“Navegar é preciso, viver não é preciso.”
Levei um certo tempo — confesso, envergonhadamente — até entender (uns trinta anos atrás) que esses versos queriam dizer exatamente o que eles fingem que estão a dizer. Era no tempo em que todo discurso beletrista encontrava jeito para incluir essa citação portuguesa, ela sozinha no seu jogo enjoado de palavras ou acompanhada daquela flor pessoana de chatice com régua: “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Ouvi e li tanto uma como outra, tantas vezes (e a propósito de tudo e de nada), que passei a detestar “ambas” as duas lusas obviedades. (Portugal é um caso muito especial. Portugal complica o banal e torce o rabo ao Arrabal).
Portugal precisava navegar, e navegou até a Taprobana — ou Tabropana? (nunca sei). Portugal foi longe, até mares nunca dantes navegados pelo marquês de Abrantes e os capitães da armada que levou Cabral a nos “descobrir” por acaso (a melhor prova que de Cabral chegou aqui por acaso é que, se Cabral houvesse pretendido chegar mesmo ao Brasil, ele não nos teria descoberto — o que seria uma pena (“se a alma não é pequena” etc) — mas teria ido a bater noutras portas ainda não abertas nem descobertas (que descobrir não é preciso). O mais importante é que o acaso ou a necessidade nos legou principalmente essa maravilha da lógica de Trás-os-Montes, portuguesa, beirã e porreta. Nem todos os povos podem contar com ela, claro. O que nos coloca na vanguarda das técnicas de atarraxar lâmpadas, com vinte descendentes do Cabral rodando a escada para que o sujeito, no último degrau, Osram em punho, encaixe o bocal perfeitamente.
O descobrimento também nos legou a história do Descobrimento, “o monte Pascoal” e um monte de coisas mais, à sombra do monte Athos grego, do monte Cinco, do monte Seis e de um monte de montes mais — além da praia do meio, entre o monte Branco e o Monte Airton. “Quantos montes há no mundo!” — dizia Sir Edmund Hillary, antes de viajar ao Ceará e escalar este último monte da sua vida. Da altura da cadeira para anões de restaurante, o alpinista inglês avistou o mar do Ceará do Monte Airton e entendeu que tudo valia a pena se alma não é pequena na vida em que navegar é preciso — mas viver não o é.
Fim da fábula, amigo. Claro que você não entendeu. Leia de novo, da cabeça.
“Chata é uma barca que flutua nos rios de França, Oropa, Bahia e Fortaleza”. Uma e duas. (A charada é para encher os finais de semana do resto da vida de AM — quando dos intervalos do programa do Gugu e do Silvio Santos. Haja saco & fortaleza…)
oooOooo
Montes de Vênus e de Olinda.
Dentre as poucas certezas que levarei para o túmulo estará, certamente, a de que o sol de Olinda torna mais rosada a pele de inglesas jovens. E talvez o sol da cidade torne — ali, na descida da Ribeira, onde há um terreno baldio do lado do Recife e um beco que abre para a visão do mar além da ladeira de São Francisco — ainda mais rosada a pele moça das britânicas chamadas Diana. Eu conheci uma…
Faz muito tempo e foi antes do nome latino da princesa triste se associar ao destino do futuro rei orelhudo — e muito tempo antes da morte colher Sua delicada Alteza, em Paris, na corrida contra os cruéis paparazzi. Foi antes de tanta coisa que até duvido, hoje, se a Diana que eu conheci, inglesa de pele de louça queimada, não terá sido uma invenção da aragem aplacando o calor na ladeira da Sé, na calma monacal dos começos da tarde.
Mas, oh, não: não posso duvidar da existência — tão menos aristocrática! — da inglesa que eu conheci em Olinda, nos idos de 75, eu a vagabundear, nos verdes anos, pelas ladeiras íngremes e ela a pesquisar, turista aplicada, sobre a investida dos corsários ingleses James Lancaster e Edward Fenner, contra Olinda e o Recife (então povoado de São Frei Pedro Gonçalves). Uns dizem que Fenner não era inglês; Handelmann, Rocha Pomba e Veiga Cabral sustentam que Edward era holandês e que seu nome se grafa Wenner, com W.
Não sei. Na verdade, eu jamais ouvira falar de corsários atacando, ocupando e saqueando os nossos burgos obscuros — quando conheci Diana. Ela chamava Fenner de inglês, e eu mal reparei no nome do corsário, não me interessei por ele e nem por Sir James Lancaster (esse, inglês até a medula de filibusteiro e comandante da frota dos corsários, constituída pelos navios Consent, Salomon, Virgin, Peregrin e — ironia das ironias — Welcome).
Vocês estão interessados nesses aventureiros velhos de guerra (ou, melhor, de ataques e saques)? Ou o interesse do leitor se volta, mais de quinhentos anos depois, para Diana sob a aragem da ladeira a enfunar-lhe a saia leve — e mais nada? Não há vela de navio corsário que pudesse ser tão bela, acho, quanto era bela, trezentos e oitenta anos depois, a transparência daquele pano leve (sim, sem nada debaixo) sobre o corpo esguio da inglesa avançada no tempo e calorenta, de modo que você, abaixo, na ladeira, via o delta em silhueta e quase a corsária penugem entre as rosadas pernas…
Não posso imaginar alguém interessado — mais — nos cabeludos Lancaster e Fenner (ou Wenner ou, ainda, Venner), aqui chegados num longínquo dia 9 de abril de 1595, atraídos pela grande quantidade de açúcar e especiarias de uma caraca vinda do Pacífico A história interessa? Do ataque à batalha final, contra os filibusteiros, nas alturas do campo da Tacaruna?
Foram cercados pelos pernambucanos e perderam 40 homens (incluindo 5 capitães), mortos na refrega. Diana contava que os seus conterrâneos conseguiram romper o cerco, à noite, e que fugiram para os navios carregados de riquezas (entre as quais as ricas alfaias da ermida de São Telmo)… Mas, acho que nada disso poderá parecer mais interessante, talvez, do que a fuga bachiana, transparente, de Diana rumo ao Amparo ou em demanda da igreja do Monte — o seu, o delicado, de Vênus chamado (porque é a estrela das tardes da adolescência), me atraindo para longe do mar de piratas antigos e morros de bicicletas e broas das padarias com anúncios de Fanta-Uva em machucadas latarias nas portas meio carcomidas, conforme assim recordo a paisagem e as coisas do dia 9 de abril de 1975, quando Diana cruzou com a minha vida, primeira mulher que eu vi manter os pêlos ruivos nas axilas, indiferente ao sol e à chuva.
O que se pode esperar da inexperiência, na vida? Eu estava tendo a visão real de uma ninfa moderna, de uma Diana do cordão rosado da vida real, alegre e viva, contando sobre os feitos de filibusteiros esquecidos num Brasil que já não está aqui, pressinto — agora que o velho Cordão Encarnado foi levado com o muro, Lady Diana está morta e a Diana que eu conheci (a que distância terá ido a borboleta da mini-saia do seu vestido?) está para sempre perdida.