Não

Um conto de Amilcar Bettega
01/09/2003

Tem coisas que nascem com a gente, não adianta. Vêm marcadas na nossa genética. O livre arbítrio existe sim, está aí para quem quiser e puder usar, mas até que ponto ele traduz efetivamente a liberdade? Se contrario o meu princípio mais visceral, se em absoluta consciência de meus atos rompo com uma cadeia iniciada a milhares de anos pelos meus ancestrais, ainda assim — e por isso — será que sou livre?

Não reparem, mas uma vida afastada das pessoas e certa tendência à observação foram me deixando meditabundo. Portanto, antes que eu me perca em devaneios, vamos a alguns fatos, que é sempre o que fala mais alto. Sou um cachorro, e isso já ultrapassa o fato: uma fatalidade talvez. Meu dono foi um homem cego. Digo isso sem nenhum traço de ironia. Repito: são os fatos. Comprou-me quando eu ainda era muito jovem e, a partir daí, minha missão na vida passou a ser a de guiá-lo, principalmente nas ruas. É difícil falar sobre hipóteses, mas acho que eu teria aceito tal incumbência até o fim dos meus dias se recebesse dele o mínimo de respeito, de consideração, sei lá, se percebesse nas suas atitudes um singelo traço de humanidade, qualquer coisa que alimentasse esse fútil mas eficiente comércio de relações que agrega os homens. Acho que sim, se isso acontecesse eu teria cumprido fielmente o meu papel, na passiva tradição da raça. Teria sido muito mais fácil.

Meu dono bebia, mas isso não é desculpa. Era angustiado, solitário, faltava-lhe o amor de uma mulher ou de um amigo. Inutilmente, tentei suprir-lhe essa carência. Cumpria meu serviço de guiá-lo pelas ruas, de parar diante dos cruzamentos e fazê-lo chegar com segurança à calçada oposta, mas ao mesmo tempo também me esforcei para lhe dar um pouco de calor e amizade. Digo me esforcei porque tive de contrariar a minha total falta de empatia para com o meu dono. Não que ele me fosse antipático, não é isso, simplesmente não havia afinidade entre nós. Nunca, em nenhum momento — e quero frisar: em nenhum momento — lhe desejei mal. Apenas ele me era, ou seria se não fosse meu dono, indiferente.

Logo em meus primeiros meses de vida fui jogado a essa vida que me coube, a minha vida de cachorro. Chamo atenção para as minhas palavras, porque sou um cachorro e talvez seja a primeira vez que vocês se deparam com palavras de cachorro. Uso-as conforme vocês as criaram, mas são palavras não contaminadas. Quando digo “vida de cachorro” não há aí nenhum segundo sentido e o que quero dizer é que, entre outras coisas, fui preparado geneticamente para essa vida; para, por exemplo, suportar a separação da minha mãe e dos meus irmãos logo após o meu nascimento. O que seria uma crueldade se feito com qualquer homem, comigo é apenas a aplicação de uma lei natural. Não me queixo, sou mesmo psiquicamente mais rústico. Mas isso não me impede de refletir sobre as coisas. Acho que vocês não imaginam a quantidade de pensamentos que passa pela cabeça de um cachorro quando ele está, por exemplo, deitado e aparentemente sonolento, a cabeça acomodada sobre as patas dianteiras, os olhos semicerrados. Pois o que faço agora é contar alguns desses pensamentos. Adiante.

Muito jovem, então, conheci o que na linguagem dos homens seriam as agruras de uma vida de privações. Desde o início fui tratado com frieza e desdém. Não que eu esperasse do meu dono manifestações de carinho espalhafatosas, dessas que a gente vê nos parques, nos jardins — e muito provavelmente no interior das casas — e que apenas imbecilizam cão e dono. O que não concordo é que eu cumpria com a minha parte, no arranjo implícito do nosso convívio, e não tinha a contrapartida do meu dono. Eu dava. Dava a minha proteção, a minha compreensão dos seus defeitos, a minha total entrega quando no exercício de minhas funções, eu dava, mas em troca não recebia nada além de desprezo, que aos poucos foi se transformando em raiva.

