Não dá mais para andar por aí com a minha mercedes

Conto de Paula Guzman
01/02/2005

As últimas notícias de jornal têm me deixado preocupado. A verdade é que ando com muita raiva ultimamente. Do jeito que as coisas estão ficando não dá mais para andar por aí com a minha Mercedes. Cada vez tem mais desses nojentos negrinhos pelas ruas. Agora deram para pensar que são gente. E ficam valentes com a arma na mão. Eu, que adoro matar pombos, gostaria mesmo é de matar esses negrinhos. O certo é que se sumisse com uns quantos ninguém ia dar pela falta. Nem dos pombos nem dos negrinhos. Ambos em excesso pela cidade.

Mas ainda carrego, não sei por quê, um resto de inútil humanidade, que me dificulta esse ato simples de transformar em cadáver o corpo de meninos. Ainda que pobres. Ainda que pretos. Só que essa história de não poder sair pelas ruas com a minha Mercedes já está começando a me cansar.

Agora, por exemplo, por que não passar direto por esse sinal que acabou de fechar, e transformar em pó esse infeliz que começa a fazer esses ridículos malabarismos na frente da minha Mercedes. O que me segura é esse coração mole. Mas qualquer dia não sei não.

Difícil falar dessas coisas. As pessoas dizem que é preconceito, que devia tentar me colocar no lugar deles. Já teve alguém que me disse você é um monstro. Mal sabem do meu passado de pobreza. Mas eu dei duro. E nunca fui homem de perder oportunidade. É verdade que muitas vezes tive que me fazer de cego, mas aproveitei todas as chances de subir na vida. Principalmente aquelas sem esforço. Que aliás foram as melhores. Afinal, a vida não passa de um imenso troca-troca.

Quando comprei minha Mercedes, nunca pensei que um dia iria ter esse tipo de problema. Temer pela minha vida só por ter um carro melhor. E tudo por causa dessa negralhada que não faz por onde melhorar.

Já estou chegando, o que é outro motivo de preocupação. Moro em uma casa bacana. Grande, imponente. Cheia de quartos e banheiros. Mas não fica protegida por nenhum condomínio. Por isso, cada vez que pego no controle remoto para abrir o portão, sinto uma descarga extra de adrenalina. Só me sinto seguro mesmo depois que todas as portas e portões estão fechados e os alarmes ligados. Como é que alguém pode ter paz em uma cidade como esta?

Tem alguma coisa estranha acontecendo aqui. A sala está no escuro. Os cachorros nem vieram me receber como todo dia.

Saco da arma com a eficiência que ainda guardo dos tempos de exército e acendo a luz. Antes que o filho da puta possa reagir meto-lhe duas balas certeiras que o derrubam. Já no chão descarrego o resto do pente para ter a certeza de que matei mesmo o desgraçado. Menos um negrinho.

Assopro o buraco do cano do revólver como nos antigos faroestes e me orgulho da perfeita pontaria. Afinal, eu sou o mocinho. Digo para o garoto, como se ele ainda pudesse me ouvir, teu dia chegou, você entrou na casa errada e teve o troco, seu babaca! Eu não tenho medo dessa tua raça, não!

Vou subindo a escada. Minha mulher, coitada, pode estar lá em cima, trancada ou amarrada. Prefiro não pensar coisa pior.

Entro no quarto chamando por ela mas nem sinal. Levo uma pancada na cabeça e caio completamente tonto. Quando me recupero do susto e da dor, vejo três pivetões em volta de mim.

É, coroa, vamos te passar o rodo. A gente não ia matar ninguém, quem mandou se adiantar? Matou o Piolho de graça. O moleque só ia te render, mais nada. A gente só queria levar o teu dinheiro. Agora não tem jeito. Vai virar comida de bicho. Mas antes vamos te judiar um pouco que é pra alegrar a alma do Piolho.

Foi terminando de falar e tirando do bolso uma navalha que colocou logo em ação. Começou pelo meu rosto. Foi me cortando bem de levinho.

Morre seu merdalha, bem devagarinho pra sofrer mais, e ia cortando, agora no peito. Estrebucha bastante, bota pra fora essas tripas. Chegou na minha barriga. Minha roupa encharcada de sangue. Isso, se mija todo, bundão. Cadê aquele peito estufado agora, cadê? E continuava cortando pelos braços, pernas, bem perto da virilha. E pra que é que serve tanto dinheiro? Vai virar pó igualzinho ao Piolho. Quem sabe até o mesmo bicho vai comer dos dois presuntos.

Semidessangrado, ainda ensaio dizer eu fui muito pobre também e subi na vida, posso ajudar vocês. Mas aí já era tarde demais. Acho que irritei o cara. Um último corte de navalha me pega a artéria do pescoço e o sangue que jorra não me engana. Não tenho mais que alguns poucos instantes. Penso na minha Mercedes. Meu único erro foi não ter começado antes a matar negrinhos.

Paula Guzman

O conto Não dá mais para andar por aí com a minha Mercedes foi selecionado, em dezembro de 2004, entre os dez melhores no 14º Concurso de Contos Luiz Vilela.

Rascunho