Novela-Folhetim: A história do fim do mundo (3)

Capítulo 3 do folhetim "A história do fim do mundo", de Miguel Sanches Neto
lustração: Marco Jacobsen
01/11/2008

Lições de partir

1.
Armazém e casa, ambos exigiam rotinas domésticas, ocupando os responsáveis com tantas tarefas diárias que deviam ser repetidas de novo e de novo, obrigando-os a renunciar a tudo que não fosse a manutenção do pequeno cosmos, e o armazém tinha realmente algo de casa, quando eles ali chegaram, depois de uma negociação rápida, os antigos donos estavam velhos demais, não tinham filhos na cidade e queriam um pouco de sossego para cuidar da própria vida, Natanael ficava imaginando se a mãe pudesse fazer o mesmo, vender a casa com móveis e filhos, exigindo uns anos de sossego para ela e o marido, tal como aquele outro casal tinha feito ao se livrar do armazém, deixando o estoque, móveis no escritório, velhos livros de contabilidade, folhinhas de anos passados, todas penduradas numa parede, parecia que estavam vendendo também aquele período longo de tempo, Jerônimo veria que este era um capital ruim, por conta da muita idade o estabelecimento teria que ser reformado, mas nenhum dos objetos deixados para trás como durante um incêndio era mais estranho do que um morador que dormia numa cama infantil no canto mais escuro do imenso prédio de madeira que tinha as paredes internas sem pintar, cobertas pela poeira de uma vida toda, e nem isso incomodava o ancião outrora agregado da família e agora recebendo uma pequena aposentadoria, o suficiente para as refeições nos bares e a roupa lavada numa das casas da vizinhança, cabendo-lhe passar o dia fora, retornava apenas quando o armazém ia fechar, talvez por isso Jerônimo nada ficara sabendo desse patrimônio adicional quando do acerto, mas como o armazém tinha sido comprado de porteira fechada, como se costumava dizer, o morador viera junto, claro que Jerônimo poderia ter pedido para que saísse, mas logo se afeiçoou a Olímpio, nome pelo qual ele não respondia, todos o conhecendo por Baixinho, referência não à sua estatura, mas ao tom de voz desse vivente invisível que ocupava o lado escuro do galpão, com suas poucas peças de roupa guardadas numa mala de papelão duro sob a cama de madeira encardida, que nem era vista durante o dia por ficar sob um plástico preto, só retirado quando não havia mais clientes, e era no fim do expediente que ele chegava como se fosse comprar algo, sentava-se em um dos sacos de mantimentos, retirando feijões para mascar, e ali permanecia até cerrarem-se as portas, ruminava e cuspia os caroços amassados com sua dentadura cega que não chegava a atorar os grãos, formando um pequeno círculo de feijões semitriturados em volta do local onde ele se sentava para observar o trabalho de Jerônimo ao fechar o caixa, organizar cada coisa do estoque e, por fim, abaixar as portas, deixando na escuridão do prédio aquele guardião que ali passaria a noite sem poder sair, pois não havia janelas, apenas as portas principais, e ele não ficara com a chave, correndo o risco de passar mal e não ser atendido, sem forças para gritar por socorro, sua voz quase inaudível era insuficiente mesmo para chamar uma pessoa a uns poucos metros de distância, Natanael pensava nesta possibilidade de, ao amanhecer, quando o pai abria o armazém, encontrá-lo morto na cama, mas isso não aconteceu e, durante os primeiros anos como proprietários daquele comércio, eles viam Baixinho, pela manhã, sair do ventre da baleia com sua roupa limpa e bem passada, como se tivesse deixando a casa rumo ao trabalho, e sem tardar ele descia a rua, procurando um bar perto do trevo, onde tomaria café e comeria pão com manteiga, não aceitando as ofertas de Prudenciana, por mais que ela insistisse, sob a alegação de que eles já faziam muito dando-lhe pouso, o dinheiro que recebia sendo mais do que o suficiente para tais despesas, de tal modo que quando Natanael ia para a escola no bagageiro da frente da bicicleta de carga do pai, cruzando o trevo com fama de ter roubado muitas vidas, podia ver Baixinho sentado num banco de plástico cor de abóbora, ao lado do balcão, com um copinho de