Novela-Folhetim: História do fim do mundo (6)

Capítulo 6 do folhetim "A história do fim do mundo", de Miguel Sanches Neto
lustração: Marco Jacobsen
01/02/2009

Assunto de família

1.
Cada tentativa de fuga terminava num retorno, numa volta aos cuidados maternos, que se multiplicavam na esperança de estancar o desejo de percorrer caminhos, um desejo líquido, propenso a vazar pelas menores trincas, mesmo quando a casa é vedada pelo amor da mãe, por seu discurso, que exigia fidelidade à família, não apenas àquela família da qual natanael fazia parte, mas de qualquer uma, de um conceito de núcleo que se fecha para manter-se inalterado no tempo, para isso prudenciana colocava em movimento velhas histórias, que recebera de seus avós, e que guardavam um sentido protetor, como a do andarilho que chegou no sítio da avó rita, depois de anos vagando pelo interior de são paulo e paraná, queria um lugar para pouso, a avó lhe arranjou o paiol, ele dormiu sobre o monte de espigas de milho com palha, com alguma maciez, algum calor, ouvindo os ratos andarem nas travessas da construção de madeira, roendo coisas secas, a pouca distância dele, e, mesmo não tendo pedido comida, a senhora se apiedou do andarilho de cabelos brancos e mandou uma criança entregar-lhe uma vasilha com mandioca e carne de lata, preta e saborosa, que ele comeu depois de lavar as mãos no tanque de roupas, num sinal de higiene imprópria num homem em seu estado de estrada, roupas rotas, cabelos embaçados de terra, barba imensa e encardida, pés descalços, e ao saber disso rita se enternecera, havia sinais de decência naquele traste que vagava de porta em porta, provando dos perigos dos caminhos, e, na manhã seguinte, ofereceu-lhe roupas e calçados de seu falecido marido, que ele aceitou em silêncio, pedindo um pedaço de sabão feito em casa, desses escuros, e desceu ao rio, tirou os trapos num recanto protegido e se lavou demoradamente, voltando com a roupa nova e o corpo limpo, como se nunca estivesse naquela situação constrangedora, e quando dona rita o viu com as roupas do finado, achou-o tão familiar que num impulso o convidou para tomar café com ela, e não o recebeu na cozinha grande onde o fogão a lenha estava sempre aceso e os móveis eram rústicos, mas na mesa da sala, retirando da cristaleira as melhores xícaras, para espanto de todos: o que teria dado em dona rita para receber um andarilho como se fosse um príncipe, ela com certeza perdera o juízo, era uma desfeita para seus filhos e netos que nunca recebiam este tratamento, a família fez estas e outras censuras, e ela serviu café na xícara do hóspede, súbito tinha deixado de ser o mendigo que ali aparecera, e perguntara de onde era, e ele, até então mudo, disse que era do mundo: o mundo é um lugar muito grande, meu senhor, deve haver um cantinho que o senhor chama de minha terra, de minha casa, ela disse, e ele bebeu um gole de café com cuidado, ela cortou uma fatia de pão, esperando a resposta: nasci e morei num patrimônio até ficar moço, um dia saí para conhecer as cidades, quando voltei ninguém estava mais lá, ele disse, e rita estremeceu, seus olhos embaçaram-se com a ameaça de lágrimas, mas ela foi firme: e, que mal lhe pergunte, que patrimônio era este, ela quis saber, fazendo um grande esforço, para ouvir a resposta ansiada e temida: santa cruz, em minas, mas ele já não existe para mim, desde então, e já lá se vão mais de 40 anos, tenho vagado em busca dos meus, e dona rita já chorava, ainda sem coragem de abraçar o irmão que acabara de voltara para casa, os anos de provação no deserto tinham findado, e quando se esclareceram todos os detalhes – apenas ela estava ainda viva, os pais morreram anos depois da cansativa viagem ao sertão do paraná, da qual nunca se recuperaram, os outros dois irmãos também tinham morrido –, ela disse: nesta terra os homens morrem mais cedo, veja o caso de meu marido, e contou também que ela ficara ali, sem saber, à espera do irmão pródigo, para isso tinha resistido às doenças, para receber de volta quem se perdera, e chamou a filha mais velha, pedindo para que arrumasse o quarto de visita da casa, dizendo: seu tio enfim voltou – ela falava chorando –, partira de um lugar e para retornar foi obrigado a percorrer a pé milhares de quilômetros, encontrando o ponto de partida bem longe de onde o deixara, não, o mundo não era confiável, que todos aprendessem, o mundo pregava peças, mas graças a Deus ela tinha vivido para ver o irmão de volta, e aquele era um dia de festa, que não deixassem vivos frangos em ponto de abate, e apresentou o irmão a todos, e comeram e beberam em sua homenagem, e foram dias de alegria, dias de feriado, mesmo sendo época de preparar a terra para o plantio, a semente pode esperar, disse dona rita, eis a história que prudenciana tinha escolhido para contar, na verdade recontar, nesses dias em que cuidava dos ferimentos muito mais profundos do filho e preparava os melhores pratos que ela sabia fazer para agradar quem de novo estava entre os seus.

