Notas

Conto inédito de Constança Guimarães
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/04/2022

Todo mundo deveria ir a seu próprio funeral. Examinar o rosto das pessoas, circular entre as fofocas, olhar com algum afeto as tias velhas inconformadas murmurando a cada encontro ele era tão jovem. É possível se despedir da mãe desolada, ignorar o escroto do pai e encarar sua mulher elegante num vestido preto correto com traços de choro no rosto abatido, mas recomposto. Ela não faria um escândalo. O que Lúcia tinha de intensa, na mesma medida era sóbria.

Fiquei treze dias em coma. Depois de tomar uma garrafa e os trinta e três comprimidos que o médico havia me receitado — um por dia após o café da manhã. Eu tinha chegado transtornado à consulta. Não dormia havia uma semana.

Lúcia não faria escândalo em meu velório. Não mudou o tom de voz quando anunciou que estava saindo de casa. A voz inalterada foi o primeiro sinal de definitividade da decisão. De pijama e em movimentos temperados, Lúcia pegou a chave do carro, a carteira, uma maçã e a caixa de fotos. Só bem mais tarde notei na parede o buraco branco quadrado de tinta protegida. Lúcia tinha levado o quadro que trouxera do Ceará que era sua alegria e seu altar. Pelos dias e noites seguintes fiquei obcecado em encontrá-la. Eu sei que não amava Lúcia, não sei o que ela sabe. Eu a adorava profundamente.

Contrataria um detetive logo de manhã, decidi minutos antes de abrir a garrafa. A obrigaria a voltar para casa. Trancaria Lúcia no apartamento. Ótima ideia, disse para mim mesmo enquanto abria o frasco do remédio. Li rapidamente o rótulo tomando a primeira dose. Joguei dentro da goela, com a mão espalmada, três comprimidos. Quase engasguei.

Vou sequestrar Lúcia, eu repetia entorpecido pensando quanto tempo levaria para tomar o que sobrava da garrafa. Tinha enchido oito copinhos até a borda e colocado todos juntos, em fila, sobre a mesa. Tentava resgatar detalhes da última briga. Lúcia não mudou o tom, o corpo de lugar e nem o arco das sobrancelhas quando, no meio dos petardos, fui para a cozinha fazer um pão dormido com ovo. Da cozinha, perguntei se ela queria uma cerveja. Minha voz se animara, o clássico combo das madrugadas tinha me movido para um lugar de contentamento. Abri as janelas, cantarolei. Lúcia não respondeu, mas senti os ventos bravos que ela solta pelo nariz sempre quando está furiosa. Ela caminhou devagar, em silêncio, até a porta da cozinha e encostou no batente. Meti dois ovos na frigideira bem quente com manteiga e azeite. Comi com a mão engordurada, a garrafa de cerveja quase escapando dos dedos oleosos, sentindo um prazer imenso.

Sentado no chão da sala grogue, salivei. Relembrei as madrugadas de sexo com aqueles homens bonitos, amorosos e caros. O pão com ovo e cerveja na cozinha depois do sexo, parte do pacote. Eu estava certo em me matar.

Quis ir à cozinha, não consegui me levantar. Dias atrás tinha lido que um escafandrista de esgoto ganha dois salários-mínimos, agora fico pensando como pode alguém mergulhar na merda por tão pouco. Sobrevivência, conclui. Desistir também é uma saída, completei. Estiquei o braço e, fazendo força para não tremer, peguei mais um copinho. Abri o frasco e lancei boca adentro os comprimidos que caíram na minha mão.

Me chamo Pedro. Nos últimos dois anos, era sempre as quatro e quarenta e cinco da manhã que eu me levantava com muito sono e um incrível mau humor, bastante satisfeito por não conversar com ninguém àquela hora. Depois de dois longos suspiros raivosos, sentado na beirada da cama com as mãos apoiadas nos joelhos, eu esticava as costas levantando meus braços para trás e ficava em pé, caminhava lentamente em direção ao banheiro. Com a mão esquerda apoiando o peso do meu corpo inclinado em direção à parede que segurava o vaso, mijava muito ainda com os olhos semicerrados ainda com muito sono ainda com um incrível mau humor.

Limpava meticulosamente meu pau, como aprendi com minha mãe quando era criança, e tirava o pijama. Que podia ser tanto de verão como de inverno, velho ou novo e claro ou escuro, mas era sempre o conjunto. Entrava debaixo do chuveiro gelado. Com o corpo úmido colocava a roupa de corrida. As cinco e cinco, comia duas bananas colocava os tênis escovava os dentes e minutos depois estava na rua. Uma hora mais tarde estava de volta. As sete e quinze saía de casa para o escritório. Eu era um arquiteto razoavelmente bem-sucedido.

Todo mundo devia ler seu obituário. Saber o ponto exato da marca ou margem, inventadas. O que decidem assinar pelos mortos é a súmula do que deveríamos ter sido e nunca fomos tão leais, incríveis e amorosos. Um obituário é um registro necrológico público, li na Wikipédia. Um obituário é um registro necrológico público corrompido, completei.

Claro que minha irmã é quem escreve a minha memória em pedra. E me faz famoso e gay, enfim, ainda que apenas no círculo familiar, o que já será um bom tiro e tomara que mate meu pai de infarto ou pelo menos de desgosto. Tomara que Lúcia não seja surpreendida, nunca soube o que ela percebia.

Minha irmã sabe que a estupidez é a marca dele, meu pai, não a minha. Portanto não será sobre isso a minha celebridade, apesar do meu suicídio que talvez tenha sido sim uma estupidez. Sinto pesar quando vejo minha irmã chorando enquanto escreve com os cabelos desgrenhados num coque malfeito e sem escovar os dentes; naquela manhã ela se esquece de escovar os dentes. Clarice sofre com minha morte, eu sofro quando a vejo tremendo a letra, dispensando um rascunho atrás de outro.

Preciso me concentrar para a mão alcançar um dos dois últimos copinhos sobre a mesa. Estico o braço com atenção, seguro com força o copo, xingo quando derramo parte do líquido sobre meus pés, tenho medo de que a bebida acabe antes de mim. Passo meus dedos compridos na planta do meu pé direito e os lambo. Com dificuldade, cato na mesa dois dos quatro últimos comprimidos, coloco na ponta da língua, puxo com raciocínio a língua para dentro da boca e os mastigo como fazia com as pastilhas de hortelã para tosse que minha mãe me dava, assustada com minhas febres altas esperando o dia amanhecer para me levar ao médico. Minha irmã, murmuro. O telefone celular tem um fio de bateria. Aperto o número 2 da discagem direta e Clarice atende.

Constança Guimarães

Escritora mineira e jornalista, é autora de Como se fosse possível medir o tamanho do escuro (Urutau, 2020), Ombros caídos olhando pro inferno (Urutau, 2017) e A sereia da contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto, Ruído Manifesto, Acrobata, Mirada, Germina e Laudelinas. Participa da antologia Não há nada mais parecido a um fascista do que um burguês assustado (Hecatombe/2020).

Rascunho