Nossa casa

Conto inédito de Natalia Timerman
Natalia Timerman, autora de “Desterros”
30/09/2019

Ela mama a cada três horas, até a cada duas. Se demora um pouco mais, meu peito começa a formigar e sinto ele encher. Algumas vezes coincide com o choro dela. Outras, acordo antes, sinto o formigamento, a madrugada em silêncio e, antes de virar pro outro lado na cama e tentar dormir, escuto o som metálico rasgar a noite, o choro da Lia me chamando. Mas é quase sempre ela quem acorda primeiro.

O Roberto não acorda com barulho nenhum. Ela chora, eu olho no celular, só passou uma hora de quando mamou pela última vez. Vai lá, Roberto, eu digo. Ãh?, ele diz, a voz abafada de sono. Vai lá, a Lia acordou, faz pouco tempo que ela mamou, não é fome. Ele se levanta e se arrasta até o quarto ao lado, e eu vou ficar acordada escutando cada som, por mais cansada que eu esteja. O choro da Lia, qualquer gemido dela, parece ter um amplificador instalado direto na minha pele.

Estamos esgotados. O Roberto se propôs a dar leite de madrugada porque há cinco meses eu não durmo mais do que três horas seguidas. Mas é mais fácil abaixar a camisola e pronto — a boca da Lia no meu peito —, do que ele descer, descongelar o leite — que eu vou ter que tirar durante o dia em algum momento —, colocar na temperatura certa, e enquanto isso a Lia chorando. A chance de ela voltar a dormir é muito menor, e com ela chorando eu não consigo mesmo pregar os olhos. Então vou eu, e o Roberto nem chega a acordar.

Minha memória anda péssima. Começo a falar e esqueço a continuação da frase, esqueço compromissos, as palavras fogem. Não lembro do que aconteceu no dia anterior, por exemplo. Brigamos de novo e nem sei dizer como começou. Se foi porque o Roberto reclamou que eu dou de mamar pra Lia o dia inteiro, se foi porque eu reclamei que ele sai e não avisa quando volta e ficamos as duas aqui, sem aguentar mais olhar uma pra cara da outra, se foi porque ele disse de novo que não suporta o jeito como meu irmão fala comigo — eu também não suporto —, ou se foi na nossa tentativa de conversa sobre como tentar estabelecer uma rotina pra nossa filha. É incrível: nós conseguimos brigar até quando concordamos. Chegamos à região da incomunicabilidade, parece. Isso é o fim ou o começo do casamento?

A Lia dormiu umas nove e eu fui deitar. Ah, não. Antes sentamos na sala pra conversar e chegamos à conclusão de que assim não está dando. De que se você está infeliz, vai embora. Etcetera. De novo. A Lia acordou, o Roberto foi lá. Acho que foi isso. Eu fechei a porta do quarto e deitei, mas era só pra tentar não escutar o choro dela. Eu queria dormir com ele, ficar perto dele e só, por mais que as coisas estejam ruins. Mas ele deve ter entendido aquela porta fechada de outro jeito, porque depois que a Lia adormeceu escutei três batidinhas, o Roberto entrou e disse que ia só pegar umas coisas. Talvez eu quisesse dizer: deita aqui, vamos esquecer que brigamos, estamos só exaustos. Olhei pra ele e fiquei quieta. Quando escutei ele saindo, o quarto de novo fechado e eu sozinha, quis chorar, brigar, sumir. Dormir, nada, o sono já se esticava em um esgarçamento de mim que envolve tudo num avesso agitado e irritadiço. Bem como a Lia fica quando está cansada.

Esperei um pouco, tentando me acalmar, me dizendo pra dormir. Depois de um tempo — vinte minutos? uma hora? — levantei e fui de mansinho até o Roberto. Queria conversar, acertar as coisas, pegar na mão dele e dizer vem dormir comigo, amor. Ele estava sentado no sofá com o computador aberto no colo, trabalhando. Como me irrita que ele fique nessa posição. As costas tortas, todo envergado, pra trabalhar tem que ser numa mesa, não no sofá como quem está tomando um cafezinho. Roberto, vamos conversar, eu disse. Será que isso foi antes? Não sei se foi nessa hora que ele disse: essa situação está terminando, quando a Lia começar a comer as coisas vão mudar. Como assim? Então ele acha que ela vai parar de mamar de repente? Ou que o problema todo é esse? Um baita esforço pra dar o peito, o peito esfola, tenho uma sede do deserto, fico esgotada, e nossos problemas conjugais se devem ao fato de eu amamentar minha filha? Não precisa esperar até os seis meses não, pode ir embora dessa casa já, falei, gritei, sei lá, e ele disse no mesmo tom que não, quem pagava as contas era ele, que ele não iria ser meu bonequinho, bibelozinho, isso, foi “bibelozinho” que ele falou, ele não ia ser meu bibelozinho pra sair e voltar quando eu quisesse. Então quem sai agora sou eu, falei, sem acreditar no que minha boca dizia, sem acreditar que eu seria capaz de deixar aquela casa, a Lia com fome, nem que fosse por algumas horas. Mas meu corpo foi agindo sozinho e me levou até o quarto, onde abri o armário e peguei uma calça e uma blusa. Lembrei que tinha um saquinho de leite congelado fazia uns dez dias, eu tinha tirado pra se eu chegasse tarde no dia em que encontrei a Matilde, mas acabou não precisando. Tirei o pijama, fome ela não ia passar, e a ideia, a vontade de ir embora daquela casa, de deixar o Roberto, de deixar o Roberto e a Lia sozinhos, aquela ideia foi crescendo dentro de mim. A casa de alguém? Não, não. Eu já chorava, minha respiração se confundindo com choro, o Roberto me viu vestida e disse que era minha filha que ia sofrer, era ela quem eu ia fazer sofrer e não ele, dá leite em fórmula, respondi, que se foda, que se foda, pensei, descendo as escadas, um hotel, isso, um quarto de hotel, a ideia se transformando em desejo de me ver sozinha num quarto onde pessoas independentes passam suas noites, a trabalho, a passeio, a TV ligada num canal qualquer, os lençóis com cheiro de nada, lisos como uma página em branco, umas fritas e um sanduíche meio revirado, uma cerveja de quem não está nem aí pro que corre nas próprias veias.

O Roberto com certeza não acreditava que eu pudesse fazer isso, que eu teria coragem de deixar a Lia sozinha, sozinha não, com ele, deixar a Lia sem mim, e isso me enchia de mais determinação, sim, sim, a seriedade da coisa crescendo, eu estava saindo de casa, eu estava indo embora. O tremor do carro ligando era uma continuação do meu, abri o portão da garagem, dei ré, esperei o portão fechar pro cachorro não sair, um dia ainda deixo esse portão aberto, odeio esse traste desse cachorro do Roberto, um hotel, avenida Paulista?, deve ter um mais perto, comecei a dirigir sem destino definido mas tentando me manter nas ruas mais movimentadas, que são o lugar onde deveria haver hotéis, não?, o Roberto já-já me liga, ou será que não vai ligar?, do jeito que ele é, capaz de não ligar, uma música tocava no rádio mas eu desliguei, era sério, era de verdade, sem música de fundo pra acentuar o drama. Hotel, hotel, filho da puta do Roberto, será que a Lia vai ficar bem?, as ruas vazias de domingo à noite, dirigi toda a avenida Cerro Corá e nada de hotel nenhum, pensei de novo na Lia, ela nem deve ter mudado de posição desde a hora que eu saí, será que o Roberto lembra que tem leite congelado?, ele não vai ser trouxa de não procurar, o celular, deixei uma mão no volante e com a outra procurei meu telefone na bolsa, não encontrei, no outro farol vermelho procurei com as duas mãos e não achei, e esquecer o celular em casa ao invés de me preocupar aumentou minha certeza de que eu queria estar a cada momento mais longe daquela casa, do Roberto, da Lia no berço, mas e se ela acordar logo?, ele não vai ter como falar comigo, o farol abriu e eu acelerei e virei à esquerda em uma rua mais iluminada, a Lia estava com o macacãozinho branco que a Rosa deu, no relógio do painel 21:22, ainda dormindo, provavelmente, há quanto tempo saí de casa?, uns vinte minutos?, ela ainda teria algum tempo de sono antes de acordar.

O que o Roberto faz nesse tempo? No que está pensando? Sente minha falta? Sente raiva? Não encontro hotel algum na rua mais iluminada, eu nunca reparei que não há hotéis próximos à minha casa. Meu peito segue igual, confiro, sem formigamentos. O Roberto deve ter tentado me ligar. Viro à direita. A Lia deve ter mudado de posição. Recomeço a chorar. Volto? Não, preciso de um hotel. O Roberto deve ter visto meu celular na cômoda da cama, sabe que estou inalcançável. Poderei ser punida por isso? Abandono de lar? Abandono de filha que só mama no peito? Existe um crime assim, estabelecido no código penal? Impressionante como não há hotéis em São Paulo. Entro à direita na Pedroso de Moraes. 21:31. Deve fazer uma meia hora que estou rodando pela cidade, sem sair muito do meu bairro. Que ridícula, pensei, chorando. Que ridículo querer sair da minha vida. Que ridícula a minha vida. Paro no farol. Uma moça de uns trinta anos — guarda-chuva fechado na mão direita, cabelo preto solto, óculos — cruza na faixa de pedestres à minha frente. Invejo sua vida, andando na rua numa noite de domingo. O farol abre e eu sigo. Um hotel, vejo, à direita na Pedroso. Paro na frente, na vaga de táxi. Percebo que estou de óculos, descabelada e com os olhos inchados. A Lia nem deve saber ainda que a mãe dela não está em casa. Tem quarto vago para hoje? Estacionamento?

— Sim. A diária é 269 reais. Estacionamento gratuito. O café da manhã é servido das 6 às 10h.

— Quero ser despertada às 7h, por favor. Estou sem celular.

Como se interessasse a essa mulher saber que estou sem celular. A Lia sentiria minha falta se eu desaparecesse de vez?

— Quarto 510, aqui está o cartão e o controle da TV.

No espelho do elevador, desvio o olhar dos meus olhos inchados. O chão é quadriculado, como deve ser todo piso de elevador de hotel. Qualquer pessoa sentiria alívio diante dessa previsibilidade, menos eu.

No quarto, tiro a calça jeans, faço xixi, desligo a TV, que tinha ligado sozinha quando a luz se acendeu, e deito. O plano é dormir, dormir, dormir até ser despertada pelo toque desconhecido do telefone me avisando já ser 7h. Meu cansaço é suficiente para apagar, mas ao fechar os olhos percebo que minha respiração está ofegante e meu coração bate rápido, como se eu tivesse completado uma maratona. Sinto vontade de correr, sair à toda seguindo o rastro, a velocidade da minha cabeça, mas meu corpo segue estatelado nesta cama de hotel. Imagino como seria me ver de cima, o corpo virado para o lado, um travesseiro entre minha cabeça e a cama, outro entre minhas pernas, encostando na minha barriga — hábito que sobrou da gravidez, quando o peso da barriga pedia uma almofada debaixo dela; de cima, aparento estar dormindo, os olhos fechados, mas estou em plena velocidade e meu corpo segue aqui. A gravidez da Lia, a alegria da notícia. E se eu corresse de verdade, pra longe? Deixar este hotel é fácil, se já deixei minha casa. Era estranho, no começo eu parecia estar imune a tudo e meu próprio medo me protegia. Onde foi parar aquela certeza? A Lia ainda não tem lembranças fixadas, em poucos dias se esqueceria de mim. Meu estômago dói. O Roberto se importaria? Se sentiria abandonado? Abandonar. Terminariam as noites em que ele não dorme na cama, em que adormece no sofá. Será que a Lia acordou? As brigas também. Meu peito ainda não encheu. Não tenho relógio para saber que horas são. Que diferença faria? Se eu levantar para ver as horas na TV, levanto para ir embora. O tapete do quarto é áspero sob meus pés. Na TV só aparece o horário da Califórnia, faço as contas. Por que não ajustaram para o horário daqui? Se eu for embora sem pagar, a mulher da recepção vem atrás de mim. Vou deixar meu carro no estacionamento, vale mais que a diária deste hotel. Está de noite, mas o café da manhã já está servido. As cortinas do restaurante do hotel estão suspensas e a noite de São Paulo tem uma névoa que entra. Um homem se serve de leite e pede chá, deve ser inglês. A Inglaterra seria um bom lugar. Com o valor do carro, daria primeira classe de avião, mas preciso comprar a passagem e a essa hora ainda não tem nada aberto. Sem celular não consigo comprar pela internet, se eu pedir acesso à recepcionista ela vai descobrir que estou fugindo. Melhor fugir antes, e quando vejo estou na rua. Nunca havia reparado que os faróis tremem na noite, mas há poucos, tudo escuro, e o choro de bebê que escuto deve ser de algum desses apartamentos, e é melhor correr. O túnel da Rebouças chega rápido, as coisas de repente são próximas e estranhas, diferentes de como eu as vi até hoje. Como chego em outra cidade?, pergunto à mulher de óculos que atravessa a faixa de pedestres. Vejo que ela não tem medo. Mas ela não fala comigo. O túnel tem uma porta na passarela de pedestres, se é a porta de chegar é também a porta de sair, mas o bebê continua chorando, o Roberto foi preso e a Lia ficou sozinha e o choro aumenta e o choro é dela e eu acordo com o coração ainda acelerado na mesma posição na cama do quarto do hotel. Meu peito enche de leite. A Lia. Ligo a TV, 00:27, horário de Brasília. Desço até a recepção, sem bagagem. Preciso esperar o funcionário checar se não consumi nada do frigobar. Já não é a recepcionista que me atendeu quando cheguei, mas um homem. Não olho para a cara dele, nem quando ele diz que está tudo certo, me acompanha até o estacionamento e me entrega a chave. Vejo meu celular no chão do carro, na frente do banco do passageiro, onde por hábito coloco minha bolsa. A Lia já tomou leite? O Roberto teria coragem de dar outra coisa pra ela, suco de laranja, leite de vaca? Mensagem do Roberto na tela, enviada há uma hora: “Arrumei minhas coisas e fui embora. A casa está sozinha.” Lia sozinha? Arranco com o carro e atravesso todos os faróis vermelhos no caminho até em casa. Do portão, vejo as luzes acesas. Subo correndo. Vejo do corredor meu pijama azul jogado no chão. Lia está no seu quarto, no colo do Roberto, acordada. Sorri sonolenta para mim. Ela já mamou, o Roberto diz, me mostrando a mamadeira vazia. Mesmo assim, pego-a no colo, quente, macia, pequena, aninho-a em mim e coloco em sua boca meu mamilo túrgido.

Ela suga um pouco antes de adormecer.

 

 

Natalia Timerman

Nasceu em 1981, em São Paulo (SP). É médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela USP. Publicou Desterros: histórias de um hospital-prisão (2017) e a coletânea de contos Rachaduras (2019), finalista do prêmio Jabuti. É autora dos romances Copo vazio (2021) e As pequenas chances (2023).

Rascunho