2.
Prudenciana só não contou naquele momento como tinha sido a vida do irmão de dona rita depois do reencontro, uma história que natanael sabia de ouvir trechos, suspiros da mãe, e que era tão edificante quanto a outra, mas num sentido inverso, mostrando como o mundo nunca deixou de encantar os homens que dele provaram, pois euzébio aceitara as roupas, a comida, o quarto e a família não em definitivo, mas como quarto de hotel que serve para um momento de descanso, ali a pessoa apenas acumula força, e logo chega a hora de sair para uma estadia no mundo, que sempre muda, e por isso atrai e repugna, era o que dona rita descobriria semanas depois, quando o irmão tinha as feridas curadas, o cabelo e a barba aparados por um dos sobrinhos, que sabia manejar os instrumentos de babeiro, sim, euzébio já engordara, as roupas herdadas agora não ficavam largas, ele aprendera novamente a conversar, era só isso que fazia, comer conversar dormir, mesmo na volta do dia, pois a irmã o proibira de trabalhar, já tinha passado muita privação fora de casa, conquistara o direito de descansar nesses últimos anos, e assim ela planejara o resto de vida dele, como dias de bonança, mas logo euzébio fugiu, ninguém o viu sair de madrugada, mas acharam que ele voltaria logo, não tendo levado nem mesmo uma peça de roupa, deve ter ido beber na cidade, embora não fosse de bebida, e passaram-se os dias sem notícias, mas quando completou a primeira semana, rita já não se alimentava, havia perdido novamente o irmão, seu filho foi para a cidade à procura do parente, inquirindo nos bares até ser informado que na zona havia um velho que ajudava as mulheres, e ao chegar lá, ainda sob o sol quente da tarde, viu o tio rachando lenha no fundo de um quintal, estava sujo, com a roupa amarrotada, mas trabalhava com alegria, chegou perto e chamou o tio, que nem olhara para ele: o que o senhor está fazendo aqui, ele perguntou e o outro ergueu os olhos para dizer, calmamente: rachando lenha, o sobrinho fez um gesto de desânimo: isto estou vendo, falo o que o senhor faz nessa casa, euzébio cortou mais um pedaço de madeira, deixando o machado fincado no tronco que servia de apoio: elas precisavam de um homem para essas coisas, ele disse, ali sua vida tinha algum sentido, gostava de ficar entre mulheres assim, embora já não tentasse nada com elas, e voltou a rachar lenha, num sinal de que acabara a conversa, não voltaria, desse uma desculpa qualquer lá no sítio, e o sobrinho teve que contar tudo para a mãe que, no fim de semana seguinte, mandou atrelar a charrete de pneu de borracha, pegou sua sombrinha e saiu para a cidade, enfim conheceria o que tanto atrai os homens naquele lamaçal, e entrou na única rua da zona, com suas casinhas coloridas dos dois lados, como se tivesse indo para a missa, desceu na casa onde o irmão estaria morando, e uma mulher, na estrada, lhe cumprimentou: bom dia, minha senhora, recebendo uma resposta mal-criada: lave esta boca antes de falar comigo, ela disse, e a outra teve vontade de chorar, nunca se sentira tão suja a ponto de não poder cumprimentar uma pessoa, e dona rita entrou no salão, que estava vazio, indo direto para o fundo, e encontrou euzébio esfregando lençóis no tanque, ele apenas olhou o rosto tenso da irmã, deixou a buchinha e o sabão numa mesa, rita percebeu que as mulheres da casa tinham se levantado para assistir à cena das janelas de seus quartos, mas não houve cena nenhuma, euzébio resmungou: eu já vou, embora rita não o tivesse chamado para nada, enxugou as mãos brancas e macias na calça suja, foi quando ela lhe passou uma trouxa de roupa, dizendo: troque-se, e ele foi para a casinha que ficava ali perto, e voltou com a roupa limpa, a antiga deve ter sido jogada na privada, que era o melhor lugar para aquela imundice, os dois saíram em silêncio rumo à porta de entrada onde aquela mulher permanecera, olhando a rua vazia, ela tinha entendido tudo desde a chegada da charrete, gostaria de dizer adeus ao velho, que cuidara com carinho das coisas dela, e nunca quis nada, nem dinheiro nem seu corpo, mas ficou intimidada pela presença da velha toda vestida de preto, como se viesse de um velório, e os dois subiram na charrete, deram o comando ao cavalo e voltaram mudos até a entrada da propriedade, então rita disse que quando ele sentisse suas urgências que fosse para a cidade e voltasse para casa no dia seguinte, e assim foi até a sua morte, que aconteceu uns anos depois, ele passava um ou dois dias com as putas, o suficiente para limpar o quarto delas, lavar as roupas, deixar bastante lenha para o fogão, e voltava triste para o sítio, levando fotos das mulheres a quem servia.

