Nossa Senhora de Guadalupe

Conto inédito de Alexandre Marques Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues
07/07/2015

Beethoven morreu em 1827. Eu telefono, não preciso explicar, ela já sabe. Nietzsche morreu em 1900. Ela vem. Demora, talvez, escolhendo a roupa: veste uma blusa, tira, vai até o armário, procura, escolhe, veste outra, tira, volta a vestir a primeira, se olha no espelho. Penteia mais do que o necessário os cabelos, ao longo de todo o comprimento, inclinando a cabeça primeiro para um lado, depois para o outro. Contorna os olhos com o lápis preto. Gombrowicz morreu em 1969. Mas ela vem.

Falha em esconder o hálito alcoólico. Entra, passa pela porta, Torres García morreu em 1949. Ela já foi embora, pergunta sem olhar para mim. Seus olhos estão aguados; linhas vermelhas se formam a partir de cada íris; se ela piscar, ela sabe, uma lágrima vai escorrer por seu rosto. Por isso ela não pisca, não me olha: guarda a cidade do alto, do outro lado da janela, sem se mexer. Shostakovich morreu em 1975; apenas quando passa o risco de chorar é que ela olha para minha cara pela primeira vez, diz Que bom que ela já foi embora.

É hora do almoço, mas não ofereço nada para ela comer; pego a garrafa de whisky. Malevich morreu em 1935. Não sei quando foi, durante qual delas, quando foi que ela passou a vomitar tudo o que comia, tão logo terminava de comer. Bebemos o whisky juntos, no mesmo copo. Eu sei, não devia ter telefonado, não devia ter chamado ela aqui, outra vez, Heidegger morreu em 1976; mas eu não resisti, não resisto: pego o telefone, chamo, ela vem, Onetti morreu em 1994, entra com os olhos aguados e depois se despe.

De que morreu essa última, ela pergunta quando se deita na cama. Estende o braço pedindo o copo com whisky. Osman Lins morreu em 1978. Eu não respondo, não faz diferença; o que importa é que houve, existiu essa última, existiram todas as outras mulheres que vieram antes dela. Que nome deu a essa, ela quer saber; Bartók morreu em 1945. O que importa, principalmente, é que telefonei, eu a chamei depois de cada uma das mulheres ter morrido, ido embora, todas as vezes; entre o fim de uma e o começo de outra, eu a quero aqui, e ela vem.

Nossa Senhora de Guadalupe, eu respondo, digo Essa última eu chamei de Nossa Senhora de Guadalupe. Anton Stein morreu em 1984. Ela se senta na cama, tira a camisa: abre os botões com simplicidade, como se despisse a roupa para tomar banho, sozinha. Tira o soutien. Olha para mim. Lucian Freud morreu em 2011. Os cabelos descem em ondas, o preto contrastando com a pele, branca demais. Schiele morreu em 1918 e eu fico de pau duro.

Mas não: eu não posso ir até a cama; não posso beijar sua boca, tocar os seios que ela oferece. Me encosto contra a parede, ao lado da janela. Pego o copo com whisky de volta, de cima do criado mudo. Musil morreu em 1942, Webern morreu em 1945. Eu aprendi, não cometo mais os mesmos erros. Porque se eu fosse até a cama, beijasse sua boca, tocasse seus seios, ela me afastaria, depois poria as roupas de volta, talvez fosse embora. Essas são as regras, estas: não tocar, não beijar; apenas ver. Eu me encosto contra a parede, então, e vejo; ela tira o tênis, tira a calça jeans.

Não há qualquer suspense: quando ela terminar de tirar a calça jeans, vai tirar também a calcinha e vai abrir as pernas, deitada sobre minha cama, para que eu saiba. David Markson morreu em 2010. Eu sei. Messiaen morreu em 1992. Em sua coxa esquerda há um corte a mais.

Meu olhar se divide entre os cortes em sua coxa, agora onze, paralelos, e a boceta que se abre, lisa, como uma lælia purpurata, vulgar e eficiente. Mas Stockhausen morreu em 2007, Nabokov morreu em 1977 e Balthus morreu em 2001. Eu quero pedir desculpas. Ela começa a se masturbar. Os cortes já existiam quando eu a conheci, quando trepamos pela primeira vez; mas eram então apenas quatro. Eu perguntei; ela nunca me contou, nunca explicou a razão dos primeiros quatro cortes.

