Novela-Folhetim: A história do fim do mundo (2)

Capítulo 2 do folhetim "A história do fim do mundo", de Miguel Sanches Neto
lustração: Marco Jacobsen
01/10/2008

Abismo sideral

1.
Há mais de quatro anos já morava na outra casa, o medo de uma queda no vazio era coisa antiga, fantasma das noites de insônia, menos agressivas agora, pois a casa tinha luz elétrica, as paredes eram pintadas de um branco sujo e os sons externos não entravam como na casa de madeira, e Natanael também tinha amadurecido pelo contato com os amigos da escola e da rua, pelos programas de tevê, o pai comprara um televisor usado, preto-e-branco, e era esta agora a janela de Jerônimo, por onde ele podia ver o mundo não precisando mais sair à noite por lugares que ninguém sabia imaginar, e justamente neste momento de relativa paz Natanael descobriu, num livro da escola, que a terra era redonda, circulava em torno do sol, saindo definitivamente da Idade Média em que se criara por conta de uma família de colonos que nada aprendera nos últimos séculos e que, por isso, mantinha em estado de ignorância os seus, e Natanael até teve uma vertigem quando viu a foto do planeta boiando na vastidão do sistema solar, o formato esférico explicava o encontro da terra com o céu na linha do horizonte, algo que ficaria absolutamente claro quando, alguns anos depois, já superado o afastamento do mundo, veria na praia uma lua cheia, assustadora, fazendo com que ele voltasse a ser o menino medroso de outrora, isso tudo não passando, no entanto, de acontecimentos futuros, que não ajudam em nada a vencer o terror daquela descoberta, e ele gostaria de gritar eureca, mas seria vergonhoso admitir ali, na quinta série primária, que ele não sabia uma coisa tão universal, que seu temor infantil tinha sido mantido até aquele momento, então era melhor se calar, levar esta verdade tardia como um furo na meia que escondemos de todos para que não descubram nossa pobreza, e em casa ele contou a descoberta ao pai, que permaneceu em silêncio, e também tentou explicar a coisa com detalhes para a mãe, mas ela só resmungou: para isso que colocamos filhos na escola, para aprenderem bobagens sem serventia alguma, e a televisão ajudaria Natanael, era o período da chega dos primeiros astronautas à lua, e ele acompanhou tudo, com medo não mais do vazio horizontal que o ameaçava, mas deste outro vazio, sempre acima de nossas cabeças, que era mais assustador ainda, ele agora dominava a lei da gravidade, e tinha outras noções que garantiam um mínimo de segurança sob o precipício que nos cercava, mesmo assim lhe vinha uma nostalgia do tempo de ignorância, pois sofria agora em silêncio com a chegada do homem à lua, com imagens transmitidas na tevê, gente falando, Natanael então procurou de novo a mãe, que continuava a parte terra da família, cuidando de um jardim cortado por inúmeras calçadinhas em forma de desenhos geométricos, tudo dando num canteiro redondo, em cujo centro seria plantado um pinheiro pontudo, enfeitado na época do Natal com bolinhas coloridas, uma coisa que ele nunca tinha visto antes, também influência da televisão, e, além do jardim, a mãe cultivava a horta e obrigava a água do tanque a escorrer por regos até as raízes das frutíferas do quintal, o que fazia com que goiabas, limões, laranjas e bananas saíssem imensas, Natanael até vendia as melhores na escola, conseguindo dinheiro para comprar raspinha de groselha pipoca e coxinha, tudo graças ao apego da mãe ao quintal, e talvez por esse apego, por só ter olhos para o chão que tanto lhes dava e pedia em troca tão pouco, um adubo de bosta de vaca que eles catavam nas chácaras vizinhas, água, cinza do fogão a lenha, cascas de ovos e outros restos, deixados curtir num buraco feito especialmente para isso, por esta dedicação cega ao quintal Paula crescera sozinha e ficava em silêncio na frente da tevê, os buracos na terra tinham perdido a função neste outro mundo em que o homem ia à lua e as crianças tinham diversões numa tela cheia de chuviscos, Natanael comentou com a mãe que tinha medo do espaço, e era como se o planeta