3.
Novamente no armazém, onde ficava alheado, longe do que acontecia ao seu redor, tentando não ver as pessoas, e eram os empregados que respondiam às perguntas dos clientes que procuravam natanael, mas o pai preferia assim, é melhor que fique por perto nestes momentos de crise, e logo se faz homem e encontra seu lugar no mundo, e natanael repetia esta palavra até que perdesse o sentido: mundomundomundomundo, as pessoas pronunciavam isso constantemente, despertando a irritação de quem passava seus dias quase sem ter nada para fazer no armazém, sentado no escritório, ouvindo rádio, ou em sacarias, onde acompanhava o movimento dos entregadores, dos atendentes e dos saqueiros, estes só com calções de malha, o corpo luzidio de suor, o chapéu em forma de meia bola na cabeça, zanzando de lado para o outro com a sacaria dos produtos comercializados pelo pai, enquanto o pai habitava em silêncio o armazém, sem expansões, fazendo contas, avaliando amostras dos cereais, determinando preços, o comércio melhorava e eles tinham um carro novo, jerônimo movimentava muito dinheiro agora, negociando com fazendeiros, e tinha dois caminhões que não paravam no pátio, buscando ou levando cargas, e natanael podia ficar distante de tudo porque seu sustento estava garantido, e o pai queria que ele aproveitasse, teria muito tempo para trabalhar, o importante era não o deixar em casa: casa é lugar de mulher, ele dizia, aprovava a vida reclusa de prudenciana e paulinha, mas queria o filho próximo das pessoas, mesmo sem fazer nada, ele tinha trabalhado tanto esses anos todos para dar algum conforto aos filhos, e não havia problema em natanael passar as tardes, agora estudava pela manhã, longe da rotina do armazém, logo ele sentiria necessidade de se ocupar: e é melhor um filho por perto do que distante, ele dizia para si próprio, mas para prudenciana o elogiava: está sendo muito útil aos negócios, pegando gosto pelo varejo, tem o dom, ele dizia, deixando a mulher despreocupada para cuidar de seus jardins, das plantas e da rotina doméstica que mantinha o mundo em ordem, era uma forma de protegê-la e também de proteger o filho, que depois de semanas de tristeza estava finalmente procurando alguma atividade, deixava o armazém para ir conversar com adonias, na casa ao lado, e mesmo quando o motorista não estava deitado na rede sob alguma árvore ele passava algum tempo lá, e isso foi intrigando jerônimo, no que se ocupava o filho na casa do vizinho, e o pai passou a espiá-lo, com discrição, estacionando o caminhão estrategicamente, subia na carroceria com o propósito de arrumar a lona, mas querendo enxergar pela janela o que acontecia ali ao lado, e em umas das vezes viu o filho na cozinha, lavando louça, enquanto madalena permanecia sentada na mesa, pernas cruzadas, falando coisas que faziam o filho rir, pensou que pudesse ser alguma bandalheira, mas viu adonias na rede da varanda, dormindo, não podia ter acontecido nada, e quando o filho voltou ao armazém o pai teve a impressão de que ele estava alegre, ou aliviado, pois se pôs a ordenar a papelada do escritório, e um rapaz apaixonado não faria isso, com certeza estava se sentindo útil ao ajudar os vizinhos, e jerônimo, mesmo não acreditando que amizade pudesse se manifestar daquela forma, se esforçou para não ver o que acontecia, o filho fazendo as vezes do marido, talvez num outro sentido também, pois adonias não era mais homem para madalena havia anos, muitos rapazes andavam freqüentando aquela casa em horas desertas, mas à noite natanael ficava em casa, o que também não significava nada, e o meio da tarde, adonias bebera a manhã inteira, era mais deserto e insuspeito do que a madrugada, sem falar que neste horário as filhas estavam na escola, e eles podiam aproveitar as sombras da casa, enquanto ali no armazém, a poucos metros, o dia era calorento, os saqueiros bebiam pinga quente e transpiravam na faina de transportar sacos pesados, o barracão sem janelas se tornava uma estufa, jerônimo transpirava o dia inteiro, e ele nem pegava no pesado, apenas comandava, os clientes se abanavam ao entrar no prédio, neste inferno da correria, onde dezenas de pessoas, entre funcionários e clientes, se movimentavam para que a engrenagem não parasse, e era quase uma afronta natanael voltar depois de suas escapadelas, com roupas limpas e cabelos bem-penteados, como se tivesse acabado de deixar a cama.