café diante dele, e o menino sentia inveja desse solitário que podia gastar um longo tempo para beber café no copinho de pinga e ficar pelo comércio ouvindo as histórias mais recentes, depois comeria algo improvisado, participando da vida da cidade, eis a beleza de uma existência meio errante, a família de Baixinho era toda a cidade, ele não tinha lar, dispersando-se em tantos endereços, e talvez até contasse com os favores de alguma companhia num dos muitos bares de mulheres, e mesmo sendo o ponto de contato entre tantas pessoas, cada uma delas com suas alegrias e tragédias, tendo ouvido as histórias mais estranhas, Baixinho não comentava nada, chegava em silêncio no final da tarde, lavava-se precariamente numa torneira ao lado do armazém e, sentado em paz consigo e com o mundo, esperava a hora de o armazém fechar para fazer a mágica do desaparecimento, internando-se no barracão, ele que quase não ocupava lugar no mundo do qual se fizera testemunha muda, vivendo o que lhe cabia com um sentimento sincero de gratidão, e foi tal como viveu que Baixinho morreu, também de maneira discreta, numa manhã de sábado, depois de ter tomado café no Bar do Tito Baio, que ficava bem no meio desta última quadra da Avenida Vila Rica, sentando-se num banco para vencer a manhã, num horário em que o movimento era mínimo, as crianças já tinham comprado doces, pipocas e chicletes, quando seguiam a caminho da escola, seu Tito se retirara um instante para dentro de casa, que era colada ao bar, com uma porta dando para a parte interna do balcão, e quando ele voltou viu o corpo estendido no chão, já sabendo que Baixinho morrera sem nem mesmo um suspiro, parece até que se deitara, ordenando a seu corpo que parasse de respirar, pedindo um silêncio maior do que aquele em que vivia, finando-se sem incomodar ninguém, pois deixara pago o enterro na Funerária do Vinícius que, informado minutos depois, o recolheu no bar, preparou o corpo, velando-o no armazém de Jerônimo, um lugar público que não deveria ser usado para isso, uma vez que velórios aconteciam nas casas das famílias, mas de certa forma aquela era a sua casa, era simplesmente casa.

2.
Assim Natanael a via, como uma casa que tinha como responsável um homem, um ex-viajante que já perdera horizontes mas que se deixara enredar pelas raízes de outras árvores, prendendo-se em definitivo àquele lugar, um resto de avenida sem asfalto, ponto de contato entre o campo e a cidade, era ali que Jerônimo desempenhava tarefas muito parecidas com as de Prudenciana, igualando-se a ela ao vender mantimentos para senhoras, mas também assumindo papel masculino ao negociar a safra dos agricultores, que tinham no Armazém Entradas e Bandeiras, eis o antigo nome, que ninguém sabia direito o que significava, só depois de adulto Natanael iria entender o sentido daquilo, neste endereço de nome estranho os agricultores paravam para vender tudo que produziam, recebendo o dinheiro para os gastos na cidade, durante sua curta permanência, fosse com as compras de despensa, com os produtos agrícolas, com roupas e calçados, mas também com bebida e mulheres e jogo, alguns ficando na cidade por vários dias até não sobrar nada do dinheiro obtido com a safra que chegara numa camioneta alugada, parco produto de meses de trabalho, mas o agricultor não reclamava, a alegria sempre dura pouco, demorado é o trabalho bruto na roça, para onde voltava com compras incompletas e a ressaca que levaria dias para desaparecer, com gente assim negociava Jerônimo, cujo orgulho era nunca alterar o que indicavam as balanças periodicamente inspecionadas pelas autoridades do município, pois o que esta gente estava ali vendendo era mais do que umas sacas de milho ou de feijão, era o próprio sangue, ele dizia, e pagava tudo com o rigor de quem vendeu frutas, contando centavo por centavo: não existe melhor escola para se aprender a negociar do que este pequeno varejo, se você der um desconto de centavos para cada laranja que vende no final terá prejuízo, é preciso fazer conta até dos centavos, ele dizia, e este seu credo e sua obstinação pelo trabalho faziam com que o comércio ali, antes