estivesse perdido, vagando sem rumo na escuridão, e falou da chegada do homem à lua: tudo ficção, igual a essas novelas, eles fingem, são atores, a mãe disse, não acredite nisso que vem na tevê, é só para engambelar a gente, não vale mais do que as histórias de assombração dos antigos, eu ouvi falar tanto nessas almas de outro mundo mas ver mesmo nunca vi, meu filho, ela disse, demonstrando irritação e carinho ao negar o que a tevê informava, e Natanael ia falar do livro de Ciências, das fotos, do sistema solar, mas a mãe se mantinha firme, não queria deixar este outro quintal, este outro chão, em que ela havia sido criada e onde não havia espaço para ideias novas, e ela então pediu para que ele a ajudasse a enfiar uns pregos enferrujados no tronco da jabuticabeira: já faz anos que foi plantada e ainda não produziu, é preciso judiar um pouco da árvore para ela dar fruta, é como colocar uma coroa de espinhos, tal como nas escrituras, ao redor do tronco, e Natanael se convenceu de que suas inquietações siderais nunca chegariam ao quintal de sua mãe.

2.
Deste pânico de ser tragado pelo espaço, algo mais improvável do que o súbito precipício, décadas depois ele leria que os marinheiros antigos achavam que o final do mundo ficava no mar, além das regiões conhecidas, mais uma prova de que Natanael vivera sim na Idade Média, tinha sido contemporâneo daqueles aventureiros que apesar do medo se arriscavam em ignotas águas, deste novo temor, o da queda no espaço sideral, viera o hábito de ele dormir de bruços, agarrado ao colchão como quem se agarra à terra que, em sua cidade natal era grudenta nos dias de chuva, quando a lama formava uma massa pegajosa onde as pessoas atolavam os pés, plantando-se no terreno em idade de gênese, do qual era difícil sair, e mesmo quando se saía ficava o sapato preso, como raízes que não puderam ser sacadas junto com os pés numa demonstração de que tudo criava vínculos muito rapidamente, era assim que Natanael se via, como uma planta que se apega ao solo na tentativa de manter tudo girando em torno de si, tal como a casa com sua rotina que nunca se alterava, eles ainda passavam meio indiferentes às inovações que chegavam pela televisão, a mãe fazia quase tudo em casa, do pão às roupas que eles vestiam, era assim desde os seus antepassados, uma auto-suficiência em que, antigamente, não cabia nem o estudo, o que se devia aprender vinha com a entrada nesta rotina, no ciclo eterno dos plantios e das colheitas, das chuvas e das secas, participando desta vida imemorial as gerações mais novas repetiam as anteriores e faziam do passado um futuro, reproduzindo os mesmos gestos, eis a lei até agora, mas havia coisas novas, o estudo dos filhos e os programas de tevê e também os livros, pois Natanael vinha da escola com um livro qualquer na bolsa e passava a tarde lendo, mas também se apegava às plantas, que insistiam em entender tudo como reprise, uma florada pode ser maior ou menor do que a outra, mas será sempre uma florada com as mesmas regras, era isso que as plantas ensinavam, uma lição idêntica à dos pássaros que, por mais que morressem, nunca morriam, eram sempre tão iguais, em suas cores e seus cantos, o mundo se paralisava na natureza, o tempo não contando fora do ciclo, só na cidade a história valia algo, mas o quintal de Prudenciana estava em contato com o sem-tempo, Natanael podia ficar horas sob as árvores, podia reconhecer na florada do limoeiro deste ano outras floradas, tudo estático, por isso dormia de bruços, lançava as raízes dos dedos no colchão de espuma que o pai comprara, e que era encapado com tecidos rústicos de algodão, que ainda traziam resíduos da planta, dormir desta maneira era incômodo, ele amanhecia com a coluna doendo, com dor no peito, com uma mancha de saliva no travesseiro, que tinha que ser mais baixo do que os usados pelos demais, mas optar esta posição mantinha-o apegado à terra, evitava que fosse expelido pela rotação, outro conceito que ele tinha aprendido na escola, ele que se via como carrapato no lombo do planeta, decidido a nunca deixar seu posto.