4.
Era bem cedo agora quando natanael saía para a escola, com o uniforme obrigatório a ricos e pobres na instituição pública, pois não havia colégios particulares na cidade, o que igualava todos num padrão de vestimenta, camisa branca com bolso, manga curta no verão, manga comprida no inverno, calça de tergal azul marinho, com bolso na frente, sapato preto com cadarço, que deveria estar sempre engraxado, e natanael fazia questão disso, como se os sapatos limpos numa cidade empoeirada, com a maioria das ruas sem asfalto, fosse uma afronta, uma prova de que o homem buscava sempre a cidade mesmo quando o sertão se impunha com toda a agressividade, e isso era uma crença para natanael, o homem é um ser urbano, quer se afastar da natureza, e ele caprichava no penteado, depois de um banho matinal, censurado pelo pai, tanta água assim estraga a pele, e ele contra-argumentava: para espantar o sono e prestar mais atenção nas matérias, cada vez mais difíceis, e assim encerrava o assunto, pois tudo que os pais queriam era que ele se tornasse bom aluno, tirasse boas notas e em breve fosse estudar fora, numa universidade: não tivemos estudos, quando você se formar nós vamos nos formar também, mas não perca tempo com coisas que não servem para nada, aprenda apenas o que for usar, apoiamos você mesmo sabendo que quando você for um homem formado vai negar seus pais, vai negar o mundo em que se criou, com vergonha dele, mas é assim que as coisas acontecem, nós já nos conformamos, prudenciana dizia, arrumando a gola da camisa do filho, acertando a fivela da cinta pelos botões da camisa, orgulhando-se de ver natanael bem vestido, saindo para a escola, onde aprenderia coisas necessárias, que ela não sabia direito quais eram, e natanael deixava a casa e o quintal pela rua de baixo, dando uma volta para ir à escola: não quero passar na frente da casa dos pietro, ele dizia, e a mãe concordando, não eram mesmo companhia para ele, mas o filho não devia nada a ninguém, não precisa andar como um fugido, ele nem ouvia tais argumentos, descia a rua e, quando já não era visto, entrava num terreno abandonado, por uma trilha que cortava caminho, e se escondia num matinho que fazia fundos com a casa de madalena, aguardando a saída de adonias, as filhas ainda dormiam e então natanael pulava o muro, entrando na casa pela janela do quarto de visita, que madalena deixava aberta, e logo a fechava, recebendo o jovem amante já nua, e tratando de tirar a roupa dele com cuidado, para não amarrotar, e ali gastavam as primeiras horas, numa gemeção contida, ele se fartando num corpo apenas entrevisto no escuro do quarto, em seios molengas que tinham amamentado duas meninas e os muitos amantes, pois esta era a fama, embora natanael não quisesse acreditar, e sempre perguntava se madalena o amava, ela dizia que sim, era seu único amor, um dia, quando ele tivesse um emprego, largaria do marido e viveriam só os dois, e natanael, nestes momentos, queria deixar a escola e arrumar logo um emprego, e falava isso para a amada, ela dizia que devia se formar, nem que ela precisasse ajudar, então madalena mudava de planos, dizia que abandonaria o marido e só iriam os dois, as filhas ficariam com uma irmã dela, uma evangélica que amava as sobrinhas, e os dois partiriam para uma cidade grande quando ele terminasse a escola, e ela trabalharia nem que fosse como empregada para sustentar a casa, ele faria faculdade, queria que fosse advogado, e quando estivesse formado poderia se casar com uma moça também formada, mas eles continuariam sendo amantes, ela já velhinha ao lado de um homem