A solidão é uma revolta e uma aceitação do absurdo.
Thomas Merton
10.04.2008 (quinta-feira)
Quando se faz as perguntas certas as respostas podem vir de lugares que ninguém imagina.
Por exemplo: você se pergunta em 2008 se está ficando lelé da cuca e a resposta vem lá de 1961: Ficando não, sempre foi, como todos os demais. A diferença é que agora você está tomando consciência disso. Mas não se preocupe, pelo menos você nunca despejou toneladas de bombas e gasolina gelatinosa sobre alguma cidade matando mais de 135 mil pessoas em nome de Deus, da Pátria e da Civilização.
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A cadela continua por aqui. Pulou em cima de mim, fazendo festa, quando abri a porta do quarto pela manhã. Dei-lhe um nome: Montana. Em homenagem a uma atriz pornô sequestrada por tralfamadorianos.
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Talvez, em algum momento, este diário se transforme naquilo que os críticos, o público e os próprios escritores chamam de romance. Não seria má ideia. Seria sobre um poeta que resolve pedir demissão do emprego e se refugiar por dois meses sozinho numa casa de praia. Acaba descobrindo que está ficando lelé da cuca — como todo mundo. O livro faria muito sucesso no Brasil, seria traduzido para 37 idiomas, inclusive o inglês, adaptado para o cinema, com direção de Sean Penn, o roteiro valeria um Oscar, eu faturaria 7 milhões de dólares e poderia comprar uma casa na praia sem morcegos no forro.
Nada mal, nada mal. Vou pensar na possibilidade. Vou pensar seriamente, mais tarde. Agora preciso preparar meu próprio almoço.
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Montana se foi e deixou uma pulga que acabei de esmagar com o polegar e o indicador. Pensei um pouco enquanto preparava o almoço e resolvi mesmo transformar este diário num romance, seja lá o que isso signifique. Alguns milhões de dólares não me fariam mal. Vou fazer a minha parte. Deus e Sean Penn que façam a parte deles.
O romance começa assim: um raio rachou o céu de ponta a ponta e seu estrondo ecoou durante 37 segundos, no ano de 2008, na Praia Brava. Quando o raio estourou, há milhares de anos, a Praia Brava não era como é hoje em dia, nem tinha esse nome, simplesmente porque não havia ninguém na face da terra para dar-lhe um nome.
Estava rolando uma tremenda guerra no Céu. Num surto de megalomania, Deus resolveu criar o universo e no centro dele colocar uma espécie que chamaria de espécie humana. Uma legião de Querubins, Serafins e anjos menores era contra a ideia. Os anjos diziam que Deus havia surtado e que a ideia da criação de uma espécie chamada humana daria numa grande merda.
— Vocês estão errados — disse Deus. — Eu criarei essa espécie à minha própria imagem e semelhança.
— Então. Vai dar merda — retrucou Lúcifer, líder da legião dissidente.
Lúcifer era um estrategista de primeira, muito lúcido e bem-humorado, um fanfarrão, mas ainda desconhecia, naquele tempo, o profundo mau humor de Deus.
Deus considerou a pilhéria de Lúcifer uma ofensa capital. Enfurecido, expulsou todos os anjos dissidentes do Céu. Houve uma revoada de anjos caídos. Eles despencaram do Céu diretamente para um lugar que passou a ser chamado de Inferno.
Os homenzinhos e mulherzinhas de Tralfamador assistiam à cena extasiados, como se estivessem diante de uma peça shakespeariana, dirigida por Antunes Filho. É claro que nem Shakespeare nem Antunes Filho existiam nessa época e se existissem não significariam absolutamente nada para os habitantes de Tralfamador.
O narrador do romance será Kurt Vonnegut, um replicante Zircon-212 criado a partir de células-tronco de Marlon Brando, Joseph Conrad e Francis Ford Coppola. Kurt escreveu muitos livros e foi um dos poucos sobreviventes do bombardeio que destruiu a cidade de Dresden durante a Segunda Guerra Mundial. Não teve a oportunidade de presenciar a batalha original no Céu mas se estivesse lá certamente seria aliado dos anjos rebeldes e diria a Deus que a criação da espécie humana daria numa grande merda. Sua opinião não seria ouvida e ele também seria deportado para os quintos dos Infernos, junto com todos os anjos caídos, onde fatalmente, mais cedo ou mais tarde, encontraria Dante Alighieri.
Kurt escreveu um romance que termina com um passarinho perguntando para Billy Pilgrim: piu, piu, piu? Este aqui vai terminar com algo como: a chave está no matadouro 5. Ainda não decidi qual chave e nem para que ela serve. Vou pensar nisso mais tarde. Mas entendam como uma dica para os resenhistas e críticos literários da USP e da UFRJ, discípulos de Antonio Candido e de Flora Sussekind. Para o crítico Paulo Franchetti, da Unicamp, não darei dica nem chave nenhuma, pois sei que ele detesta tudo o que escrevo. Piu, piu, piu.
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Outra coisa: este romance vai incorporar vários acontecimentos (não todos) que estão acontecendo enquanto ele é escrito. Por exemplo: acabou de despencar uma jaca no meio do quintal de Mata Atlântica e eu voltei a sentir um calafrio de ponta a ponta da espinha. O barulho me assustou. Não pense que é moleza ficar sozinho numa casa sem morcegos no meio de uma pequena Mata Atlântica, longe dos acontecimentos. Pedir demissão do emprego é fácil, mas ficar sozinho nesta casa, não. Se algo me acontecer, mais cedo ou mais tarde todos vão saber. Se o mundo acabar eu também ficarei sabendo, mais cedo ou mais tarde.
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Para os menos atentos este romance é sobre um poeta que estava ficando lelé da cuca e resolveu se isolar numa praia, longe dos acontecimentos.
Essa é a merda. Quando alguém resolve falar ou escrever ou mesmo ficar quieto num canto, geralmente é mal interpretado.
Mas eu vou gritar com toda a força dos meus pulmões: NÃO É NADA DISSO. ESTE ROMANCE É SOBRE O TEMPO. ENTENDEU?
Eu e Billy Pilgrim sabemos que há muitas coisas acontecendo em Nova York, Paris, Istambul, Nova Dheli, Frankfurt, Viena, Diamantina, Turim, Bruxelas, Bagdá, Jerusalém, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, mas, neste momento, eu simplesmente estou bebendo uma cerveja e fumando um cigarro numa praia, longe dos acontecimentos.
Montana não voltou e eu sinto saudades do besouro gordão e todo verde-metálico.
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O segundo capítulo do romance será bem curto e lacônico. Assim:
Confrontando-se com o Arcanjo Miguel, ao som de um blues de Robert Johnson, num tribunal em zona neutra, Lúcifer diz: Deus é chato e previsível pra cacete.
— Previsível? Jamais. Qual Pai condenaria seu próprio Filho à morte na Cruz? — retruca Miguel.
— Então, acrescenta aí — diz Lúcifer, se dirigindo ao escrivão do tribunal: — Ele é também um maníaco cruel.