente dispostos, onde dormiam os meninos, Luiz e Nilson no primeiro, Quincas e Leonel no segundo, e Laertes, Lúcio e Sidnei no último, numa ordem decrescente, e quando Natanael chegava aos quartos os meninos já estavam arrumando sua cama, ele os ajudava, e via um por um sair em busca da casinha no pátio, depois escovavam os dentes num dos tanques usados pela mãe, para se reunirem todos na cozinha, mas agora Natanael não aceitava outra fatia de pão, queria apenas ficar com os amigos, ouvindo os planos do dia, que se iniciaria primeiro com as tarefas, tinham sempre que ajudar a colher verduras, regar as plantas, virar o solo, adubá-lo ou enfeixar as cebolinhas, e Natanael participava de tudo, trabalhando como quem brinca, rindo ao menor pretexto, para depois brincar como quem trabalha, inventando uma cidade de mentira, onde cada um tinha uma profissão operária, tal como no mundo em que viviam.

3.
Feitas as tarefas, o tempo restante era destinado a conversas e brincadeiras no antigo armazém dos Pietro, que tinha duas portas de madeira imensas, de duas folhas cada, e janelas nas laterais, tudo remendado com mata-juntas e pedaços de tábua, o que dava ao prédio um aspecto de casa abandonada, sendo este o seu atrativo, e os meninos podiam ficar na parte da frente, com as portas abertas, brincando no espaço que fora de comércio, e agora era uma extensão da casa, onde caixas e entulhos, mesmo em grandes quantidades, não conseguiam tomar todo o espaço, e os meninos o povoavam com pés sujos, entulhando coisas encontradas na rua, ou construindo brinquedos de madeira, caminhões que imitavam com perfeição o modelo real, mas isso quem sabia fazer era apenas o Luiz, e nos finais de semana, antecipando a profissão a que se dedicaria alguns anos depois, a de motorista, transportando carne do Paraguai a São Paulo, passando pela casa dos pais para uns minutos de conversa e para deixar algum dinheiro ou presente, na sua existência errante, não tinha endereço fixo, morando com uma namorada na cabine de uma carreta Scania, uma vida que com certeza começou naquelas brincadeiras, ele exercitando seus dons de auxiliar de mecânico para construir um modelo de madeira para os irmãos mais novos, enquanto esperava o momento em que pudesse dominar um caminhão de verdade, mas não era sobre rodas que os meninos se afastavam da cidade naquela época, mas caminhando, sempre com um plano de passar um dia inteiro à beira de um rio, um domingo na festa de uma colônia, e Natanael aguardava a data com ansiedade, sem contar nada a ninguém, perdendo-se pela região montanhosa em que ficavam as pequenas propriedades dos agricultores que negociavam com Jerônimo, num conhecimento da parte rural de seu mundo, muito maior do que a parte urbana, acanhada entre milhares de sítios, aos quais chegavam com um embornal de pano de saco de açúcar com fatias de pão com manteiga ou doce, uma garrafinha de refrigerante cheia de café e outra de água, fechadas com uma rolha de sabugo ou de papel, que não vedava direito, daí o embornal ficar manchado, mas isso não tinha importância naquela longa jornada por estradas cheias de cascalhos e buracos, de subidas e descidas, que revelava uma paisagem nova de pastos, gados, as últimas lavouras de café, as primeiras de soja, que um dia se transformariam em deserto verde, e as casas de madeira sem pintura, tal como as dos Pietro, mas com paredes externas muito brancas de tanto serem lavadas pelas mulheres, embora o terreiro fosse de terra socada, e essas descobertas colocavam Natanael dentro de um outro país, perto e distante ao mesmo tempo, e ele não perdia nenhuma das novidades, parando nos sítios para tomar água, retirada do poço, como na época da primeira casa, mas servida em canecas de lata idênticas às dos Pietro, e havia frutas nos sítios, pêras duras, jabuticabas retiradas de árvores imensas, onde a pessoa não pagava o que ali consumia, pagava só se quisesse levar, laranjas azedas, mexericas e mangas comidas verdes, com sal e descascadas com faca, a boca ficava depois amarrenta, ou as maduras, socadas e depois mamadas por um furo, e havia ainda goiabas, pêras-ferro e mamão e banana e ameixa, toda uma quitanda experimentada em épocas e lugares diferentes, mas nada poderia ser mais empolgante do que a caça aos anus, cada um queria matar um ano preto com o estilingue que trazia no pescoço, e pelo caminho eles já iam acumulando a pedras mais redondas dos cascalhos, e alguns faziam bolotas com o barro de olaria, tão abundante nas imediações, e enfrentavam o mato, vacas ariscas, a possibilidade de