Quando em seu território, os cegos movem-se com extrema facilidade, desenvolvem percepções interessantes para dominar completamente seu espaço. Meu dono não era diferente. Resultava que eu não lhe servia para nada quando dentro de casa, ele sabia com exatidão o lugar de cada móvel ou objeto, movimentava-se com uma destreza impressionante. E por força dessa auto-suficiência sequer experimentei o que é ter um teto. Fui logo posto a dormir ao relento, habitando um pequeno quadrilátero de piso cimentado que ele chamava de pátio. Era requisitado apenas para acompanhá-lo à rua, e percebia muito bem que ele detestava a minha presença, que se não fosse absolutamente necessário ele não recorreria a mim. O meu dono era um homem vaidoso, achava que encobria sua cegueira dispensando-me do colar de couro. Mas quando saíamos à rua, eu percebia todos os seus sentidos voltados para mim. Ele dependia de mim naquele momento, não podia negar isso, e talvez fosse esse o seu maior suplício. Nunca tirei proveito da sua fragilidade nesse momento, pelo contrário, sempre procurei disfarçar que eu sabia dela. Deixava meu corpo roçar em sua perna a cada três ou quatro passos para que ele sentisse que eu estava ali, cumprindo minha função.

De volta à casa, recolhia-me ao meu lugar no pátio. Com o tempo, desisti de tentar alguma aproximação, desisti de muitas coisas. Mas não de exigir o suprimento da comida, o mínimo para que eu me mantivesse vivo, as mínimas condições — afinal, é sempre em troca de alguma coisa que nos tornamos propriedade de alguém. Mesmo assim, ele me deixava vários dias sem comida, e pior: confinado e sem condições de sair à rua para tentar suprir, por minhas próprias forças, as necessidades de alimento. É por isso que falo em raiva, ou ódio, ou seja lá qual a palavra — o nome às vezes deixa leve a coisa, se vocês vivessem sem palavras talvez me dessem razão. O tal pátio ficava atrás da casa e para sair eu tinha que passar por dentro dela, e isso me era rigorosamente vetado. Mas a revolta, uma certa necessidade de reagir, certamente veio com as agressões. Já disse que sou rústico, admiro as infinitas potencialidades dos homens e aceito e compreendo a minha condição de animal tosco. E foi por isso que me tocaram mais as agressões físicas do que as morais. Minha rude sensibilidade está ligada mais ao corpo do que ao espírito, e quando este corpo começou a receber os laçaços, os pontapés, os socos cheios daquela raiva desmesurada, aí então me veio o sentido da resposta.

Claro, foram precisos anos de violência. Foram anos de violência física e moral, mas deveria bastar um minuto, deveria bastar um gesto, uma intenção, uma insinuação para provocar a resposta. Teria de ser assim, mas, infelizmente, a capacidade da gente suportar a humilhação pode ser infinita.

Sobre algumas coisas é mais difícil tratar, mas já que me propus a contar, sigo em frente. Fui também violentado, e essa é apenas outra forma de humilhação, nem maior nem menor, porque à humilhação, como ao amor, não cabe dizer que é menos ou mais — ou é ou não é. Nós, cachorros, somos instintivos, somos talvez ingênuos e extremamente estúpidos, também em relação ao sexo. Mas é provável que não haja nada que animalize mais os homens do que o sexo. O meu dono bebia, o meu dono era um solitário, faltava-lhe o amor e o corpo de uma mulher, era um desgraçado. Pois bêbado, sozinho, sem mulher, esse desgraçado abusou sexualmente de mim. Baixou-se até o meu estúpido e animalesco círculo sexual e descarregou suas energias em mim como se fosse, ele próprio, um cão faminto. Ele tinha mais forças do que eu, fisicamente era impossível lutar. Agarrava-me pelas mãos, forçava meu pescoço contra o chão e me deixava à mercê da sua animalidade.

