Nossos ossos

Conto inédito de Marcelino Freire
Ilustração: Fabiano Vianna
01/07/2013

(I)
Os ligamentos
O próximo, o próximo, por favor, e o próximo sou eu, assim me chamou o caixa do banco, já estou indo, já vou, digo e sigo, firme, carregando o que a arte dramática me deu, essa cara séria, meus olhos continuam verdes e profundos, minha alma nem dá na vista que apodreceu.

Todo o soldo que tenho desta vez eu levarei, o gerente veio de novo me perguntar se eu realmente iria viajar, sim, inventei, faz uma vida que não vou ao Nordeste, vou a trabalho, receberei um prêmio pelo conjunto da obra, uma espécie de recompensa, desconverso, há quanto tempo, nem lembro, que eu sou cliente desta agência?

O caixa também sabe de mim, olá, como estamos, ele igualmente quer garantir se está tudo em ordem, é uma grande soma em dinheiro, nem eu imaginaria que eu tivesse esse montante em conta, uma existência dedicada aos palcos, a primeira peça que escrevi faz quase trinta anos.

Não é um assalto, nem estou sendo chantageado, fiz questão de responder, agradeci a preocupação do chefe da segurança, ele me acompanhou até a porta, entrei no táxi, o motorista é conhecido nosso, não há motivo para desconfiança, obrigado, até logo e adeus.

No meu prédio um outro susto, o zelador estranhou a madrugada anterior em que eu passei arrastando caixas, rasgando papéis, entulhando livros na área de serviço e o momento em que me despedi dele, em silêncio, dizendo que a viagem seria longa, sem data para voltar, mas não irei de vez, preciso que alguém cuide de Picasso para mim, o meu gato siamês, será que essa viagem tem a ver com a polícia que procurou por ele faz coisa de uma semana, comentou à cama, antes de dormir, a mulher do zelador.

O motorista de táxi, do ponto da praça, já foi a vários endereços comigo, o tanto que a gente andou, daí eu entendi ele ter me perguntado o que danado eu fui fazer ontem na funerária, sem contar que, dias atrás, saí à cata de assinaturas de documentos no Instituto Médico Legal, não me leve a mal, tem certeza de que não aconteceu uma desgraça, indagou, me fale, por favor, me diga.

Agradeci a ajuda, comovido, mas olhe só, eu fico de novo nesta rua, desci e dei a ele uma gorjeta graúda, o taxista gostou, em outras corridas já me levou àquele hotel para reuniões, leituras, encontros, o jovem mensageiro me cumprimentou piscando, eu garanto que aqui estou em casa, até parece que o mundo inteiro está me vigiando, ora, juro que não é nada demais.

Subo para o quarto de sempre, o de número 48, e chego a soltar um sopro, relaxo os ombros, abandono o blazer ao lado do travesseiro, resolvo telefonar para a funerária, será que o trabalho finalmente terminou, eis que eu pergunto, o carro partirá ou não partirá nesta quarta, o gerente diz que sim, a gente correu com o pedido, deu o maior gás, não se preocupe, embalsamado já está, prontinho para viajar, o corpo do rapaz.

(II)
Os músculos
O meu boy morreu, foi o que o michê veio me dizer, eu estava de passagem, levando umas compras que eu comprei, vindo da farmácia, não sei, em direção ao Largo do Arouche.

Cinco facadas, um corte foi bem na altura do peito, o garoto perdeu três dentes, bateu com a cabeça à beira de um banco de madeira, tremelicou perto de onde vivem os ambulantes, ao lado do quiosque de cosméticos, sabe, não sabe?

De fato eu saí com o boy morto muitas vezes, tomamos prosecco, caju-amigo, licor báquico, eu trouxe o garoto, certas madrugadas, para meu apartamento, ele ficou admirado com os livros que eu guardo, numa pilha os amores de Lorca, os cantos de Carmina Burana, dramas de todo tipo, vários volumes sobre técnicas apuradas de representação.

Quanto dramalhão, ave nossa, o michê não parava de contar das facadas, estocadas, da gritaria, dos olhos revirados, a ambulância que nunca chegava, a noite sem fim e fria, eu perguntei se a família dele foi avisada, ah, ele não tem família.

E me diga, quem matou o coitado, cá para nós, ele me disse, acho que mandaram matar, chegamos a dividir um beliche numa pensão, era um bom camarada, o corpo dele ainda está lá no IML, sem parente, sem quem por ele reclame, a prefeitura mandará incinerar, ao que parece, depois de uns meses de espera, faz quinze dias, eu acho, do acontecido.

Sou um homem antigo e essas histórias que não sejam de amor manso me vergam e me assustam, no entanto o exercício que fiz, de concentração, o pensamento calmo, apreendido em toda uma vida devotada ao teatro, me afasta do horror, a realidade, pelo menos publicamente, não me fere nem me abala.

O michê, depois de um relato, de fato surpreendente, mudou o tom da fala, perguntou se eu não estava afim de sair com ele, fazer um programinha, matar as saudades, uma horinha de amor, eu sou gostoso igualzinho ao outro que se foi, diz aí, meu amigo, sou ou não sou?

Bati em seus ombros de pombo, baixei a cabeça, outro dia, quem sabe, despistei, ele me pediu dez paus para uma cervejinha, cigarro, dei a ele o troco da farmácia e segui o rastro da luz do poste batendo na calçada, desenhando, para a minha cabeça tonta e pesada, o caminho de volta para casa.

Marcelino Freire

Nasceu em 1967 em Sertânia (PE). Escreveu, entre outros livros, Contos negreiros (Prêmio Jabuti 2006) e o romance Nossos ossos (Prêmio Machado de Assis 2013). É criador da Balada Literária, um dos principais eventos literários do país.

Rascunho