de terno, e seriam muitos felizes, ela ajudaria a cuidar dos filhos dele, era tudo que queria, servi-lo, e depois morrer em paz, e natanael sentia um aperto no coração por toda a maldade que ele faria com madalena, e implorava: não fale assim, nós nos casaremos, e ela protestava: não, você merece coisa melhor, eu só sirvo para estas safadezas e também para cuidar de você, vou ser sua doméstica, sem ciúme da mulher bonita com quem você vai se casar, desde que você sempre me visite, e ele prometia nunca nunca fazer nada daquilo, sempre visitaria aquela casa, e indicava o corpo de madalena, com sua porta aberta, que recebia a visita mais uma vez e mais uma, até que os dois, exaustos, ouviam o barulho das filhas tomando café na cozinha, eles então se vestiam, ela abria a janela, que dava para o fundo do quintal, protegido por muros laterais, pelo caminhão estacionado e pelas árvores, e partia levando a bolsa com cadernos e livros escolares para buscar os bares mais distantes, onde ficava ouvindo conversas, vendo jogos de sinuca, sempre na parte mais escura, para não ser descoberto por nenhum dos empregados do pai, que entregavam compras, ainda bem que o movimento forte de entrega era no período da tarde, quando ele estaria de volta, e podia assim esperar a hora do almoço na companhia dos bêbados e não era raro ele cruzar com adonias num bar, bebendo num balcão, indiferente ao jogo e aos demais freqüentadores, o marido de madalena apenas olhava o copo de bebida como se fosse uma bola de cristal.

5.
A paixão faz com que o mundo ao redor se apague, era isso que pensava natanael quando percebeu o que estava acontecendo, o pai irado falando com ele, embora tentasse ignorar o que ele dizia, pois nada daquilo tinha sentido, natanael fizera de conta que ninguém o via vagando de uniforme pela cidade, quando devia estar nos bancos escolares, estudando para logo se formar e poder fugir para uma cidade maior, onde faria faculdade sustentado por madalena, e também se iludia pensando que na escola ninguém sentia sua falta, ninguém o via entrar pela manhã no quintal de adonias, em busca todo mundo sabia exatamente do quê, mais outros rapazes faziam o mesmo caminho, e esta anulação do mundo não era ingenuidade de um jovem que, pela primeira vez, se ligara a um corpo, atormentado pela necessidade de encontrar alguém que correspondesse a todos os seus desejos, cultivados solitariamente até agora, não, a anulação do mundo era a regra dos apaixonados, que só viam a pessoa amada, só viam o proveito das horas, não compreendendo a existência do resto do mundo, que se tornava supérfluo, distante, inofensivo, e era este mesmo mundo anulado que caía sobre o apaixonado na primeira oportunidade, tirando-o de seu alheamento, e a forma que ele encontrou de atropelar natanael foi por meio da coordenadora do colégio, na reunião bimestral com os pais, quando eram chamados apenas os responsáveis pelos alunos problemáticos, pela primeira vez jerônimo ocupava este lugar, uma cadeira dura na frente de uma mesa, onde uma mulher bem-vestida e de óculos falava que seu filho ia reprovar de ano, não comparecia às aulas, ele tentando dizer que o menino não faltava, saía sempre antes do horário para não se atrasar, gostava da companhia dos livros, e a coordenadora então disse: ele gosta mesmo é de certas companhias, e o pai então intuiu tudo, faltando apenas descobrir os detalhes, e tratou de interromper a conversa: o que preciso fazer para ele melhorar, perguntou, e a coordenadora explicou que ele ficaria para recuperação, mas se estudasse as matérias poderia passar, e era isso que ele estava dizendo agora para natanael: você vai decorar cada palavra destes livros, não vai sair de casa enquanto não for aprovado, não vou deixar você repetir a nossa história, você vai se formar por bem ou por mal, e natanael, pensando em madalena (o pai descobrira tudo, e ele confirmara as suspeitas com o silêncio), não tinha força para inventar mentiras, para negar que procurava