3.
Vinha sendo uma infância triste e solitária, e depois ele se perguntaria: o que não era tristeza e solidão na aventura humana, resignado já ao sofrimento de estar vivo, esta tarefa de existir 24 horas por dia, suspensa apenas depois de uma bebedeira mais forte, quando o sistema de neurônios deixava de funcionar, sofrendo uma pane momentânea, descanso mais do que merecido para uma mente que não deixava nunca de trabalhar, embora não se ocupasse de coisas sérias, de grandes projetos, mas deste moer e remoer os fatos vividos, desta memória como roda d’água que não pára nunca, sempre atingida pela correnteza de um rio infindável, sendo a infância, ele concluiria nesta época de alguma experiência, a mais sofrida de todas as idades, por isso ficava como uma região enorme em nossa recordação, maior que qualquer período posterior, a infância ocupava quase todo o espaço na história de uma pessoa, jamais terminaríamos de reconhecer todas as dobras desta temporalidade e quanto mais desmemoriados ficássemos para os fatos recentes mais se iluminaria cada cantinho deste tempo imenso que são os anos de descoberta, quando tudo se grava de forma definitiva em nós, manchando o que somos para sempre, triste graças à sua natureza breve, período mais solitário da existência porque só o eu conta, por mais que a pessoa esteja rodeada de gente e de risos, o que no caso de Natanael nem acontecia, tinha apenas Paula como companhia, a mãe continuava insistindo que filho dela não era para ficar pela rua, Paulinha passava os dias na frente da televisão, uns poucos anos de diferença tinham afastado os dois, pois Natanael, que também via tevê, preferia, e seria assim ao longo dos anos vindouros, a experiência, mesmo que fosse a experiência de fechar os olhos e imaginar-se em tantas situações fictícias, recusando o espetáculo da vida mentida na tevê, que bastava para a irmã, com quem ele conversava pouco, afastados por esta eternidade de quatro anos e um televisor, restando a Natanael, além das vozes fantasmagóricas dos personagens, geralmente dubladas, a presença falante de um papagaio que resumia toda a existência de seus pais, pois nele os dois exerciam uma pedagogia que fora interrompida nos filhos, já que estes não se deixavam moldar pela longa tradição da reprise, as crianças não aceitavam essa voz de ventríloquo, e foi melhor assim, Jerônimo vai concluir no fim de tudo, quando via o filho vivendo outra história, tão distante da deles, e tinha horas o pai chegava a imaginar que não houvera nunca um tempo de convivência, de fato, seus filhos foram se distanciando do eixo que forjara gerações, tendo como base a repetição, criando vácuos na história de um casal com filhos fora da engrenagem de uma tradição, Natanael logo deixaria de usar as roupas feitas pela mãe segundo moldes que herdara dos antepassados, preferindo a roupa comprada pronta, mesmo que fosse de material ordinário, e Paula copiaria, pois aprenderia a costurar com a mãe, os modelos que acompanhava pela tevê, tudo se distanciando do centro, do mecanismo seguro de reprodução em que os pais se comunicavam com hábitos imemoriais, sem continuidade na prole: meus filhos não sabem dos meus, reclamava Prudenciana, que tentava falar com eles sobre pessoas mortas, histórias que ela mais ouvira do que vivera, não encontrando quem lhe desse atenção, tendo que se calar e buscar alguma alegria nas plantas, que repetiam todo ano as mesmas folhas e flores, e ela não sabia se o silêncio em que ela e Jerônimo viviam era sinal de que estavam mortos os antigos, que já não falavam pela boca nem pelos gestos desses descendentes, notara que até o timbre de voz dos filhos nada tinha a ver com o deles, mesmo o sotaque era outro, ela nem falava das palavras, tão diferentes, essas sim haviam se distanciado mais do