meio morto, fosse se tornando intenso, principalmente pela manhã, quando os agricultores entravam na cidade com carroças, jipes, camionetes ou bagageiros de ônibus cheios de cereais, e por isso trocou o turno da escola de Natanael, estudaria à tarde para poder ajudar no horário de maior movimento, e ainda contratara dois funcionários, e foi quando Natanael começou a ver o pai como uma figura feminina, pois era ele quem levantava cedo, antes de todos, para moer os grãos de café na varanda dos fundos, preparando-o bem forte, para beber enquanto andava pela casa tomando as primeiras providências, e em seguida ir para o armazém, que era aberto antes das sete, logo depois chegava Natanael, os olhos ainda grudando por causa do sono interrompido, e ele via o pai com uma vassoura, limpando primeiro o interior do armazém, jogando serragem molhada no chão e varrendo, isso servia para que o pó que baixara à noite não se levantasse, pois se agregava à serragem, que no início era amarelada, da cor da madeira, e acabava de um vermelho intenso, a cor daquela terra, uma terra de cultura, como os agricultores gostavam de gabar, ideal para lavouras exigentes, como feijão e café, mas que viravam lama terrível nas chuvas e poeira insuportável na seca, principalmente naquele movimentado canto de rua ainda sem asfalto, atormentando todas as donas de casa, obrigadas a limpar permanentemente o chão e os móveis, e esta era uma diferença em relação ao trabalho de Jerônimo, ele só fazia a faxina pela manhã, sem se preocupar com o brilho do piso de vermelhão queimado do armazém, depois varria o pátio da frente, todo de terra, onde se acumularam grãos no dia anterior, e Natanael se entristecia ao ver o pai, de mãos imensas, segurando o cabo da vassoura, num papel da mãe, ela tinha enfim conseguido prender seu homem ao quintal, Jerônimo sem tempo nem para visitar os parentes em outras cidades, pois o armazém era uma casa a exigir dedicação diária e, aos domingos, quando não abria as portas, ele acabava atendendo um ou outro cliente, que se esquecera de comprar o arroz para o risoto, macarrão, alho, cebola ou outro produto, e Jerônimo, assim, passava os dias sem se afastar muito daquele centro, resumo de seu mundo, resumo do mundo.

3.
Se Baixinho fora o morador incógnito do armazém, passando em seu interior as noites e usando o dia para as farras na cidade ou pelo menos para não fazer nada no horário produtivo, a casa tinha também herdado um hóspede, um gato de três corres que não acompanhara a mudança ou, se acompanhara, aprendera a fazer o caminho de volta, porque assim que os novos donos chegaram, ocupando os cômodos com seus móveis toscos, encontraram o gato na varanda, e sem cerimônia ele entrou junto com a família e se instalou no quarto destinado a Paulinha, nunca mais deixando de freqüentar aquele território, e eles ficariam sabendo depois que era ali o quarto de costura da antiga proprietária, onde havia um caixote para o gato que agora se julgava com o direito de retomar sua posse, o que ele fez assim que Prudenciana trouxe a cômoda e abriu as gavetas para colocar as roupas, destinando a mais baixa para as de cama, pois foi justamente onde o gato se instalou e de onde não quis mais sair, para alegria de Paulinha, que dizia: ele gostou de mim, e a mãe não quis expulsar o intruso nem falar para a filha que um gato se apega à casa não às pessoas, mesmo assim ele recebeu cuidados, Prudenciana colocou uns panos velhos na última gaveta, deixando-a sempre meio aberta, e o gato dormia o dia todo neste novo ninho, fugindo para a rua à noite, depois de um pequeno malabarismo se a porta já estivesse fechada, pois era obrigado a pular na cama, depois na cômoda, por fim no guarda-roupa e daí para a ventarola do vitrô, voltando apenas na manhã seguinte, isso quando não passava dias e dias fora, na sua fase de gato alongado e, quando era este o caso, ele aparecia magro, com machucados no corpo e olhos de ressaca, a primeira vez que isso aconteceu colocou as crianças em pânico: Piu-Piu — assim a menina o chamava, embora ele não atendesse pelo apelido ridículo — tinha sido morto, ou não gosta mais da gente, chorava Paulinha, e foi quase uma confirmação das misérias vividas fora de casa a sua aparência no dia do retorno, nem quis os cuidados de ninguém, comeu pouco, se irritou com a tintura de mertiolate que colocaram em seus ferimentos, para entrar logo na gaveta escancarada da cômoda, que esperava o bichano pródigo, e dormir uma semana, levantando-se apenas para beber água e comer e descomer, enquanto Paulinha reclamava que ele estava doente, iria morrer, mas Jerônimo sabia que apenas tinha ido à farra, e isso aconteceria outras vezes: não se pode prender um macho à casa, só se for castrado, ele disse, e esta informação deixou Natanael em pânico, seria possível que o pai estivesse preso em casa e no armazém por uma razão assim, ele se perguntava, enquanto via o gato se recuperando com os carinhos domésticos para ter força suficiente de enfrentar de novo o mundo, provando de suas delícias e também de seu perigos, porque não era possível, raciocinava Natanael, conhecer as delícias sem passar pelas provações, até para comer a melhor goiaba do pé, que ficava invariavelmente no galho mais alto, ele tinha que correr o risco de uma queda, sofrer pequenas escoriações no contato com os galhos, eis a lei de tudo: inexistem prazeres sem sofrimentos, e deixar a casa era algo que ele ia aprendendo aos poucos, com o exemplo do gato tão diferente do dos capados, tal como os que viviam no quintal, Natanael tinha presenciado tudo, o pai recebia uns leitõezinhos escuros e muito bonitos, dava vontade de criar como animal de estimação, daí ia para o fundo, amolava bem o canivete, desinfetava a lâmina com álcool, segurando o leitão entre as pernas para procurar os bagos dele, puxava com força, ele começava a gritar, e Jerônimo esfregava o canivete aberto de um lado para outro na pele esticada, como se estivesse amolando a lâmina, e num movimento brusco a afundava, fazendo um talho pequeno, de onde tirava os bagos, na mesma hora jogados longe, em uma das vezes Natanael veria o gato se fartando com aquelas bolotas de carne, depois o pai passava uma tintura roxa e soltava o leitão que, assustado, saía grunhindo rumo a um canto do chiqueiro, para, quando parasse de doer, começar uma vida de silêncio e engorda, e por meses ele apenas comeria, olhando tudo com olhos tristes, até o dia em que seria morto e frito no tacho que o aguardava pendurado na parede da casinha de lavar roupa, um destino parecido com o do pai, portanto, porque ao começar a trabalhar no armazém, sem tempo para se alongar no mundo, Jerônimo se tornara mais quieto e começara a ganhar peso, numa versão humana do capado, e Natanael não sabia qual o destino dos homens que abdicavam do mundo e mantinham uma rotina doméstica tão enfadonha, e quanto mais ele via o pai engordando mais ele admirava as fugas do gato.

lustração: Marco Jacobsen

4.
Embora não pudesse sair de casa por imposição da mãe: quero meus filhos por perto, não criei animais soltos, este meu pasto tem cerca, e é pequeno, meus filhos ficarão comigo até se casarem, e não precisam de amigos, têm tudo em casa, por que se perder na rua, a rua estraga os homens e destrói as mulheres, nunca vi uma moça honesta na rua, todas estão lá para as piores coisas, a mãe dizia, e foi nesta época que ela pediu para o pai erguer o muro da casa, sob o pretexto de que deviam fazer algo para barrar a poeira: veja como os nossos móveis ficam sujos, mesmo a roupa não pode permanecer no varal durante o dia, somente à noite, e esta casa, embora bem melhor do que a outra, está me escravizando, nunca acaba a limpeza, a mãe não parava de reclamar, e Jerônimo, no seu destino submisso, fez os gostos de Prudenciana, erguendo muros altos, que ficaram sem rebocos, tendo sido apenas chapiscados, e plantou pés de maracujá que, em pouco tempo, talvez porque ele aguasse diariamente as covas, talvez pelo calor da região, cresceram e sua folhagem tomou conta de tudo, fornecendo maracujás maduros que Prudenciana usava para fazer suco, num sinal de que necessitavam apenas do que dava no quintal, e esta era a vantagem de Natanael estar ajudando o pai, tinha fugido um pouco do muro alto, da