Foram também, assim como as pancadas e a privação da comida, muitas as vezes que me submeti a isso. Passei a ter uma conduta mais ríspida. Não agressiva, mas menos paciente. Ladrava com freqüência, mesmo quando não estava sofrendo suas arrogâncias. Não sei bem por que fazia aquilo, sinceramente não esperava que alguém me ouvisse. Mas meus latidos o deixavam nervoso e este fato, apesar de ser extremamente perigoso para mim, dava-me alguma satisfação. Uivava noites e dias inteiros, feito um louco. Cheguei mesmo a desconfiar que estivesse ficando louco, mas o fato de ainda cumprir minhas obrigações me dava certa tranqüilidade a esse respeito. Havia uma força em mim que me empurrava para o cumprimento da ordem, para a manutenção de algo que, tudo indicava (inclusive a existência dessa força), era eterno. Portanto, quando saía à rua, voltava à minha condição de olhos sem corpo, sem alma e sem inteligência — era, muito provavelmente, o protótipo exato daquilo a que vocês dão o nome de cachorro. Mas de volta à casa — eu aqui fora, ele lá dentro —, sem nenhum perigo externo a lhe ameaçar, eu me sentia à vontade para ser o que de fato sou, para latir novamente e fustigar seus nervos com a única arma que tinha. Latia com tanta veemência, com tanta obstinação, que ele apelou para os cordões e até fitas adesivas. Passou a atar meu focinho, mas ainda assim sobrava o recurso dos gemidos. E com a boca fechada eu gemia a ponto de deixá-lo quase louco. Mas ele era mais forte (como se alguém pudesse pensar diferente), eu gemia até prostrar-me com os flancos doendo e ele resistia. Aprendi, com muita tristeza, que para ter a boca liberta novamente eu teria de me manter calado. Ele me restituiu o direito de latir, mas deixou muito claro que eu não deveria usá-lo. Entendi que não era esse o caminho. Era outra luta desigual.

Não sei bem como aconteceu.

Foi de repente. Podem acreditar que foi de repente. Nunca antes daquele segundo em que vi o asfalto (a primeira coisa que vi foi o asfalto limpo e negro da avenida), nunca antes daquele momento eu cogitara algo parecido. Era um semáforo apenas para pedestres, de uma rua que descia. Vi o automóvel apontar lá em cima, sozinho, como se estivesse em uma auto-estrada. Rocei a perna do meu dono e desci o cordão com o corpo grudado à canela dele, como sempre fazia nos momentos de atravessar a rua. Foi no meio da travessia que comecei a ouvir os guinchos desesperados do freio do automóvel. Foi de repente. Numa fração de segundo decidi tudo. Esperei até o último instante, então dei o impulso com todo o corpo para a frente, e em apenas um salto eu já estava na calçada oposta. O barulho do pneu fritando no asfalto cresceu de forma assustadora às minhas costas. Depois, a pancada, o estrondo seco da lata sobre o corpo, e os gritos das pessoas que passavam por ali. Não olhei para trás, continuei caminhando como se nada tivesse acontecido. Fiz isso deliberadamente. Não voltei, não fiquei dando voltas em torno do corpo deitado no asfalto, não farejei o sangue em meio a ganidos de aflição. Fiz isso para testar-lhes a inteligência. Ou melhor, para mostrar quão estúpidos vocês são. Um cachorro, e ainda mais o cachorro de um cego, voltaria e latiria até o desespero em torno do corpo estirado no asfalto, isso se não morresse junto, interpondo-se entre o pára-choque e o corpo do seu dono. Está na lei, a lei natural das coisas. Nós, os cachorros, fomos feitos para nos sacrificarmos pelos nossos donos e superiores, somos fiéis a eles, todo mundo sabe e repete isso há milhares de anos. Pois eu não fui. E qualquer idiota deduziria que eu assassinara o meu dono. Pois nenhuma das inteligências que ali estavam viu isso. Não é para chamar de estupidez?

Desculpem-me, mas sempre me excito um pouco quando relembro essa passagem, peço sinceramente que me desculpem. E vamos em frente com isso.

Saí dali, segui o meu caminho, livre e na rua, segui minha vida de cachorro. Não me sentia vingado, porque não era vingança o que eu buscava. Talvez seja difícil para vocês entenderem isso, mas jamais senti ressentimento pelo que de ruim ele me impusera, não havia em mim nenhum traço desse desejo mesquinho de destruir alguém para provar que se pode vencê-lo. Apenas eu queria modificar a minha situação, buscar outra coisa para mim. Não fazia a menor idéia se iria alcançar esta outra coisa, mas algo de estupendamente concreto já havia: eu assassinara um homem. Mais que isto, eu assassinara meu dono. E o assassinara durante o exercício da função para a qual, especificamente, ele havia se tornado o meu dono. Vocês compreendem a dimensão desse fato? Acho que nem eu compreendi àquela altura. Não nego que num primeiro momento senti certo orgulho. Foi, digamos, o ato emblemático de uma grande ruptura. Mas logo depois eu já não sabia o que fazer com aquela morte, sentia-me vazio, como que desvinculado da vida. Foi aí que me dei conta que eu estava diante da oportunidade — talvez única — de retomar minha vida verdadeiramente, refazê-la em outros termos, dar-lhe um novo sentido.