que qualquer coisa, enquanto ela usava os termos de sempre, destreza cumbuca fruita, os filhos falavam em rotação sistema solar quedes, e Prudenciana se perguntava: como duas gerações tão próximas tinham se afastado assim, era impossível entender não só as palavras, os hábitos eram outros, os gestos totalmente diferentes, havia a explosão de um mundo que se mantivera unificado pela força da reprodução, mas Prudenciana olhava a maneira do filho andar, em tudo tão diferente, elas, as crianças, já não olham para as coisas que não passam, só se fiam nisso que muda a cada dia, perderam o amor pelo sempre, tão cegos ficaram por causa do agora, ela reclamava para si mesmo, sem palavras, apenas no interior de sua mente, enquanto cortava os talos que tinham dado rosas, nos canteiros eternos de seu jardim, para que novos botões repetissem a novidade antiga e insuperável das flores vermelhas rosas e amarelas, assim havia de ser o mundo, tudo retornando no tempo, igual a ela, que tinha ficado mais presa aos seus anos de menina de sítio do que quando fora moça, não encontrando continuidade entre a sua infância e a dos filhos: o que pensariam minha mãe e minha avó desta gente que gerei, ela se perguntava, concluindo, depois de um suspiro: ainda bem que não viveram para ver, é sempre melhor a ignorância dos acontecimentos que nos negam, essa a sua reclamação constante, uma reclamação silenciosa, que ela fazia para si mesma, isolando-se cada vez mais no quintal, enquanto o marido que, depois de deixar o caminhão, e mesmo ficando parte da noite na frente da tevê, foi também fazendo a viagem de volta ao sítio em que se criara: nunca deixamos a terra que nos viu crescer, ele pensava, este retorno não se dando pela estrada, antes se reproduzia nos hábitos, que desfazem o afastamento com o que fomos, ele pensava isso com outras palavras, enquanto a mãe arranjava responsáveis pelos desvios da família, tudo culpa da escola e da tevê, foram elas que tiraram meus filhos de mim, e também os livros, ela se lembrava, uma pessoa não devia deixar que um mundo estrangeiro tivesse tanto poder, é o que sempre digo, escola, tevê e livros estragam os filhos, roubam as crianças dos seus pais, e Dona Zélia, vizinha antiga, a quem ela reclamava, e que tinha filhos mais velhos do que Prudenciana, já perdidos por outros hábitos, gostava de complementar: e tem também o cinema, quando seus filhos começarem com a mania do cinema, primeiro a mania do matinê, depois os filmes de gente grande, aí sim não ficam mais em casa, mesmo que estejam em casa, começam a viver longe, em terras que não sabemos onde, sonhando com coisas que nem podemos imaginar, e daí um dia eles se vão de vez, porque, aos pouquinhos, a amiga sabe, eles já estão indo desde que entraram na escola, alguns antes, desde que a televisão entrou em casa, e Natanael ouvia essas conversas quando as duas se reuniam, e imaginava como seria o cinema, até perguntou ao pai, que respondeu que era como viajar de carro, as coisas correndo diante dos olhos da gente, não é que nem a tevê que a gente vê que tudo parece mentira, no cinema a gente entra no acontecido, o senhor já viu muitos filmes, quis saber Natanael, mas o pai não mais desejava falar sobre isso, ele lidava com a gaiola do papagaio que havia alguns anos estava com eles, criar o papagaio era uma tentativa de estabilidade, o pai ensinara o louro a assoviar, a cantar as músicas bobas do tempo dele, e o papagaio repetia o sotaque de Jerônimo, principalmente quando reproduzia, como um filho bem-ensinado, mas meio bobo, que não sabe articular as partes, as palavras e as frases simples que ordenavam aquele mundo, e mesmo quando não havia ninguém em casa o louro soava mecanicamente as palavras do pai, lutando para manter vivo o que já pertencia a uma outra idade.