uma cobra no caminho ou a ira de proprietários pouco amistosos para derrubar um anu, só para conseguir o pó do bico do pássaro, que seria uma receita mágica, e eles traziam um canivete no bolso, com o pretexto de que era para as frutas, para as canas de açúcar que encontrassem, mas a razão secreta, que todos sabiam mas ninguém admitia, era bem outra, o canivete, afiado nas pedras de amolar em que as mães preparavam suas facas domésticas, serviria para raspar o bico se alguém conseguisse pegar um anu, e esse pó seria guardado num saquinho plástico que estava no embornal sob o pretexto de colher sementes para o jardim das casas, e o sentido deste empenho todo tinha sido revelado, um dia, por Luiz Pietro aos mais jovens, quando eles perguntaram como ele conseguia tantas namoradas, e de fato ele tinha fartura disso, e Luiz disse que na idade dele, e não sendo a pessoa nem feia demais nem suja, e ele falava isso antes de tomar banho, recém-saído da oficina, vestindo calça e camisa ensebada, era mais fácil conseguir namoradas, mas na idade deles só tinha um jeito, e todos ficaram em silêncio, Luiz lixava a tábua com que faria a lateral de um caminhão, e se demorou uns segundos esfregando a lixa com força e várias vezes no extremo da tábua, para domar a madeira que o serrote arrepiara, fazia este suspense para ver a ansiedade dos menores, estavam tão gulosos, os olhos abertos mais do que o normal, obrigando-o a dar a receita: na idade de vocês, a melhor coisa é matar um anu preto, raspar o pó do bico dele e jogar sobre a menina que vocês escolheram para namorada, ele disse, e Sidnei, o mais novo de todos, perguntou se podia ser em mulher mais velha, ou só naquelas da mesma idade, Luiz respondendo, agora rapidamente: em qualquer uma, até numa velha, e Leonel estalou os olhos, enquanto Sidnei gritou que nojo, mas todos, a partir daquele dia, passaram a ver as mulheres, em qualquer idade, da mãe de um deles a meninas, como possíveis namoradas e quem sabe até amantes, por que não, bastava caçar um anu, e era esta a motivação oculta daquelas longas caminhadas pelo mato, eles cada vez se distanciavam mais da cidade, voltando só no começo da noite, Natanael tendo que ouvir, chegasse cedo ou tarde, o sermão de Prudenciana, levara até uma surra de cordão de ferro do pai, que concordara com a mãe que ele tinha se tornado um vagabundo, as notas na escola estavam baixas, ficaria para recuperação, e não ajudava nem o pai nem a mãe, pensando apenas em bater perna com os piores meninos da rua, mas isso era nada para Natanael diante da possibilidade de capturar um anu e obter o pó, ele já sabia na cabeça de quem atiraria aquilo, só que nunca conseguiram caçar o pássaro, o mais perto que chegaram dele foi apedrejar um coruja que fazia ninho num buraco no chão, mas nem tocaram neste bicho azarento, temendo que só a proximidade dele fizesse o efeito contrário e nunca, nem depois de moço, eles conseguissem namorada.

lustração: Marco Jacobsen

4.
Existe o elemento confiável e o elemento traiçoeiro, descobriu Natanael, com as conseqüências de todas as descobertas, aumentando sua desconfiança em relação ao mundo, que não estava ali fora para brincadeiras, e era impiedoso, permanecendo indiferente a sofrimentos ou simples gritos, mas também servia, este contato áspero com a realidade, para orgulhar os que exibem cicatrizes, para a maioria das pessoas horríveis, pois a elas só comunicam a dor e a agressão sofridas, mas queridas para o portador, pois são insígnias, troféus organizados na estante da sala, eles passaram por aquilo e venceram, estão ali para contar como foi, é o que Natanael fazia na escola, quando pôde novamente assistir às aulas, falando com vagar, para maior dramaticidade, contando tudo com gestos exagerados, acrescentando pequenos detalhes que dão o condimento do relato, por sorte que os outros envolvidos não estudavam na sua sala, e ele pôde impor a versão, que não era falsa, apenas melhorada, e começou a contar como o elemento terra, seguindo aí a crença de sua mãe, era, na maioria das vezes, confiável, não mentia à nossa visão, numa correspondência entre o visto e o pisado, o visto e o percorrido, e só podia ser perigoso quando houvesse uma cobertura qualquer sobre um poço, conhecia muitas histórias de pessoas que andando em terrenos abandonados, onde existiram construções, caíam em buracos, poços, privadas, valetas, mas aí a culpa não era da terra, e sim das plantas que a cobrem, a terra podendo ser considerada segura, principalmente em oposição ao elemento água, este tão traiçoeiro que nem