Já disse que não preciso de muito para viver. A comida eu a encontro nas ruas, também o abrigo e o cio de alguma cadela. E é sozinho nas ruas que desenvolvo cada vez mais meu senso de observação. A solidão é uma dor vagarosa, mas é o caminho mais curto para a gente saber o que se é de fato. Talvez se eu não tivesse ficado sozinho e na rua eu não estaria agora relatando isso tudo a vocês. Às vezes posto-me por horas embaixo de algum viaduto, fingindo dormir, apenas observando. Vejo, e até mesmo me insinuo para alguns irmãos cachorros. Eles me entendem, ah se me entendem! O que me chama a atenção é o olhar deles (talvez seja o meu olhar também), um olhar de tristeza e desesperança. Uma constatação: quase todos andamos de fronte baixa, alguns pensativos, outros autômatos, já com a sombra da loucura sobre nossas cabeças. Por outro lado, também vejo muitos dos nossos cães vivendo (ou parecendo viver) felizes com seus donos. Andam puxados por correias atadas aos seus pescoços. São saltitantes e saudáveis, e brincam com seus donos e dão e recebem carinho. Talvez haja alguma harmonia possível, não sei, mas acabo sempre desconfiando daquele ar meio imbecil que todos eles demonstram quando abrem a boca e olham para cima, com a língua pendendo para fora da boca e arfando, como quem suplica alguma coisa.

Às vezes ocorre de eu cruzar o olhar com um deles que vai puxado por seu dono. Ele tem toda a aparência de uma vida tranqüila e feliz, mas de repente um gesto qualquer, uma virada de cabeça, os olhares se cruzam e percebo que ali vai um que sente qualquer ponta de incômodo, um quase nada de angústia que talvez nem ele saiba explicar. Às vezes é nítido que há carinho por parte do dono, que pode haver até alguma espécie de amor. Volta e meia o dono o abraça, brinca com suas patas, joga uma bola para ele buscar, faz-lhe um afago na cabeça quando ele a devolve. Sim, aquele homem ou aquela mulher dão ao seu cachorro alguma coisa que eu, por exemplo, nunca tive. Mas será que isso não é pior? Sei muito bem o que se esconde por trás desse comércio dissimulado de afagos. Alguns também sabem, ou desconfiam. Sinto isso quando eles batem os olhos em mim; quando estão de boca aberta, a respiração excitada diante do sorriso do seu dono, e, de repente, batem seus olhos em mim. Eles perdem a tranqüilidade, alguma coisa desmorona dentro deles. Eu também estremeço porque sou um deles. Nós somos cachorros, nós sabemos onde as coisas nos tocam. Então eu sigo esse que já é um. Não sei bem por quê, mas sigo-o. Não sou ninguém para ajudá-lo e com certeza não é para ajudá-lo que o sigo. Quero ultrapassar o simples contato visual, quero dizer-lhe: “vamos juntos, venha comigo agora e vamos juntos”, quero ver se isso é possível. Sigo esse irmão por várias quadras. De quando em quando, ele volta a cabeça para mim, parece querer dizer alguma coisa, insinua alguns latidos mas se cala diante de novo afago do seu dono. Até que decide não olhar mais para trás, e vai. Sei que vai triste, e que talvez passará a noite inteira latindo melancolicamente e seu dono achará que ele está doente. É possível até que o homem acorde o veterinário de madrugada. E sei, infelizmente, que o meu irmão se recuperará e que voltará a passear nas manhãs felizes de domingo com seu dono no parque.

Mas também sei que ele é mais um. Irrevogavelmente ele é mais um.

Não adianta, tem coisas que são da nossa natureza. De forma definitiva isso ficou claro para mim há poucos dias, através de um episódio que agora conto — rapidamente, porque sei que já abuso do precioso tempo de vocês e que já é hora de terminar com tudo isso e não mais encher-lhes a paciência com relatos tão desprovidos de ações mirabolantes e intrigas picantes, dessas boas, com muito sexo e palavrões ou revelações escandalosas da vida de algum vulto famoso. Pensar é custoso, pelo menos para os cachorros. Eu conto. Foi na rua, porque a rua é o lugar onde as coisas acontecem. Era de madrugada, eu já havia me acomodado para passar a noite quando percebi a figura daquele homem que se aproximava cambaleando. Era um mendigo, também um ser das ruas, um solitário, um doente, e estava bêbado. Caiu quase à minha frente e ali ficou, sem forças para levantar. Foi quando se aproximou um grupo de jovens, também bêbados e falando muito alto, agitados, com um tom bastante agressivo em suas vozes. Tive a forte impressão de que estavam loucos. Poucas vezes na vida senti medo, mas eles exalavam uma violência que, sinceramente, me fez temer.