lustração: Marco Jacobsen

4. Um mesmo espaço comporta muitas dimensões, tudo dependendo da maneira como ele é freqüentado, e estas dimensões permitem tantas variações, principalmente na infância, quando as linhas divisórias entre realidade e imaginação não existem, quanto nossas possibilidades inventivas, experiências pelas quais o menino estava passando sem a menor consciência delas, primeiro vivemos o que nos coube, de maneira cega e um tanto insana, para só depois, quando sabemos o nome da cada engrenagem, percebermos o que de fato nos aconteceu, assim se deu com Natanael, que habitava, naqueles anos matinais, um lugar localizado entre o quintal e a tevê, e esta não era uma latitude de conflito, concluiria ele depois de quase tudo que está destinado a uma pessoa ter passado por seu corpo, faltando apenas os conhecimentos mais extremos, que ele quer retardar o máximo, mas as suas primeiras explorações, conquanto fictícias, e talvez por isso mesmo, foram definitivas para formar o homem que ele veio a ser, por isso ele está constantemente de volta ao quintal dos fundos, no isolamento que sua mãe tanto buscava, e que servia para o menino como um espaço de fuga e não de proteção, como seria de esperar, pois ele estava fugindo desde o nascimento, tudo para ele virava distância, e aí está a razão de seu pânico diante do deslimite, por se sentir fadado a sofrer não na carne mas na fantasia o perigo de se comunicar com o infinito, e se isso lhe transmitia os piores terrores, ele não fugia desta vertigem, criança que teme a altura e a queda no vazio sem renunciar à emoção da montanha russa, terror e êxtase, antagonismo que nos move rumo aos nossos abismos, muito maiores do que os buracos celestes, que as nuvens escondem e que nossa visão, mesmo nesta era de potentes telescópios, não dão conta, enquanto o que trazemos nos neurônios, este mundo interior feito de microligações elétricas, é um infinito mais profundo do que qualquer outro que a ciência possa perscrutar, e nem precisamos de telescópios para espiar este escuro interior, basta nos fecharmos para o mundo que ele toma forma, ganha consistência, tal como Natanael fazia naqueles momentos quando o terror cósmico se apossara dele, paralisando-o no quintal materno, um quintal feito de plantas, de uma rocinha de mandioca, de hortaliças, feito de terra e água, indiferente à linha do horizonte, que zomba de nossas posses, e ao vento que traz notícias do distante e o pó das estrelas extintas, um quintal com suas árvores copadas, seus muros, seu rego de água do tanque, aquele quintal, que foi útero, devia afastar o menino do abismo, tendo no entanto sido uma força centrífuga, e este conhecimento é também uma cura, em muitas ocasiões só se livra do que se teme provando dele, e foi isso que Natanael fez naquele início de seu mundo, início de um mundo, início do mundo, quanta sutileza cabia nas palavras, ele pensaria, sentado numa poltrona de couro, às portas da velhice, sem nada em que pudesse ocupar-se, não fumava não bebia não colecionava selos, tinha apenas a sua memória como passatempo, foi em criança que ele mais freqüentou o espaço sideral, rompendo o invólucro doméstico, e tudo porque tinha recebido da tevê, a que ele assistia apenas nos finais de tarde e começo da noite, novas imagens, tão diferentes daquelas que Prudenciana fazia de tudo para que ele herdasse, imagens vindas das histórias conservadas no discurso paralisado da família, e naquele isolamento Natanael se perdia no espaço tão temido, numa nave imaginária, construída com o material mais pobre, próprio de um mundo que se desmantelava, permitindo outros arranjos que lhe serviam para deixar o planeta-quintal, um uso que Jerônimo jamais imaginaria para a montoeira de madeira velha que foi sendo acumulada num canto, depois das reformas do armazém que, ao contrário da casa, não era de material e tinha o dobro de altura e estava precisando de melhorias, que o pai mesmo foi