Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, reúne poemas sob diversos enfoques, nos quais um eu lírico, carregado de lembranças e projeções futuras num tempo presente, movimenta-se. Por vezes, surpreende-nos, e por outras, é movido por uma serenidade inabalável. Esta parece comprometida em Nirvana, por exemplo: “— Quebraram meu Buda japonês/ e um árduo desejo de vingança… Crença e descrença, ruídos e silêncios, luzes e sombras, amor e desamor, paz e inquietações negociam espaços e sentidos”.
Apesar da advertência: “Esqueça a palavra —”, ela é o veículo de uma busca, “use da palavra apenas/ seu grau de sugestão de vida/ (mesmo sendo o índice/ da sua morte). Entre a palavra e o silêncio transita o ensaio de vozes que dialogam entre si, aproximando tempos e espaços, aparentemente, distanciados. É quando a poesia flui “testando a voz” de um sujeito lírico despretensioso, mas atento ao seu tempo e a outras vozes que alimentam sonhos e sentidos precários, mas indispensáveis para se seguir adiante. Como sinaliza o poema Promessa: “O prato da casa/ é a sobrevivência, então/ (…) continuo de pé. Um joão-bobo,/ um náufrago de pança inchada/ subsistindo de sol a sol.”
A lírica aqui retoma sua forte marca musical, dentre outras referências. A linguagem verbal da palavra escorregadia, na sua flagrante insuficiência, apela para outras, como a musical, cinematográfica, teatral e corporal nas quais a pausa, o silêncio e o nonsense potencializam a construção de sentidos. Em Para voz e piano, o que mais dizer se “quando não se espera que ele venha,/ (…)/ ele surge à porta/ no meio da festa…” Um Ele que não só adentra pela porta, é o objeto de um amor desmistificado das promessas românticas, mas como fato inquestionável se faz presente. No mais, tudo são “cantares” que estabelecem seus fios e desafios de leitura.
Em Anjos, as imagens cinematográficas de Wim Wenders passam por uma releitura, ou melhor, socorrem as palavras na busca de uma “beleza em câmara lenta” que expressem o desejo de nossa humanidade, invejada pelos anjos que com suas asas sobrevoavam o céu de Berlim, mas que se ausentam nesse nosso presente de século 21. “Onde estão os anjos bonitos,/ os anjos de Wim Wenders?”
Aspectos afetivos
A mutilação das meninas da Somália, denunciada e dramatizada no filme Flor do deserto, encontra nas palavras a expressão de indignação frente a uma realidade cruel, inacreditavelmente, presente Neste mesmo mundo em que vivemos. Os títulos, como este, conduzem a leitura para além da moldura da folha do poema, para aquém e além da paisagem descrita em seus detalhes concretos e físicos, mas infinitamente amplos em seus aspectos afetivos e estéticos.
Em notas fica explicitado o diálogo com Drummond, Bandeira, João Cabral, Tom Jobim, Hilda Hilst. Da mesma forma, dedicatórias, epígrafes e outras referências ampliam esse leque. W. S. Merwin, Leonardo Cohen, Thom Yorke participam com epígrafes, sutilmente, da estrutura do livro, dividindo-o em três partes. Assim, o “eu” lírico estabelece o diálogo com vozes de tempos e espaços diversos. Destacam-se tantos os interlocutores presentes na vida cotidiana, quanto outros que já se foram e parecem se cristalizar na memória ou na paisagem, como aquele “Enterrado no ventre/ de uma montanha, desgarrado num meteorito/ daqui a alguns milênios…”
Toda essa polifonia e carnavalização exigem que o sujeito retome o seu eixo em uma espécie de “carnaval ao contrário”. Que seria isso? “Lavar o rosto, desaprender o samba/enredo. Cuidar para que os pés/toquem, apenas, esta avenida.” E, provavelmente, recriar a própria voz, naquela folia íntima da solidão necessária ao ofício poético.
A memória passeia pela cidade, trazendo fragmentos e imagens de velhos tempos: Em Papelaria União, por exemplo, “Era onde eu comprava os meus cadernos/ O centro da cidade era o nosso quintal”. As fotografias e os fotogramas de lembranças de uma Cinelândia, que há muito deixou de ser a praça de cinemas, compõem o poema e as reminiscências. Os cadernos da infância ligam o passado da menina ao presente da escritora, cadernos feitos para anotar “ali nosso futuro em versos/ verdes, duma confiança irrefletida”, incapazes, contudo, de prever os anúncios de um outono por vir.
O teatro de luzes e sombras com suas máscaras e disfarces permeia as palavras em Nada consta e Parque dos cervos, entre outros. “As coisas vão bem, de modo geral,/ disfarçadamente bem. Perucas, bigodes postiços.” As máscaras e os disfarcem servem para fazer suportar a verdade nua e crua: “Essa luz medonha que se esfrega/ na sua cara, o quanto você não daria/por um instante de penumbra?”.
A linguagem corporal estabelece sua fala nas necessidades mais urgentes, alia-se às imagens, aos gestos, e a todos os sentidos: olhos, pele, ouvidos, bocas, e suas relações com o mundo e com a natureza. “Seu corpo encolhido no próprio excesso,/ brotando inábil dos seus pés/ como um pinheiro num penhasco.” Ou como as mãos que afundam na terra: revirando com verbos táteis elementos mortos e vivos do jardim. A natureza viva, plantas, bichos-coisa e bichos-homem se misturam à paisagem de natureza morta, terra e pedra. O corpo de carne, sangue e ossos carrega o sentimento do mundo, como se fosse bicho delicado em busca de abrigo.
Em Lugar, “a ermida corpo, sim, caiada/ e rústica. Mas também ferida aberta/ da mente, esta nação sem chefe,” sem perder a perspectiva temporal, fixa o sujeito na espacialidade instável de um lugar (ermo sem fundo). Dialogando com Bifurcados, de João Cabral de Melo Neto, surge um questionamento: “este lugar que habito (me habita?)”. Corpo e mente, tempo e espaço atravessam suas porosas fronteiras e vazios. Como, em Passagem, vive-se esse nosso tempo contemporâneo de permanente transitoriedade. “Vamos embora/ para um lugar onde se vive de passagem…” já que hoje Pasárgada é inabitável, ou seja, não é mais possível. Um lugar ou um não-lugar onde se é sempre estrangeira, como a Irene boa e latina, sempre de bom humor e clandestina, sob o céu das Américas. Como a poeta gauche que precisa “exercitar a inadequação, sabendo-nos/ ridículas como missa em latim”.
É assim que a poesia penetra com sutileza no cotidiano e na complexidade da vida, paisagem na qual “há muito mais para ver aquém e além da colina”, como diria Hilda Hilst. Memória, corpo, amor e morte, mais que temas, são problematizados, abrindo a discussão sobre a própria linguagem do fazer poético, enquanto eixo principal em pauta. “Pense na poesia/ como o dedo cavando a fresta onde/ há ainda uma pequena chance.” É por essa fresta que “a vaga ideia de liberdade” pode tomar corpo como possibilidade de fuga de um prisioneiro, como possibilidade se sobrevivência e exercício da palavra.