Roberto Bolaño morreu em 2003, sim, infelizmente. Eu me controlo como posso. Schoenberg morreu em 1951. Minhas mãos se umedecem, coladas na parede, atrás de meu corpo. Van Gogh morreu em 1890. Meu pau lateja dentro da calça. Hannah Arendt morreu em 1975. Eu me controlo como posso: não me masturbo também, não vou até ela, não me mexo; eu sei, ela precisa gozar primeiro, com as pernas bem abertas, escancarando os cortes, o último deles mais cru, mais vermelho do que os outros. E eu preciso ver, apenas isso, preciso ver para que eu saiba.

Com o tempo a náusea cessou. O remorso e a pena também cederam. Ainda que me venha em algum momento, subitamente, o impulso de pedir desculpas. Günther Grass, Milan Kundera e António Lobo Antunes não morreram ainda. Eu olho, mas não me machuca mais: que cada mulher com que eu trepe fique gravada em sua carne, em seu corpo, uma nova cicatriz. Agora, quando eu a chamo, ela vem, depois se despe a minha frente, abre as pernas para que eu veja e eu vejo, agora sua dor é parte do prazer que eu sinto. Alban Berg morreu em 1935: cada novo corte em sua coxa me excita um pouco mais.

Ela termina, goza, e então eu já posso. O corpo largado sobre a cama, satisfeito, não impõe mais barreiras. Eu arreio as calças, me ponho entre as coxas dela, Charles Mingus morreu em 1979, passo pelos cortes e enfio o pau em sua boceta, Gide morreu em 1951, meto o mais rápido que consigo, apenas para gozar também.

Eu termino, gozo. Ficamos os dois na cama, deitados, paralelos como os cortes em suas coxas. Ela diz que comprou cortinas para meu quarto que não tem cortinas. A última vez que esteve aqui foi há três meses, mas ela sabe, diz Preciso arrumar as gavetas do banheiro. E diz que eu tenho que comprar camisas novas para trabalhar. Hopper morreu em 1967. Viu para vender um conjunto de taças, como as que eu queria, mas não comprou ainda. Ela sorri, mostra que eu estou misturando as roupas de cama, que estou usando as fronhas do outro conjunto. As janelas da sala estão sujas de novo.

Eu olho seu corpo, fico calado. Os seios escorrem pelo tórax. Ela diz que aprendeu receitas novas que quer cozinhar para mim. Eu passo o dedo, acaricio cada uma das cicatrizes em sua coxa. Tem muita louça suja, na pia, para lavar. Uma a uma, eu vou percorrendo minha vida pelos cortes dela. Rachmaninov morreu em 1943. Na décima primeira cicatriz, eu paro.

Quero que se corte na minha frente da próxima vez, eu digo, ou peço. Ela finge que não ouviu. Diz que vai pôr a capa das almofadas da sala para lavar. Eu insisto, peço de novo: que ela se corte na minha frente da próxima vez. Ela diz que Knut Hamsun morreu em 1952, finge que não entendeu, que não sabe que haverá outra mulher, que haverá outra vez, que não acabou, que haverá ainda outros cortes. Schopenhauer morreu em 1860, ela diz simplesmente.

Eu não me recordo também em que momento começou, quando ela decidiu que iria memorizar o ano da morte de cada um dos escritores, filósofos, pintores e compositores que eu gosto de ler, de ver ou de ouvir. Sua mãe morreu em 1984, ela diz, inaugurando uma categoria nova, tentando me machucar um pouco mais. Depois conta que comprou uma caneca de café para mim, mas se esqueceu de trazer.

Aproveito a ideia e sugiro, me levantando da cama, eu digo Vamos fazer café, digo Preciso comer alguma coisa. Já ficou tarde para o almoço. Ela diz que Beckett morreu em 1989, que Cortázar morreu em 1984 e começa a chorar. Pede desculpas por estar chorando, por estar estragando tudo mais uma vez. Mas não consegue se conter, ou evitar, e chora; deitada em minha cama, encolhida, ela chora.

Tchekhov morreu em 1904.

Alexandre Marques Rodrigues

Nasceu em 1979, em Santos (SP), onde vive. É formado em Psicologia, pela Universidade Católica de Santos. Mantém desde 2010 o blog Ler até Escrever, no qual registra impressões sobre livros (www.amarquesrodrigues.com). O conto Seios pertence à coletânea Parafilias, vencedora do Prêmio Sesc de Literatura 2014 e publicado pela editora Record.

Rascunho