Não muito

Conto de Soraya Wolff
01/11/2006

Com a ponta do dedo indicador rabiscou o que parecia ser um felino na vidraça embaçada. Conferiu-o por um segundo, inclinando um pouco a cabeça, e franziu o nariz para o resultado. Apagou-o de um gesto, com o dorso da mão, acompanhado de um discreto suspiro. Definitivamente, não era boa em desenho. A intenção inicial era fazer um cachorro, de preferência Flupy, que naquele instante lhe fazia festa por entre as pernas, envaidecido pelo intento artístico que provocava.

Arrancou o casaco de lã azul-cobalto do cabide atrás da porta, convidou o vira-lata com um assobio e ganhou a rua ainda vestindo um resto da segunda manga. Uma baforada de ar gelado contraiu-lhe o rosto e os finos cabelos castanhos se alvoroçaram com o vento. O leve vestido floral, impróprio para o clima, enrolou-se confusamente em seu corpo, tolhendo-lhe os movimentos. Apanhou as botas de borracha a um canto da soleira da casinha de ferramentas, calçou-as ali mesmo, em pé, e seguiu rapidamente, meio encorujada, com os braços cruzados para preservar o calor do corpo, a um só tempo determinada e sem destino.

Por ora, as únicas convicções que tinha era que se chamava Rita Eleonora (assim, só os nomes de batismo, porque do sobrenome já não estava certa), que contava 24 anos e que, ao mesmo tempo em que não tinha vivido nada que valesse a pena arquivar na memória, já vivera demais. Mas ainda gostava de aipim frito, da cor malva e de cachorro.

Certa vez, quatro anos atrás, chegou em casa com um pijama de pelúcia mais ou menos dessa cor, estampado de minúsculos bichinhos.

— Parece confortável, mas meio infantil para uma mocinha que já sabe tanto — retrucou Diógenes. — Talvez uma camisola vermelho-sangue tivesse mais a ver.

Ela silenciou ao comentário. Apesar dos últimos acontecimentos, ainda nutria um sentimento impreciso por ele, como o que se sente ao tirar os sapatos apertados ao fim do expediente — uma dor que não dói, um incômodo quase gostoso, qualquer coisa meio vaga.

No dia em que saiu de casa para ir viver com aquele homem, o que a movia era menos a atração que seu porte moreno, um tanto rústico, lhe despertava e mais a perturbação que provocaria na mãe. Embora não negasse, é claro, que já pressentia o tropel de uma paixão arriscada, provisoriamente correspondida.

Pois que viesse o que tivesse que vir, com toda a sua carga de mistério. Qualquer atitude lhe parecia menos perigosa que a de ficar ali, naquela hipocrisia mal-disfarçada que era o seu mundinho familiar: uma mãe exigindo a coerência que ela própria não tinha, um irmão quase translúcido de tão ausente e um padrasto, ah, um padrasto que exalava arrogância a cada gesto. Também sentia-se farta daquele conforto gratuito, imerecido. Estava sedenta de uma vida autêntica.

A turbulência dos anos que se seguiram, contudo, quase lhe trouxeram saudades da antiga vida. Diógenes mostrou-se a personificação do transtorno. Exatamente uma semana foi o que durou o idílio. Atropelando vieram o rancor, as mágoas, a ironia e o desprezo. Ela, agora sem nenhum porto, totalmente à deriva. O subemprego que arrumara na fábrica de bolachas, a despeito de sua boa formação acadêmica, mal dava para as despesas mais urgentes. Acabou, a contragosto, pedindo arrego à mãe.

Agora se via morando sozinha na casa de campo da família, num distrito de Campos do Jordão, sem mais sonhos nem arroubos. Quase sem opinião.

Nesses últimos tempos, dois anos mais ou menos, pouco lhe tinha acontecido que merecesse registro. Até forçou um caso com o dono de uma cafeteria em Taubaté, mas a coisa não evoluiu e a mornidão evaporou-se por conta. Também tentou um emprego de hostess numa charmosa pousada da região, só que a alegria forçada dos turistas lhe era nauseante. Não deu.

E então que não tinha bússola, nem idéia do norte. Mantinha-se com a ajuda curta e petulante da mãe. Gastava pouquíssimo, por economia, mas também por indolência. Boa parte de seu sustento era extraída ali mesmo, do sítio. Geraldina e Seu Olavo, os caseiros, eram prestativos e eficientes, apesar do indisfarçável desgosto pela hóspede intrusa. Em alguns fins de semana, quando a família vinha de São Paulo descansar com amigos, sentia-se estranha. Exilava-se no quarto, ensaiando uma enxaqueca, ou fingia-se absorta num “frila” qualquer — uma tradução, correção de monografias para alunos da cidade. Durante a semana, enganava-se com leituras fáceis, filmes B da videolocadora local, seus bichos, incursões na cozinha, cochilos vespertinos, algum bico…                                         *

As botas produziam um tchoc-tchoc nos charcos espelhados. Nova garoa se ensaiou no chumbo do céu. Ainda fazia muito frio naquela manhã de outubro. Um grupo de vacas apartadas de suas crias acorreu à cerca de arame farpado, interrogativo. A paisagem se revestia de um verde-pálido, quase veronese, não muito coerente com a estação primaveril. Eleonora apanhou um talo de capim e levou aos dentes, mecanicamente. Já não se sabia, tampouco repelia ou almejava qualquer coisa que fosse com um mínimo de querença. E havia Flupy.

Soraya Wolff

Nasceu em Lages (SC). É jornalista e artista plástica

Rascunho