fazendo, trocando primeiro o madeirame do telhado, muitas vigas tinham apodrecido, depois substituindo tábuas e palanques, comprometidos pelo tempo e pela umidade, e nesse ritmo partes do barracão iam sendo destelhadas, recebiam madeiras novas, Natanael olhava o pai naquelas alturas, temendo sua queda tanto no chão quanto no infinito, e se a lei da gravidade tivesse uma falha bem ali, ele imaginava ao ver o pai se movendo sobre ripas finas, pregando madeiras novas no vigamento que receberia as telhas de barro que estavam no chão, e que ele e a mãe lavavam, a telha era terra, ele pensava, a mãe é um ser do chão, mas as telhas devem voltar para o alto do telhado, a terra pode alar-se, e eis um verbo que ele aprendera recentemente num livro de poemas, a telha é a terra que se ergue, igual ao pai, e ali estava um elemento de dois mundos, a telha era chão e altura, colocando-se entre a mãe-ser-da-terra e o paiser-do-espaço, naquela tarefa de trocar as madeiras do telhado e de lavar telhas, ficando ele deste outro lado, talvez porque ele ainda não soubesse do que era capaz, mas não seria por muito tempo, numa manhã de domingo, quando os pais estavam na missa e Paula via um programa na tevê, vestindo uma camisa imensa do pai, aberta no peito, como se fosse um capa de superherói, ele enfrentou um a um os degraus da longa escada construída para alcançar o topo do barracão, Natanael não olhava o que ficava abaixo nem o que vinha acima, apenas o que estava à altura de seus olhos, a madeira rústica de mais um degrau, os pregos nas mata-juntas da parede, uma mancha na tábua, e num instante deixara de ser o menino-chão para experimentar-se no corpo aéreo do menino-céu, vencendo um medo imenso, e, lá do alto, sentado na viga da cumeeira, olhou a cidade apequenada diante de seu súbito distanciamento, vendo campos longínquos que ele apenas conhecia de ouvir falar, eram agora uma paisagem de seus domínios interiores, que ele carregaria consigo depois de descer, com cuidado, lance por lance, e de passar a manhã sob uma árvore frondosa nos fundos, um pé de manga, escuro de folhas e frutos, e quando o pai terminou a reforma do barracão havia uma outra árvore no quintal, a maior de todas, a mais frondosa e alta, uma pilha desordenada de madeiras, tábuas cheias de prego, caibros, tocos: servirão para lenha, falou a mãe, que queria dominar esta planta intrusa, que negava seu mundo vegetal, embora subproduto dele, uma lenha que usarei no forno de barro, no fogão de tijolos, na fogueira de São João, e foi enumerando as finalidades que daria à madeira a caminho da podridão, mas para o menino aquilo era uma matéria especial, aqueles caibros aquelas vigas aquelas ripas e tábuas tudo fazia parte do desejo terrestre de elevar-se, de conquistar o céu, distanciando-se do que os gerara, havia um impulso sideral naquela madeira, elas tinham servido de contato com o alto e guardavam uma energia que apenas Natanael reconhecia, sendo obrigação sua recuperá-la, e enquanto a mãe nutria planos pedestres para a madeira que o pai recusara como parte do armazém, Natanael começou a passar as tardes, quando não estava na escola, sobre aquele monte que tinha a altura da casa, e era ali que se fingia numa espaçonave, vagando por regiões que, abertas pelos programas de tevê, ele recém inaugurava, perdendo um pouco de seu medo ao pilotar a nave que só recebia comandos de criança e ia e voltava às galáxias mais distantes no intervalo entre o almoço e o café, devolvendo-o rapidamente sempre que a mãe o chamava para alguma tarefa, acender o fogo para torrar café levar o lixo à rua jogar água com a mangueira nas calçadas para que ela pudesse lavar, e, aos poucos, com o uso doméstico daquelas madeiras e com o seu rápido apodrecimento, a espaçonave foi se desfazendo em pó e cinza, até se reintegrar totalmente ao chão, mas Natanael já havia percorrido milhões de quilômetros-luz nela.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho