Não é possível ordenar o fogo

Na menopausa, a sensação de "um forno se abre no centro do meu peito, bem no meio do tórax"
Ilustração: Denise Gonçalves
01/10/2022

Tradução: Thais Marinho

3 de setembro de 2019
Que objeto estranho é uma teta… que objetos estranhos, as tetas. Não me lembro como as sentia à medida que iam inchando na puberdade. Minhas tetas são como dois corpos alheios, acoplados à pele do peito. O que imagino quando as sinto de dentro: meu peito plano, como o de uma menina, sobre o qual se conectam dois elementos mais ou menos lassos, mais ou menos firmes, uma gelatina coberta por pele.

Hoje quase desmaio no banho. Senti meu coração dar um salto. É tão precisa essa expressão. Literalmente foi como se ele tivesse saltado, dando uma cambalhota, como se quisesse abranger a possibilidade de outra perspectiva. Ai!, escutei a exclamação que saía da minha boca, exalando vida, enquanto me ajoelhava e um calor frio percorria minhas costas. Em seguida me recuperei. O ar começou a entrar e sair do meu nariz em um ritmo conhecido.

Que objeto estranho é uma teta… Agora, debaixo da direita, sinto um leve incômodo, como se meu coração quisesse rasgar essa epiderme imaginária e tocar o ar que se estende para além da gelatina.

5 de março de 2020
Desde que parei de fumar, ganhei seis quilos. Poderia dizer que um quilo por mês. Mas não sei se a conta é tão exata como a realidade que a ordem do corpo estabelece. Desde que parei de fumar, junto com os quilos e os anos, aumentaram as incertezas. Por que a imagem que vejo no espelho-câmera-selfie não condiz com a ideia que tenho sobre o meu corpo? Esse corpo, que era conhecido e que conseguiu se tornar amável, o espelho me devolve como um estranho. Registro a estranheza de me sentir bem — talvez como há muito tempo não me sentia — neste corpo que não é sua imagem interna nem seu reflexo. Eu me canso menos, muito menos. Sorrio mais e vejo as fendas no meu peito como um possível caminho a seguir: todas convergem para o seu centro. Ali, onde fui desatando os nós que doíam. Ali, onde se expande a abertura rumo ao desconhecido.

11 de março de 2020
É um fogo que me assalta. É um estrondo de milhares de gotas instantâneas sobre o rosto. É um ardor sem pausa até que passa. Me arrebata. Quando chega, não posso fazer outra coisa que não seja estar, sentindo o calor em um gerúndio difícil de habitar e impossível de eludir. É como quando algo dói, obrigada a doer, mas sem que doa. Estou aprendendo a conviver comigo nesses intervalos de suspensão. Quando esse fervor se alastra, não posso fazer outra coisa, apenas observá-lo e às vezes me envergonho de reconhecer que perdi o fio da meada de uma conversa ou a ideia que estava abordando em uma aula. Justamente quando, por fim, começava a gostar de estar comigo, aparece essa outra que não reconheço.

14 de março de 2020
Na casa da minha avó em Carlos Paz há uma antiga roseira. Uma noite, quando tinha acabado de fazer 18 anos, fiquei bêbada pela primeira vez. Fazia calor e eu estava de férias. Para entrar na casa, tinha que bater na janela do quarto em que ela dormia. Só havia um jogo de chaves, que minha avó retinha sem discussão. A roseira fica em frente à sua janela. Quando cheguei naquela noite que já virava dia, tropecei e caí estrondosamente sobre a planta. Não foi necessário bater na janela, em um piscar de olhos a parentada toda estava no alpendre censurando com gestos desaprovadores minha entrada abrupta na casa. Entre risadas, me levantei e corri direto para a cama. No dia seguinte, descobri a magnitude do impacto: não havia uma só parte do meu corpo sem arranhões. Nos últimos dias, de regresso a essa casa, descobri sementes na roseira e decidi trazer algumas. No início da quarentena, disputamos o jogo Palavras cruzadas. Quando se alastram as ondas de calor, me abano com um leque e lembro que sobre esta mesa minha avó exercia seu ofício de modista. O universo dos cuidados é polissêmico e vem de longe.

3 de junho de 2020
Tenho quarenta e dois anos e em nenhum de cada um dos meses que menstruei — e dos que não menstruei — a menstruação deixou de ser um enigma. E não falo da fisiologia do processo, nem do registro extenuante da ação dos hormônios sobre as mudanças no meu corpo e sobre os vaivéns físicos e mentais. É um enigma porque cada vez tenho que fazer um esforço para desentranhar esse estado de estranhamento que me permite sentir que o sangue flui ou é expulso como um ovo de dentro de mim, me tornando consciente da abertura real do meu corpo. Alguma vez fantasiei caminhar nua pelas ruas da cidade em pleno sangue, parando em cada esquina até que uma poça fosse a desculpa para avançar até outra poça. Há pouco, enquanto varria, vestida e com um pano entre as pernas, essa sensação voltou. Caiu um fluido que me obrigou a sentir seu calor e me deixou expectante, as mãos aferradas ao cabo da vassoura, o olhar pousado sobre as bordas dos meus pés. Pude ver ali embaixo, longe, a poça violeta, bordô e vermelha que alguém havia deixado. Varrê-la foi impossível.

19 de julho de 2020
Caminhei por lugares estranhos durante a noite. Uma lembrança me visitou. Sua presença foi fugaz, mas seu eco persiste enquanto a tarde avança. Me dizia algo nítido com sua forma opaca. Com a lucidez de um raio percebi o que não cabe na gramática. Anos atrás: uma amiga me olha com uma ternura impossível de abarcar e me abraça. Às vezes necessitamos desse abraço sem que nos digam nada. As palavras são pedras nos bolsos de uma afogada. Às vezes necessitamos que alguém nos diga o que fazer. Às vezes necessitamos que nos deixem em paz. Às vezes, tudo isso junto. Porque ninguém assegura que o despertar nos leve a um dia bom. Às vezes não é possível ventilar a casa. O que acreditei aprender veio, quase sempre, na forma de uma espera.

21 de julho de 2020
Me detenho em uma foto de princípios deste ano, alguns dias antes de nos isolarmos em nossas casas, quando ainda podíamos nos juntar e compartilhar fluidos sem pudor. Fazia calor e me lembro vividamente da sensação que me provocavam as ondas de calor internas e externas. Suor compartilhado: um dos modos de ocultamento.

10 de setembro de 2020
Os sonhos me antecipam a chegada do sangue. Neste mês, como no anterior, soube que o sangue viria. Sonhei que tinha covid. Sonhei que caminhava por uma praia de areias douradas, quase como se pisasse em um tapete de fios de ouro e uma alegria infinita me invadia ao comprovar que o mar estava vivo e pulsava sobre minha pele marrom. Sonhei que tinha vinte anos e nada me dava medo. Mas o sangue está indo embora. Vai e vem. Como o mar. Às vezes traz, ainda, alguns bons sonhos. O que vai acontecer quando não vier mais? Vou sonhar? Algum outro mar virá de visita?

12 de setembro de 2020
No dia em que a metade esquerda do meu rosto se paralisou, não senti nada. Como uma rocha, estática e sem emoções, o vento e a água fizeram seu trabalho antigo e estilhaçaram a parede inexpressiva que havia se tornado o meu rosto. Curiosamente, quando a pele se tornou lisa, a juventude começou a me abandonar. Naquela tarde soube que é possível ser insensível diante do abismo.

rascunho, setembro de 2020
/repetição

os objetos na vida da gente
vão armando um círculo imperfeito
que parece se fechar sobre si mesmo
com consequências fatais, quer dizer, vitais.
se soubéssemos do seu peso
seu volume
sua densidade
não deixaríamos que orbitassem inocentes
o espaço cotidiano.
a chaleira
há pouco me queimou a mão direita
foi um leve ardor que me obrigou a pegar
o cabo com cuidado e foi, também, o pano
puído, o mesmo de tantos anos atrás,
que me trouxe a imagem.
a chaleira
me queimou os dedos, um leve ardor
e pensei: de onde vem essa chaleira?
não, não pensei, me veio a imagem
sua presença há quinze anos em outra casa,
tantas casas nossas,
o cheiro de molho de tomate e de uma manhã amarela na cozinha
uma ternura flutua no ar no ranger das cebolas.
tive sorte, penso:
sempre soube escolher a melhor companhia
sempre souberam como me alimentar
enquanto eu mal conseguia
digerir algumas palavras
e um par de sonhos arrastados como o corpo
seu peso
seu volume
sua densidade
a chaleira
um recordatório do amor recém, recente,
presente
um ardor
que arrasta, às vezes,
a outras casas nossas
coisas nossas
o ardor
o único desejo que persiste:
perpetuar a sensação de amanhecido canto de tacuarita
sua frescura na janela nesse abismo
do que se inicia.

19 de dezembro de 2020
Falando com uma amiga, me dei conta que os calores me acompanham de maneiras diversas e intermitentes ao longo da vida. Até depois dos vinte e cinco anos e desde a pré-adolescência, um olhar singular dirigido a mim ou um modo de aproximação em que a pergunta ou a dúvida apareciam me provocavam uma onda de calor. A cara vermelha. A vergonha. Me pergunto diante destes novos calores: do que eu me envergonhava antes? Do que eu me envergonho agora? Já não tínhamos, por acaso, saldado essa dívida histórica?

4 de janeiro de 2021
07:40
Terei que aprender a obedecer a esse pranto que aparece e esses rios de água que jorram do meu peito e da minha cabeça. As chamas dentro de mim se liberam. Não tenho para onde dirigi-las, não é possível ordenar o fogo.

5 de janeiro de 2021
Os leques exercem uma fascinação inexplicável sobre mim. Em Amsterdam comprei um que era compacto e com uma estampa de rosas vermelhas que me fascinou no exato momento em que o vi em uma casa cheia de quinquilharias do oriente. Era o ano de 2017 e eu ainda não sabia da insistência dos calores. O seu uso estendido nestes tempos de agora excede a contemplação e me adverte do ardor que se aproxima.

7 de janeiro de 2021
13:25
Já há alguns dias, mirtilos, couves e alfafas me acompanham. Tinturas de ervas, infusões e leques, toalhas e guardanapos, também. Ainda não posso me acostumar à investida do fogo.

Sou “um fogo aceso fogo num vulcão cheio de fogo”, como disse o irmão de uma amiga, em pé, diante de As meninas, de Velázquez.

10 de janeiro de 2021
2:25
Me maquio ainda quando a transpiração profusa faz do rímel uma pocinha negra ao redor dos olhos. Sem base, sem blush, porque um rubor repentino me acompanha a cada hora. Sem filtro.

13 de janeiro de 2021
Manifestações do amor. Minha mãe me presenteou com um leque.

26 de janeiro de 2021
Na última semana voltei a Rosário, aqui vivo há cinco anos. Regressei de Rafaela, onde vivem minha mãe, meu pai, meu irmão, meus sobrinhos. Estive um mês ali depois de sete meses sem vê-los/las. Foi um mês muito estranho, como sempre quando passo um tempo com minha família. Mas desta vez a presença da morte, seu fantasma e sua realidade, no olhar de todos/das me assustou e me entristeceu. A tristeza foi o sentimento predominante no ano passado. Não sei se foi a responsável por aumentar a frequência e a intensidade das ondas de calor, mas elas vieram no pior momento e como sempre não houve outra forma que não fosse enfrentá-las. Apenas cheguei, montei a piscina. Um pequeno respiro para meu inferno pessoal.

29 de janeiro de 2021
O que eu acreditava que ia ser tedioso e enfadonho me revela um mundo, me obriga a ir muito mais para fora de mim. Observo. Escuto. Farejo. Me torno mais animal. Estou à espreita e em posição de caça. E quando me canso, deito para um cochilo. Como minha gata.

3 de fevereiro de 2021
Este mês vou menstruar, voltei a dizer ontem. E mais, já deve estar por chegar, asseverei. Sei porque há alguns dias meus sonhos se tornaram espessos e a presença humana, complexa e singular em suas demandas e sentidos. Sei porque durante cada ovulação, desde os treze anos, os sonhos me revelaram coisas sobre mim antes que eu pudesse pronunciá-las. Hoje apareceu uma mancha rosada, tênue, no papel higiênico, depois de quatro meses de ausência. Enquanto me limpava sentada no vaso, pensei na literatura e em que nada do que escrevo será considerado universal. Pensei, enquanto sentia a aspereza do papel na minha vulva: há sangues e sangues. O universal do sangue está nas guerras porque ali há, detrás do narrador, um sujeito que tinge a cor de sua própria covardia ou heroicidade. Há outros sangues. Esses que de tão comuns não conseguem se tornar universais, mas que de tanto narrá-los serão escutados. Escutaremos as sangrantes.

10 de fevereiro de 2021
A mudança de uma casa é uma tarefa física e emocional desgastante. Nunca se sabe muito bem o que deixar e o que mudar. Optei por fazer a meu modo. Em parcelas, lentamente. Vamos ver como termino. O que termino. O que termina.

18 de fevereiro de 2021
Hoje terminei de esvaziar a biblioteca que mais uso — presente de uma amiga — e a que eu mais gosto porque ali estão minhas autoras preferidas, minhas professoras e minhas amigas. Ao seu lado deixei ainda o abajur que era da minha avó. Não quis levá-lo para ter até o último momento uma sensação de abraço. Também deixei um quadro do qual nasce um jacarandá enorme, pintado por um amigo. Estes três objetos fizeram esta casa, ainda a fazem. Serão os últimos a irem. No domingo, finalmente, já não haverá sob este teto uma razão para ficar.

16 de março de 2021
Hoje foi um dia difícil. Os calores me atormentaram e me sinto em permanente estado de inquietude. Ontem chorei em meio à angústia, jogada sobre a cama, enquanto berrava que não queria mais essa sensação. Quando passou a onda de calor, eu ri. Mas não muito, porque ela sempre volta.

Caminhar ao lado do rio, enorme, apaziguou momentaneamente o calor que latejava. Estou desejando que termine a transição, estou desejando a paz da pós-menopausa. 

8 de abril de 2021
Plantas companheiras
Cimicifuga Racemosa
Salvia Officinalis
Uma cocção da raiz e uma infusão da parte aérea
Cada dia.
Um litro.

22 de abril de 2021
Um forno se abre no centro do meu peito, bem no meio do tórax. A pele não chega a conter o ardor e se manifesta em toda sua extensão de água, sais e aromas que sou incapaz de compreender, como uma estrangeira. Gostaria de ser outra. Mais uma vez. A que era antes, um segundo apenas. A que serei depois, supondo um incômodo menor. Enquanto acontece, permaneço em um estado de escuta, me contive de escrever “observação” porque não sou capaz de observar. Há outros sentidos mais afins, mais urgentes. É que o olhar pousa sobre a matéria deste mundo quando há calma. Escuto o coração desenfreado que pulsa nas têmporas e o fole da minha respiração desarticulada. Se parece ao medo, mas é como uma fuga sem essa iminência. Fugir do calor que só eu sinto para voltar a outro lugar mais amável, ainda que, por enquanto, não seja.

13 de maio de 2021
Estou recuperando meus sonhos. Pouco a pouco regressa esse outro tempo vital no qual posso ser outra, outro. Onde as regras se subvertem, onde os pesadelos não matam. Desde que deixei de menstruar, o que mais sinto falta é desse universo onírico íntimo tão singular e intransferível que me permitia decifrar situações, que me distraía. É possível contar a vida em quantidades de menstruações? Como inaugurar um modo de contar que se afaste de um ciclo conhecido e inventar outro registro que me permita a ilusão de um reconhecer-me?

A luz do outono é a que mais se assemelha à que povoa meus sonhos. Talvez por isso eu goste tanto dessa estação. Talvez por isso no outono eu volto a sonhar.

Dahiana Belfiori

Nasceu em Rafaela (Santa Fé, Argentina), em 1977. É escritora e gestora cultural. Tem uma longa trajetória no movimento feminista. Em 2015, publicou Código rosa – relatos sobre abortos (reeditado em 2021). Seu livro mais recente é Lo más simple es desnudarse (editora La Parte Maldita).

Rascunho