precisava provar nada sobre ele, quantas pessoas não tinham morrido nas águas só neste verão: e eu quase fui um deles, concluía Natanael, ficando uns segundos em silêncio, olhos marejados que se fixavam no chão da sala, enquanto os amigos o rodeavam, esperando o resto da história, pela primeira vez ele estava sendo o centro das atenções, e isso tinha que ser aproveitado, e súbito renasceram a energia e a voz em Natanael, ele tinha ido passar o domingo nas margens do Rio da Várzea com os Pietro, cada um levara bastante comida para lanchar sob as árvores, vendo o rio correr, não, não tinham ido pescar, nenhum deles gostava de ficar parado na barranca do rio, isso era coisa para gente mais velha, que queria descansar, eles gostavam de andar, entrar num sítio e sair em outro, cruzar um pasto, subir uma montanha e, lá do alto, ver toda a região, com seus morros e vales, com casas em que os chaminés de tijolo ou de lata soltavam tufos de fumaça, e isso era para ele a coisa mais bonita do mundo, esta sua frase soou falsa, pois nada ele conhecia do mundo, também não falou da caça ao anu, o alvo do pó estava ali, e talvez aquela história toda pudesse fazer com ela o que o pó prometia, e isso dava a Natanael uma alegria nova, usava as palavras como componente mágico, e tudo estava certo com ele, tinha que ter passado pelo perigo, o perigo é como uma margem invisível e móvel, uma hora ela molha o seu pé, mas poderia ter tragado você, e foi assim comigo, a gente estava olhando o rio numa região em que ele forma um poço, águas mansas, superfície lisa, tudo era paz naquele ponto espraiado do rio, tínhamos comido nosso lanche, depois dormimos numas pedras lisas que ficam nas margens, sentindo o sol esquentar nosso rosto, coberto com a camisa que havia sido tirada do corpo, e veio uma intimidade com aquelas águas, tão calmas como a tarde que ia se adiantando, e eu que havia aprendido a nadar tempos atrás, embora só entrasse na água quando alguém me jogava, me ergui de uma vez, deixando a camisa cair no capim ao lado, e pulei, uma força me atraía, queria é claro me resfriar um pouco, mas também me batizar naquele elemento tão tranqüilo, e assim que caí senti a correnteza forte, as águas já me puxaram, Leonel acordara com meu pulo, ele sabia nadar bem, por isso não foi atrás de mim, conhecia o rio naquele ponto, e gritou para eu tentar a margem, a correnteza me carregava rapidamente, Laertes e Lúcio também se levantaram, e começaram a correr, me acompanhando, até que chegaram numa região de árvores que não davam passagem, perdi de vista os amigos, mas ouvia os gritos deles, eu lutando com as águas, o rio foi se estreitando e a velocidade aumentou, dava para ouvir um barulho de água batendo em pedras, teria que sair antes, dei braçadas para as margens, mas a correnteza queria o centro do rio, e fui me deixando levar, sem resistência, arranhando o corpo em galhos secos, onde tentei me agarrar, mas tudo passava rápido demais, afundei a primeira vez, e quase me afoguei, e ao voltar à superfície forcei o corpo para cima como se tivesse erguendo as pernas no sofá para a mãe varrer o chão da sala, e fui me esfregando nas pedras, bati as costas — e ele ergueu a camisa para mostrar o roxo imenso —, tudo que eu fazia era tentar proteger o rosto e a cabeça, mesmo assim me machuquei, e estava ali seu nariz quebrado quando conseguiu se agarrar numa pedra perto da margem, depois de ter esfolado o corpo em vários lugares, e ficou esperando uma eternidade até a chegada dos amigos, que o tiraram da água com a ajuda de um bambu que lhe foi estendido, ao qual Natanael se agarrou com o resto de suas forças, chegando às margens, sem conseguir nem ficar sentado, deitou e dormiu por mais de meia hora, porque lutar com as águas esgota muito mais do que andar pelas piores estradas, e quando ele acordou, dando alívio aos amigos que temiam algo pior, Leonel disse que estava com medo daqueles machucados em que começava a minar uma secreção aguada, podiam infeccionar, e alguém lembrou que urina era desinfetante, e os três, rodeando Natanael, abaixaram seus calções e mijaram nos machucados, mas isso ele não contou para a turma, como também não contou que os amigos, e também ele, já exibiam os primeiros pêlos.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Entre o sentimento de nojo e de desejo, Natanael descobre o primeiro corpo de mulher, enquanto sonho com uma namorada e com uma outra cidade. A mulher é do tamanho do mundo, ele vai descobrir, mas tudo tem o seu tempo.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho