Se esta fosse uma história de terror, a assassina seria a professora de yoga. Se este fosse um roteiro para um filme de mistério, no momento em que abri a porta uma musiquinha de fundo ia fazer com que um frio subisse pela espinha do espectador. Foi isso, exatamente isso, o que pensei quando vi a professora parada na minha porta naquele domingo de manhã. Era cedo (gosto de acordar junto com o dia) quando fui colocar o lixo no corredor. O café ainda passando pela cafeteira, o pijama ainda no corpo, os pés ainda descalços. Era ainda para tudo naquela hora da manhã. Mas ela já estava lá, sentada no chão do corredor, os olhos fundos, um casaco de moletom fechado até o pescoço. Fazia calor, me lembro do clima abafado, mas ela vestia o capuz e tinha as mangas puxadas até o início dos dedos.
Devia ter fechado a porta assim que vi a cena. Teria dado tempo e, para algumas situações, a educação é um atraso dos grandes. Mas fiquei sem ação por um momento. Ela levantou em um pulo, agarrando uma mochila com as duas mãos.
— Preciso ir no seu quintal — foi só isso o que disse e foi entrando no apartamento como se conhecesse o lugar de outras visitas.
Moro em um apartamento térreo, bem no centro de Copacabana. Chamar o espaço dos fundos de quintal é exagero, mas toda a graça está em uma pequena portinha branca, que liga o edifício a um pedaço da Mata Atlântica do Rio de Janeiro. Quem passa caminhando pela entrada da rua nem pode imaginar a quantidade de verde que há ali pra cima. Todo o som das buzinas, o barulho dos carros, o cheiro que sai dos canos de descarga, as pessoas passando, o comércio, os ambulantes, os meninos de rua, as crianças com uniforme de escola, as mulheres com carrinhos de feira, os homens segurando sacolas de compras, os rapazes de bicicleta… Tudo isso fica para trás, depois de alguns passos no interior da rua. Pouca gente sabe. Mas ela sabia.
Comentei o nome da minha rua no primeiro dia de aula e vi que me olhou surpresa, deixou o sorriso cair do rosto e ficou com aqueles olhos parados na minha direção. Naquele domingo de manhã, segurando a mochila com as duas mãos, tinha achado a minha casa. Por algum motivo, pressentiu a presença da portinha branca, tão pequena, mais baixa do que as portas normais. Com passos decididos, foi direto até ela. Antes mesmo que eu oferecesse um café, antes que pudesse dar bom-dia. Antes…
Vi quando girou o trinco e abriu a porta. Vi, depois de conseguir me mexer, que, ajoelhada em frente a uma árvore, tentava fazer um buraco no chão. Aquilo que estava dentro da mochila, e nem ouso botar aqui as tantas coisas que já imaginei terem saído daquela bolsa, embrulhado em um pano branco, foi colocado dentro da terra, que, depois de espalhada, voltou para o mesmo lugar. Acho que ela fez uma prece. Acho que a vi beijando as folhas ou talvez cuspisse no chão. Foi tudo rápido, muito mais rápido do que eu conseguia absorver àquela hora da manhã.
Depois de alguns minutos, já estava fora de casa.
— Até amanhã, Lúcia — ela falou, já com um esboço de sorriso no rosto. — Amanhã, vai ser tudo melhor.
E saiu leve pela escada. Deixando todo o peso para trás. Meus pés ficaram esquecidos no topo daqueles degraus por um tempo e meus olhos viram ela se afastar, até virar a esquina.
— E ela andava mais leve? Você achou? Tirou o casaco ou ainda parecia sentir frio?
— Como uma pluma. Com os ombros à mostra. O cabelo balançando com o vento.
— Mas não estava abafado, Lúcia? Lembro que você tinha dito que estava abafado.
Levantei os ombros como quem não dá muita importância e retirei a xícara de chá da mão da minha vizinha. Vi quando ela soltou o ar pela boca e num sussurro quase inaudível disse: “Então, foi por isso”.
Teresa mora no apartamento da frente. Ouvia o barulho de música nos sábados à noite. Vejo quando sai aos domingos com o cachorro. Acompanhava quando passeava de mãos dadas com o marido. O rapaz das passadas sossegadas, dos óculos de aros escuros e o sorriso que só saía quando olhava para ela. Percebi quando as risadas cessaram, quando a música deixou de tocar e as passadas tranquilas deixaram de circular pelo corredor. O bom-dia alegre dando lugar para os olhos fundos e o rosto cansado.
Tentei animar. Deixei um livro sob o tapete e vi que ela pegou meio desconcertada antes de entrar no apartamento. Nunca disse que tinha sido eu, mas Teresa sabia. Tenho certeza que sim, porque passou a me convidar para uma xícara de café vez ou outra.
Seu apartamento tinha cheiro de incenso, sofás brancos, plantas que escalavam as paredes da varanda e uma estante cheias de livros. O meu estava lá, com um marcador separando um bolo de páginas. Passou a procurar quem lia a sorte, ela me contou. Já tinha feito o mapa astral, jogado tarô umas tantas vezes e todo fim de semana de manhã tomava banhos de mar, o sal tirando tudo do corpo, o sol esquentando tudo por dentro.
Estava melhor. Muito melhor, mas os olhos cansados não deixavam o seu rosto e, quando eu passava em frente à sua porta na volta das compras, às vezes, escutava um choro abafado de quem tenta prender os soluços com as mãos.
Dessa vez, tinha chamado ela para dentro com a desculpa do chá.
— Precisamos tirar!
Fingi que não tinha escutado e continuei caminhando até a pia, mas ela já tinha se levantado, ia até a portinha branca.
— Onde, Lúcia? Abre essa porta! Precisamos tirar.
Expliquei que tinha perdido a chave não sei onde. Talvez a faxineira tivesse levado por engano para a casa, mas que, na semana que vem, traria de volta.
— Você, jura? Jura, Lúcia, que na semana que vem vamos tirar o que quer que seja que essa professora tenha botado no nosso prédio? Está se espalhando. Tenho certeza. Está se espalhando. Sabe-se lá o que mais pode acontecer.
Fiz que sim com a cabeça. Por um momento, achei que ela pularia o muro, mas aceitou minha resposta e voltou, com passos nervosos, para casa.
Com as pontas dos dedos, eu senti a chave pequena no fundo do bolso. Não sei se consegui disfarçar o sorriso.