Ele não tem onde reclinar a cabeça.
Seu travesseiro de pedra
‒ crânio espatifado no asfalto, os espinhos na pele suada de sal ‒
ele não tem,
reclinar sua consciência de ser em ombros alheios não pode mais
‒ onde a cabeça.
Pulsam as têmporas flácidas de tão ocas. Cheiro de podre nos pelos das narinas inexistentes.
O vazio ‒ sinal:
símbolo da sua (d)existência.
Pus vazando pelos olhos avermelhados de cansaço. Cansar no ócio do ontem na previsão da inutilidade de adiante.
Reclinar
o peso que ele não tem na cabeça.
Onde.
Peso ‒ pedra sem sono.
A leveza da densidade da matéria.
Não. Leveza ‒ plumas sem esse cão que se esfrega na barra da calça. O peso desse oco que suga a gravidade dos olhos.
Essa cabaça seca caída sobre a terra rachada poeirenta sólida como a rocha ‒ sua cabeça sobre o nome: a maldição efêmera dos símbolos.
Seu nome reclinando sobre a cabeça do rio esquecido.
O tempo não corre mais só o vapor da pedra no ar.
: o resto nas sombras das arestas dessa pequena densidade :
***
Pedro, uma rocha?
Um iceberg: sobre o mar, um pequeno floco.
Desse mar primitivo e sem mistérios ‒ esconderijo.
Um cobertor, no silêncio, o mantra. Um canto de proteção sem glória: a primeira mãe dos homens.
Com as unhas roçando os corais, dorme. Acalenta o desespero refletido na lembrança azeda do leite escorrido de sua mãe.
***
Querer deitar sem querer mais nada
‒ ilusões nos olhos irritados de fuligem.
Lençóis engordurados na imensidão do quarto nu,
a desistência e a poeira acumulam no rodapé das calçadas mormacentas.
Saliva e moscas beijam-se vagabundas.
O enforcado trança a fibra fraca e velha
‒ no peito uma lata de sardinha.
Fotografias: uma navalha enferrujada pelo sangue imundo uma boina no abandono do passado pregos corroídos pelo chão cabeças de peixes a prostituta de mãos dadas com uma boneca.
Não querer mais o grito que ainda ecoa na garganta. Querer
deitar sem ter consumado o
dia,
que se vai desmanchando
na renda
azulada
‒ pássaros voam na chuva fria dançam como se já não soubessem da secura da semente mostarda ínfima que engasga a gárgula de néon que se vê de onde corre o rio.
E depois amanhecer soluço.
***
Cheiro do vômito que bloqueia o ralo.
O augusto sem sonhos,
Pedro esmagado, lavando as mãos na imundície dos homens.
Esquece as amoras que roubava dos quintais vizinhos, das reminiscências com Augusto, das andanças nas trilhas sempre recém-descobertas por exploradores alienígenas, das ideias exageradas entre árvores com piratas e índios violentos que encontravam, do futebol seco no campinho, da grama cheia de coceira. Esquece.
Na fome e no frio, perde memórias.
Os olhos vagando por não espaços,
por estações,
entre os pelos de Rosa,
por entre as pernas que estavam ao redor.
O cheiro acumulado das latrinas da cidade abaixo da marquise que serve de cama, casa e dormitório.
: as formigas empurram eufóricas a asa de uma barata no início do dia :
Assim: sem mais a zombeteira juventude em seus bagos.
Luzes refletidas na janela engordurada
‒ acorda sombra que é.
Morte nas reverberações maquinais
‒ ilusões.
Álcool na ferida aberta: desencaminha.
A luz desnecessária cariando seu último apego.
A mulher que dorme : imagem de um passado nunca ido.
Suor.
As luzes de todos os sóis que se levantam
‒ o coração não estremece mais.
***
Como me fiz
não isso
o que foi feito de mim
‒ essa ressonância de infernos particulares:
meus deuses
É o que menino alicercei em moscas
deitado na areia quente e molhada
‒ o calor do corpo redescoberto e a umidade do Sol gotejando em mim
Visões e dores
incongruências esféricas na melodia que assobio
Crer ou não
talvez menos
nem isso
Mas ver e ser impelido
o gorgolejo da voz ainda frágil
Cantar nas ruas
e o povo rir sem fé
‒ e o menino que nem chora,
mas pra quê?
Exigir o que será tirado de quem passa ao lado. Arrancar o que me pertence por força e caninos. Alimentar apenas o que doer dentro do corpo ‒ nunca o cristal que espelha espectros, digitais de memórias e futuros, medo dos olhos que atravessam os meus.
Fui feito
‒ esse duplo que se esparrama no rubi ancestral do mundo e arranca as vísceras do anjo: que frágil se dissipa ‒
coluna terracota.
Me chamam Augusto,
augusto me fiz.