a vizinha, e jerônimo contava a uns clientes mais próximos as tristezas que o filho estava dando à mãe, e estes disseram saber de tudo, viam sempre o menino nos bares, mas não tinham revelado nada porque esse era um assunto de família, e o pai falava isso e outras coisas, enquanto natanael buscava as últimas imagens de madalena nua, o corpo por onde tinham passado muitos homens, mas que agora era seu, nem que fosse como memória, e esta imagem servia para anular o sermão do pai, que estava no fim: não vou falar nada para sua mãe, ela não merece este sofrimento, saber que o filho mata aula para constranger um vizinho, mas você só sairá de casa para ir à escola, ele disse, e natanael fechou os olhos e viu o grelo aconchegante de madalena, e o pai tomou este gesto como um pedido de trégua, e talvez fosse, e assim se acabaram seus dias devassos, e nem à escola ele ia sozinho, o pai o levava de carro e o pegava na saída, e o resto do tempo ele passava entre cadernos e livros, mais sonhando do que estudando, satisfazendo-se com as mãos, pois se acostumara a uma vida sexual intensa, não voltaria jamais à abstinência, e era ainda madalena que o embalava nestes momentos, cumpriam assim a promessa, ficavam juntos mesmo quando já não estavam juntos, em uns poucos anos abandonariam a cidade, era só ele se formar e foi isso que fez com que ele começasse a levar a sério o estudo, passando nas provas de recuperação, e enfim se formando, quando o pai voltara a ser amigo, tinha perdoado o filho, pai sempre perdoa, ele o ouvirá dizer quando tocarem neste assunto, e quando tudo voltou ao normal, numa noite em que a cidade era só silêncio, paulinha já tinha ido dormir, o pai e ele viam tevê, a mãe arrumava algo no quarto, ouviram o barulho de alguém abrindo a porta dos fundos, o pai foi correndo para lá, natanael o seguiu mais por medo de ficar sozinho do que por coragem, e quando os dois chegaram à cozinha, viram madalena nua no chão, com a cabeça apoiada nas mãos, chorando, não conseguia falar nada, e natanael viu o corpo de madalena sob a luz, suas pernas eram flácidas, o ventre tinha várias dobras de gordura, os peitos caídos lembravam as índias que ele conhecia dos documentários da tevê, o que antes produzia febre agora causava constrangimento, mas eles foram salvos por prudenciana, que chegou em seguida, vendo a vizinha nua: o que aconteceu, madalena, ela perguntou, indicando com os olhos que os homens deviam voltar para a sala: o adonias me pegou com o leonel, ele tinha dito que faria um frete longo, mas ficou esperando, e entrou no quintal com o caminhão e derrubou a varanda, e tive que sair correndo senão ele me matava, ela contava isso com naturalidade, e natanael, a caminho da sala, ouvia tudo, jerônimo tentava distraí-lo falando que a mãe resolveria o problema, o problema de madalena, natanael pensava, mas quem vai resolver o meu, e prudenciana agora queria saber das filhas, madalena tinha mandado para a casa da irmã: o seu marido está bêbado, perguntou prudenciana, e a bandida disse: não, e isso é o que me assusta, se estivesse bêbado eu não teria medo, e prudenciana tirou a toalha da mesa e pediu para ela se cobrir, e foi assim, enrolada num tecido xadrez, com manchas da sopa de feijão que tinham tomado naquela noite, que ela passou pela sala, sem olhar para natanael, para se deitar no quarto de visita, prudenciana dizendo que ficasse ali até o marido se acalmar, e foram todos dormir com o barulho do caminhão rondando a quadra durante algumas horas, e era madrugada quando natanael, sem ter dormido, ouviu a mãe abrir a porta e se despedir de madalena, mas ele já havia se despedido dela algumas horas antes.

PRÓXIMO CAPÍTULO

O mundo doméstico da família se dissolve, dando lugar a uma proximidade impensável entre a casa e a rua, mas, mesmo neste momento de crise, prudenciana continua a sua cruzada moral e destrói o inimigo mais próximo. natanael acompanha tudo de longe.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho