No meio do mar

Quem, no pórtico deste majestoso poema de Castro Alves que é O navio negreiro, está em pleno mar? Todos nós
01/04/2001

‘Stamos em pleno mar … Doudo no espaço
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm … cansam
Como turba de infantes inquieta.

Quem, no pórtico deste majestoso poema de Castro Alves que é O navio negreiro, está em pleno mar? Todos nós. Um mar ao mesmo tempo real e imaginário invade o local da leitura e rodeia o leitor com a sua evidência e imensidão. A capacidade que tem Castro Alves de envolver o leitor, arrastá-lo em vertiginosa torrente lírica, embalá-lo musicalmente como se ele estivesse boiando entre as ondas, surge e se impõe neste poema desde a aférise inicial. Com efeito, a ablação do primeiro fonema confere ao verso um ritmo mais apressado, uma velocidade de navio que corta as águas e sulca as ondas. Nós, leitores, nos sentimos no meio do mar:

‘Stamos em pleno mar … Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro …
O mar em troca acende as ardentias
— Constelações de líquido tesouro.

É um mar noturno. É um céu tropical. O poeta que festeja as matas brasileiras se utiliza de uma imagem terrestre, e o luar voa entre as vagas como uma dourada borboleta; e a comparação tem algo de lúdico e matinal que contrasta com a presença da noite. Esta abarca oceano e firmamento, convertendo as estrelas em “espumas de ouro” e as fosforescências marítimas em constelações. A magia verbal de Castro Alves esplende, acesa, como um farol, na escuridão da noite que é a soma de dois infinitos.

Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?

Estabelecido o cenário de uma imensidade somada, Castro Alves introduz o personagem do poema:

‘Stamos em pleno mar … Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas.
Veleiro brigue corre à flor das mares
Como roçam na vaga as andorinhas.

Observe-se a comparação do veleiro a uma andorinha, numa remissão afortunada, incumbida de legitimar a imagem inicial. Na terceira estrofe, as interrogações se sucedem.

Donde vem? … Onde vai? … Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam.
Galopam, voam, mas não deixam traço.

O processo comparativo alcança a sua tensão mais alta nos versos em que o oceano se estende como um deserto e os navios são corcéis. A identificação do navio se arrima, também, num contraste. A invocação à brisa, ao rumor das vagas, aos marinheiros “Tostados pelo sol dos quatro mundos!” estabelece um clima estonteante e até apoteótico que será desmentido no desenvolvimento do poema. Para identificar esse barco ligeiro e fugidio, Castro Alves reclama o auxílio formidável:

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazes,
Sacode as penas, Levita no espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas …

Neste poema dividido em seis blocos, aos decassílabos do bloco inicial sucedem os septassílabos do segundo. A redondilha maior, ritmo seminal de nossa língua poética, assegura a esse trecho de O navio negreiro não apenas um ritmo, mas uma atmosfera embaladora.

Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!

profere o poeta, como se o mar imenso coubesse na moldura lacônica de uma redondilha e não necessitasse, para ser expresso em todo o seu esplendor, de versos mais largos e ambiciosos, como o decassílabo ou o alexandrino. Este segundo bloco é uma espécie de ilha langorosa. Nele, várias nacionalidades são invocadas: e esse desfile, do inglês, do italiano, do francês e dos gregos, aponta para uma das características fundamentais de Castro Alves. O exotismo ou cosmopolitismo é um dos componentes mais visíveis do Romantismo; e não deixa de ser singular que, em sua geração, só Castro Alves tenha enveredado por essa vertente universalista. Ao longo de sua obra, sobejam as referências a outras terras, a outros países, a outras civilizações, — o que, se de um lado atesta a voracidade com que ele se abeberava em Victor Hugo, especialmente em La Légende des Siècles, por outro realça o seu pendor pessoal para recolher em sua poesia a largueza e a diversidade do mundo.

Observe-se que é a um albatroz, sobrinho de um dos albatrozes que pairam no vasto céu poético de Victor Hugo, e primo germano do albatroz baudelaireano,  que o poeta recorre no terceiro bloco para identificar o brigue sorrateiro.

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais … não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu ali … que quadro de amarguras!
Que cena funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil! Meu Deus! meu Deus! Que horror!

O verso de doze sílabas, o alexandrino portentoso, substitui a redondilha, numa estrofe de seis versos que é a abertura do espetáculo de horror a ser apresentado. A mudança indica que a estrutura do poema repousa na variedade de seus movimentos — cada um correspondendo a um instante musical, a um episódio temático e melódico que, iniciado com a descrição da imensidade marinha, avança para a cena de horror concentrada num navio negreiro, numa realidade comparada a um sonho dantesco.

No quarto bloco, cada dístico em decassílabo é amenizado pela alternância de um verso de seis sílabas — e o descanso rítmico mais aviva o desfile horrendo. A figuração do deserto como um “oceano de pó” remete à imagem anterior em que o oceano é comparado a um Saara.

Jamais, em toda a poesia brasileira, a voz da indignação clamou tão alto como no quinto bloco de O navio negreiro, quando Castro Alves encaminha a sua imprecação ao “Senhor Deus dos desgraçados”.

Desta vez, a redondilha usada não é um remanso, uma langorosa enseada rítmica, senão uma catadupa de interrogações e exclamações candentes.

A invocação à bandeira nacional, nesse último bloco em que a censura desmedida se alça à condição de um triunfo, confere ao poema uma feição sinfônica. É a culminação de um crescendo, a abertura de um estuário rítmico e metafórico que recolhe todas as virtudes impetuosas do gênio lírico e épico de Castro Alves.

É O navio negreiro um poema fosforescente. Nele se alteram as cambiâncias de luz e escuridão, sol e noite; e a riqueza da imagística marinha não deixa dúvida sobre as fontes em que o poeta se abeberou, somando ao seu gênio nativo uma enriquecedora lição preclara. O grande poema de Victor Hugo Plein mer, de La Legende des Siècles, é, a meu ver, a fonte enorme em que Castro Alves se nutriu seminalmente. Note-se o primeiro verso:

‘Stamos em pleno mar … Doudo no espaço.

Em Victor Hugo temos a visão do Leviatã, a grande e fantástica nau apodrecida. E o metafórico Castro Alves, ao invocar o albatroz, chama-lhe Leviatã do espaço. O clima da aparição insólita que suscita perguntas e imprecações é o mesmo, e igual a profusão de analogias e metáforas torrenciais. E é exatamente a impregnação hugoana que diferencia Castro Alves dos seus comparsas da revolução romântica, dos quais se distancia pelo incomparável ímpeto épico, pela alegria que o afasta da tristeza e taciturnidade. Quando clama e deplora, jamais é lamuriento. Se chora, é com os olhos enxutos. Se se queixa, é com uma voz altiva e desafiadora que ecoa em futuro e esperança. O salto vertiginoso que dá, do íntimo e subjetivo ao político e social, inexiste em seus companheiros. Assim Castro Alves vai do leito amoroso para a praça, e da praça volta para a cama cálida dos seus amores e desamores, na qual expande a sua sensualidade de tuberculoso. É um entrar e sair desembaraçado. O sentimento do mundo e da História não se contenta com a visão do horizonte abarcado num olhar ou remígio de águia ou de albatroz, ultrapassa o que um condor pode ver das alturas. Corresponde também a uma aspiração de mudança. Il faut changer la vie — clamava o Rimbaud que escrever esse “Bateau ivre” tão largamente haurido no poema Plein mer de Victor Hugo. O seu anti-escravismo e convicção republicana fazem de muitos de seus poemas verdadeiros cânticos de cidadania, em desenvolta visão política engrandecida pela presença da utopia e da imaginaridade do porvir.

‘Stamos em pleno mar …

Quem está em pleno mar? Todos nós, os que o leram e ouviram na dicção inaugural, e os que ora participam da leitura inextinguível. Engastado no verbo plural está o poeta com o seu eu pleno e abrangente, o seu eu de vozes múltiplas que nos convida, a nós que somos os outros, para a descoberta e reflexão do mundo.

A fundação do Romantismo correspondeu ao descobrimento e exploração da personalidade intransferível, de um eu que vai desde o desejo de apreensão total do mundo e da realidade até a proclamação da recusa social e da proscrição, das partilhas e identificações mais generosas até o enclausuramento que funda solidões. Nesse eu que ora se retrai e ora se expande, engasta-se ainda o eu intertextual: o eu das imitações e paródias, dos empréstimos e paráfrases, das incursões proveitosas ou rapinantes a outras terras e eus, até dos plágios escandalosos. O Romantismo muito espigou em searas alheias, e a sua bibliografia, plantada no princípio da originalidade e singularidade, é um imenso armazém de apropriações que nada fica a dever ao princípio da imitação seguido pelos clássicos. Os românticos roubam até o vento. O simoun que dardeja como um chicote em Vozes d’África, Castro Alves foi buscá-lo decerto no poema Plein ciel de Victor Hugo, o qual, em outras ocasiões, lhe forneceu o voluptuoso orientalismo que orna tantas de suas poesias.

Mas estas e outras incontáveis incursões de Castro Alves no universo da leitura, da Bíblia a Byron e Lamartine, de Heine a Espronceda, hão de indicar, nesse poeta de sensibilidade à flor da pele, que a criação poética é, fundamentalmente, um problema de cultura. Castro Alves foi um poeta culto — e eu diria, mesmo, extremamente culto e bem informado sobre a grande revolução romântica que se operava no seu tempo. E, como os românticos de primeira linha, foi um primoroso e exigente artista do verso e do poema.

Estamos em pleno mar. Diante de nós passa o navio dos sem-terra, dos sem-teto, dos miseráveis e excluídos.

Hoje, como ontem, estamos em pleno mar, à espera de Castro Alves.

Lêdo Ivo
Rascunho