…fui entrevistá-lo graças a sua própria decadência, seus livros vendiam cada vez menos e alguns nem eram mais publicados. Por que, Paulo, perguntei, e ele: sei eu?! Só aceitei te dar entrevista, falou, porque você me enviou aquele artigo falando bem de minha obra há anos. Na verdade, falei, no artigo apenas digo que você levou muita paulada por despeito e preconceito, de uma imprensa que, por exemplo, nem se digna a divulgar livros infanto-juvenis e discrimina a auto-ajuda, enquanto é também cega para a carência ética na literatura, embora cobre ética dos políticos.
Pois é, disse ele, você falou mal até de Machado… E esclareci que apenas apontei ser o “grande gênio” um grande monstro ético, conforme Manuel Bandeira, e um maçante, conforme Millôr Fernandes; conforme eu mesmo, um escravagista, elitista, machista e cultuador de vigaristas, como seus protagonistas Brás Cubas e Bentinho. E os mesmos que não enxergam as monstruosidades de Machado, falei, malharam você por focar gente boa fazendo coisas boas e querendo melhorar. Ele sorriu, e continuou sorrindo enquanto falei que sua literatura centra-se na ética, Paulo, e a ética, para a intelectualidade brasileira, como para os políticos, é só para discurso.
Bem, ele falou, vamos à entrevista, e seu sorriso morreu quando fiz a primeira pergunta: no Diário de um mago, há um trecho em que o protagonista se exercita andando em câmera lentíssima, o que é um exercício antigo de teatro, e, em O alquimista, também há passagens que parecem literatura árabe requentada. Vários outros livros seus, continuei, partem de textos ou vivências alheias, o que parece fazer de você mais um recriador que um criador, não? Não sei, ele respondeu, depois de ficar tempo olhando através de mim. Acho que sim, emendou, daí me encarando como se fosse falar mais alguma coisa, mas não falou, como se aceitando o que falei.
Fiz a segunda pergunta esperando resposta menos monossilábica: como o desgaste de tudo é inevitável e a seleção é natural, quais os livros seus que ficarão? Você já citou dois, ele falou, e o terceiro… não sei. O Monte Cinco é que não será, falei, aquilo é uma grossa chatice. Ele sorriu triste, depois disse é, eu não escreveria de novo muito do que escrevi. Arrependido, então?, falei, e ele disse não, arrependido não, porque escrevi sempre com o coração. Mas então o que mudou, perguntei, o coração? A visão, ele falou, e eu falei eis Paulo Coelho, sempre manejando conceitos de auto-ajuda, imperdoável para quem acha auto-ajuda coisa apenas comercial.
Mas as parábolas de Jesus são auto-ajuda, falei, e ele emendou: o Alcorão também, e Confúcio; e Esopo, acrescentei, e ele acrescentou os Irmãos Grimm, e La Fontaine, e todas as autobiografias, pois o que o sujeito pretende ao escrever a própria vida, senão entender-se e ajudar os outros a entender a vida? Muitos também escrevem por vaidade, para se verem no papel como num espelho, pensei mas não falei; e ele como que adivinhou, faiscando o olhar antes de dizer: terceira pergunta?
A imprensa, falei, separou ficção de auto-ajuda, nas listas de livros mais vendidos, porque senão a lista ficaria apenas de auto-ajuda. A mesma imprensa que quer vender mais suas próprias revistas e jornais não aceita que um setor livreiro venda mais que o outro. E, de vez em quando, canaliza essa raiva contra um Augusto Cury da vida, como fez também com Paulo Coelho. Mas se quiser aumentar suas vendas, a imprensa não teria de entender e atender a essa gente cultuadora de Curys e Coelhos?
Paulo Coelho ficou me olhando e finalmente disse que a resposta já estava na pergunta. Quarta pergunta, comandou. Perguntei: já leu Paulo Setúbal? Quem? Paulo Setúbal, falei, foi o autor mais lido no começo do século passado, também foi da Academia, suas obras completas foram publicadas em capa dura, mas hoje quase ninguém mais lê. No megasebo Estante Virtual, Paulo, você tem dez vezes mais livros que ele. Ele de novo ficou olhando através de mim, até dizer bom, peguei o ponto, mas… não ficou nada do Paulo Setúbal?
Uma música com letra dele, falei, foi tema de novela da Globo. É, ele falou, de tudo fica um pouco, né, como disse o poeta. Que poeta, perguntei brincando, e rimos. Daí ele perguntou se eu aceitava tomar um rosé em vez de tinto, porque, com a idade, estava voltando a tomar rosé como na juventude… e concordei, pensando na palavra concordar, que vem de cordis, coração, e assim, já sem pensar no passado nem tentando antever o futuro, bebemos o momento, até que, de repente, ele lacrimejou, enxugou os olhos com os dedos, daí explicou que estava pensando em Paulo… Setúbal.