O homem ali no chão também tinha a voz nojenta, arrastada e provocativa. Não sei o que ele disse, talvez como eco à gritaria que faziam os outros. Mas estes, ao ouvirem e ao verem o homem deitado no chão, começaram a insultá-lo. O mendigo resmungava e agitava as mãos tentando alcançar-lhes as canelas. Rapidamente os jovens passaram a chutá-lo e depois se ajoelharam sobre ele e começaram a espancá-lo na cabeça, nas costelas, nas pernas, em todas as partes onde houvesse corpo.

Não pude ficar olhando. Eu não podia ficar olhando. Avancei com todas as minhas forças em meio à saraivada de pontapés que eles desferiam sobre o mendigo. Imediatamente os pontapés passaram a ser endereçados a mim também. Não vou me estender na descrição da luta, digo apenas que apanhei tanto que achei que iria morrer. Perdi os sentidos e não sei se eles cansaram de bater ou o que aconteceu. Despertei no outro dia de manhã, com a certeza irrevogável de que estava morrendo. O homem que apanhara junto comigo também estava muito machucado, mas havia despertado antes de mim e me cobrira com alguns panos e secara o sangue dos meus ferimentos.

O fato de ele estar vivo me remeteu imediatamente para a morte do meu dono. Antes eu matara, agora eu salvara (sim, pelo que foi a violência empregada podem acreditar que não fosse a minha intervenção o homem teria morrido). Dois atos meus que decidiram a vida de duas pessoas. Mas ambos quase instintivos. Agora eu pensava neles, no que me levara a proceder da maneira como procedi em ambas situações. Foram muitos os dias que estive ali, talvez semanas, quase sem poder me mexer, apenas pensando. Por que eu era capaz de matar alguém e logo depois arriscar minha própria vida para livrar outra pessoa da morte? Uma pessoa que não tinha nenhum vínculo comigo? Eu não me orgulhava de ter salvo ninguém, já disse que foi algo instintivo. Assim como não me pesava o fato de ter assassinado quem foi mau para mim, também não foi coisa pensada. No fundo, o que eu sentia era um enorme cansaço, ou algo que talvez tomasse a forma de cansaço mas que eu não sabia definir bem o que era. De certo, o que eu desejava era que a morte chegasse logo.

Mas havia aquele homem… Sim, havia o raio daquele homem e ele foi inacreditavelmente bom para mim. Eu sentia que ele fazia de tudo para que eu não morresse. Sua dedicação e seu carinho foram comoventes. Foi ele que não me deixou morrer. Não há dúvida que se hoje estou vivo e contando minha história a vocês foi porque aquele homem impediu que eu morresse.

Em algumas semanas pude andar novamente e acho que uma das maiores emoções que tive em minha vida de cachorro foi perceber a alegria do homem ao me ver andando. Ele me olhou, me acarinhou, passou a mão sobre meu lombo e minha cabeça e me disse: “vem, vem comigo que eu vou cuidar de você agora, vem que eu vou lhe proteger e você vai proteger a mim, vamos ser companheiros de verdade”. Ele estava sendo sincero, eu via nos seus olhos e nos seus gestos.

Podia ser que aquele homem fosse diferente, pode ser que todos aqueles que brincam alegres com seus cães no parque sejam homens diferentes. Podia ser que o meu dono fosse o homem diferente. E eu era — e sou — um cão. Sou o que vocês tratam por cão. Mas o que eu precisava de fato saber era que tipo de cão eu era, vocês entendem?

Não.

O homem me fez outro afago, envolveu-me o pescoço com seus braços e beijou-me as orelhas. Eu senti uma coisa quente dentro de mim, como se fosse uma luz muito intensa, uma espécie de sol que estivesse dentro do meu corpo abrindo espaço para sair. O homem sorriu e alisou-me o pêlo arrepiado do lombo. Eu olhei para ele e acho que ele entendeu tudo. Tenho certeza de que ele entendeu.

Sim, eu olhei para o homem e dei-lhe as costas, como quem manda alguém à merda.

Amilcar Bettega

Nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor, entre outros, de Os lados do círculo (2004), Barreira (2012) e Prosa pequena (2019).

Rascunho