folhagem espessa dos maracujás e do poder protetor da mãe ao começar o serviço no armazém, cuidando das vendas no varejo, com movimento mais forte também na parte da manhã, quando as donas de casa apareciam em busca do que cozinhariam no almoço, e este serviço era como ajudar a mãe nas tarefas domésticas, Natanael avaliava a força da mãe, que se fazia presente na vida dele e na do pai mesmo quando eles estavam fora de seus domínios, era como se tudo tivesse que corresponder aos desejos de Prudenciana, e ali estava ele, menino que não brincava com os colegas da rua, que nem ia para a escola sozinho, na maioria das vezes Jerônimo o levava na bicicleta de carga do armazém, no início só ele sentado na parte da frente, onde iam as compras para as casas dos fregueses, depois, quando Paulinha já estudava, dividiam o pequeno espaço, e era como uma entrega que chegavam na escola, não podendo seguir a pé, a mãe morria de medo da rodovia movimentada que eles deveriam cruzar, e também era uma forma de ela evitar que arranjassem amigos que tirariam os filhos dos seus domínios: a casa é o sempre, a rua é o instante, ela gostava de dizer para criar nos filhos um amor àquele centro, ignorando o que não cabia na casa, no afeto da mãe, no cercado em que eram criados como animais domésticos, e era uma confirmação deste regra o fato de Natanael vender meio quilo de arroz agulhinha, um quilo de feijão preto, uma réstia de alho pequeno, uma concha de macarrão para sopa, como se estas compradoras fossem versões da mãe que o vigiavam na sua manhã de trabalho, embora Prudenciana mesmo jamais aparecesse no armazém: mulher no comércio é sempre mercadoria, ela profetizava nos seus momentos de crítica ao mundo, preferindo ficar nos domínios do quintal, ordenando móveis, panelas e plantas, e nem precisava pisar no armazém, lá estava ela em cada uma das clientes, que Natanael atendia com um respeito exagerado, mas com alguma contrariedade, sentindo outro chamado, que lhe chegava em algumas figuras, como a do Tremendão, um louco que tremia sem parar, tinha um distúrbio qualquer, ele aparecia saído ninguém sabia de onde, Jerônimo mandava Natanael aos fundos, buscar um prato de comida, que a mãe improvisava numa lata de marmelada, caprichando nos pedaços de carne, carne que Tremendão quase não podia comer, pois para ele era difícil aproximar corretamente a colher da boca e, como um passarinho desatento, derrubava comida no chão, não aproveitando mais do que a metade do prato, e comia falando coisas incompreensíveis, mas um dia Natanael ouviu uma palavra inteira: amor, dita vá lá saber com quais intenções, mas o menino percebeu o brilho triste nos olhos do louco cuja sina era conhecida na cidade, vivia vagando de um canto a outro, sem casa, sempre sujo, a catinga do mundo é insuportável, dizia Prudenciana, quando recebia a lata e a colher que serviram ao andarilho, lavando-as com muito sabão e as deixando separadas da louça, na parte interna da pia, onde ela também guardava os produtos de limpeza, como se o cheiro desses compostos químicos, tão acentuados, pudesse inibir o odor do mundo, que ela identificava naqueles pobres objetos, e Natanael, uma vez, trazendo de volta a vasilha, aproximou-a do nariz para identificar o cheiro de Tremendão, uma catinga de fezes e urina, de suor velho, igual ao dos cavalos que chegavam no armazém arrastando carroça, e ele não soube se foi uma ilusão de seu olfato ou não, mas sentiu o mesmo cheiro do andarilho na lata, e ficou abismado com a sensibilidade da mãe para as impurezas do mundo, temendo o dia em que ele se deixasse contaminar, pois a mãe identificaria tudo imediatamente, descobrindo que o filho andara por bueiros femininos, bueiros que tudo tragam e pesteiam os ares, apesar deste temor, de saber que um dia a casa sofreria por meio dele a contaminação do mundo, e que então choveriam raios inclementes da boca de Prudenciana, ele não conseguia deixar de ansiar por isto, e via Tremendão não como um massa pestilenta, como alguém que mantinha uma intimidade com o que havia de mais sujo no mundo, mas como um mensageiro que anunciava, nos seus cabelos embaraçados pelo vento e tomados de poeira, uma distância desejada como se deseja o corpo de uma prostituta, Natanael poderia em poucos anos fazer esta relação, logo ele também percorreria as ruas em busca das nódoas, pois mesmo um homem que tem a roupa lavada e passada pela mãe/mulher carece participar do imundo, nem que seja para dar valor à limpeza que tem em casa, é inevitável provar das impurezas, rolar na lama e na poeira, ter os cabelos encordoados pelo vento que nada respeita, e assim Tremendão figurou em sua imaginação como a força desordenada que se conhece no mundo, só que Natanael se cansara de apenas imaginar o que havia além da casa-armazém-escola, era chegada a hora de ver, e só havia um jeito, aprendendo a partir, e sozinho, ao voltar da escola, quando o armazém ainda estava aberto, mas com poucos clientes, e todas as entregas já haviam sido feitas por um dos funcionários, ele empurrava para os fundos, a pretexto de guardá-la, a bicicleta de carga, e tentava subir nela, domar este animal molenga, que não parava em pé, queria sempre deitar-se, derrubando o jovem cavaleiro, que se levantava, erguia a bicicleta pesada por conta dos muitos canos, e montava novamente e mais uma vez caía, mal conseguindo dar uma pedalada, depois duas e logo eram cinco, e como o barracão, embora grande, não fosse suficiente para distâncias maiores, ele só podia treinar estes inícios, e às escondidas, até que Jerônimo o viu no ensaiar das primeiras pedaladas, dizendo que se queria aprender a andar de bicicleta que fosse para fora, lá no pátio, para não estragar nada no armazém, embora tanto lá fora quanto aqui dentro você corra o risco de estragar alguma coisa em você, e Natanael não soube dizer se o pai estava falando de alguma queda que machucasse seu corpo, quebrar um braço, esfolar um joelho, cortar as sobrancelhas, ou se o que estragaria era sua alma, mas se fosse isso ele não teria o menor temor porque algo já vinha se deteriorando dentro dele.

5.
A sensação dos cabelos tocados pelo vento, cabelos mantidos curtos por imposição da mãe, para evitar piolhos e outras imundícies, o mesmo corte do pai reproduzido nele, as roupas de um eram iguais às do outro, não só o modelo, mas a própria fazenda, a sensação de cabelos tocados pelo vento era diminuída pelo corte militar, quase raspado nas laterais, o topete um pouco mais alto, e era ali, no topete, que o vento se embaralhava um pouquinho, fazendo com que sentisse frio, mesmo sendo verão, ao assoprar as orelhas nuas, e Natanael planejava deixar o cabelo crescer, para que cobrissem as orelhas e caíssem sobre os ombros, com cabelos longos, eles talvez até se encaracolassem, soltos na disparada de bicicleta, impulsionada pelo peso da carga, que descia a toda velocidade pela Avenida Vila Rica, e ele tentava manter o mesmo ritmo no início da ladeira, pedalando com determinação, e logo atingia o centro da cidade, fazia a entrega e só voltava para o armazém depois, pedalando sem vontade, para descobrir, segundo a arenga da mãe, que os caminhos que levam são fáceis e atrativos, mas os caminhos que trazem são difíceis ou impossíveis, e ele quase tinha vontade de descer da bicicleta e empurrar na subida rumo ao trevo, vendo as casas e os comércios à margem, por onde ele tinha passado em grande velocidade, indiferente a tudo que não fosse a emoção de experimentar-se nesta fuga que durara tão pouco, embora o pai reclamasse: por que você demorou tanto, há outras encomendas, e, sem força para uma entrega atrás da outra, seria um dos empregados que faria as seguintes, ele ainda se recuperando dos vários minutos que andara como um louco pelas ruas, livre das compras e percorrendo o máximo de lugares no menor espaço de tempo, tudo para conhecer o mundo, sonhando com o dia em que não precisasse logo voltar.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Natanael troca a casa materna por outra, onde uma família imensa lhe ensina os prazeres da vida. Na companhia dos novos amigos ele faz excursões pelo mundo, recebendo os primeiros golpes e ganhando uma história para ser narrada.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho