Mysterium

Conto de Lygia Fagundes Telles
01/04/2001

Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende dos tempo e do acaso.
Eclesiastes

Ao mesmo tempo e ao acaso eu acrescento o grão do imprevisto. E o grão da loucura que é infinita na nossa finitude. Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos, trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação.

Mas os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas, acabo por pular de um trilho par a outro e começo a misturar a realidade com o imaginário, faço ficção em cima da ficção, ah! tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, que a luz da razão.

Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente. Me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na busca das descobertas, “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa. Preciso agora atravessar o cipoal dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! os indefensáveis signos e símbolos. Ainda assim, avanço em meio da névoa, quero ser clara em meio desse claro que de repente ficou escuro, estou perdida?

Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antonio Candido) onde aprendi que num texto literário há três elementos: em primeiro lugar (ou em último?) aparece a idéia. Vem em seguida o enredo e depois (ou ao mesmo tempo?) as personagens. Ou melhor, a personagem que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única ou se repetir, tive uma personagem que recorreu à máscara par não ser descoberta, quis voltar num outro texto e usou de disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade.

Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a idéia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele vôo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco.

O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida, consegui fazê-lo sorrir? Acho que sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as personagens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A uma condenação. E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, ah! odiosa essa fatalidade dos seres inventados (ou não) caminhando para o Bem ou para o Mal sem mistura, e onde fica a ambigüidade?

Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltas às divagações iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado? Desembrulhando esse próximo, também eu vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obumbrar novamente nesta viragem-voragem do ofício. E vida.

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A temática da vocação que é paixão. Quase peço desculpas ao leitor por não ser mais otimista quando lido com a crueldade. Com a violência e com o medo. Vejo crescer o desamor pelas crianças e pelos bichos, vítimas maiores deste tempo e desta sociedade. Ainda assim, recorro ao humor, quero a graça da ironia para que o leitor não fuja entediado. Espera um pouco! — eu peço a esse leitor. Espera que posso até ficar engraçada mesmo em meio dos acessos de indignação, afinal, não estamos no Terceiro Mundo?

Há um perguntador que quer saber porque falo tanto na morte, nos contos e romances, sempre a morte. Faço uma pausa. Não sou inocente (o escritor não é inocente) e assim poderia agora começar um pequeno discurso para dourar a pílula: que importa a morte se a arte é a própria negação dessa morte? — pois não foi o que Ernest Becker repetiu mil vezes no seu famoso livro? Mas não será preciso recorrer aos livros para dizer uma coisa tão simples, a alma é imortal. A alma é imortal. Na reencarnação, essa alma irá habitar outro corpo da mesma espécie mas na transmigração a alma irá para um corpo que pode ser animal ou vegetal, que não fuja agora o nome do filósofo, Empédocles? “Pois já fui um rapaz e uma donzela, um arbusto e um pássaro e um peixe mudo do mar.”

Na transmigração (metempsicose) de um corpo para outro, o mistério. Que é ainda mais misterioso na sua raiz latina, mysterium. Vamos, repita em voz alta, MYSTERIUM — mas brecando um pouco no Y, boca aberto do abismo, mergulhe nesse abysmo. E repetindo a palavra-senha até ouvir lá no fundo o eco prolongado na queda pedregosa, uuuuuuummm…

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Perguntei à minha mãe se podia escrever o meu nome com a letra i ao invés do y, pois assim seria mais simples. Ela pensou um pouco e respondeu que tinha que ser mesmo com y. Por quê?, perguntei. E acrescentei que na escola até a professora implicava com essa letra que ninguém mais usava, o i era mais fácil. Desconfie das facilidades! ela exclamou ao levantar-se da cadeira para ir até a poltrona, naquele mesmo estilo do meu pai que mudava de lugar quando queria mudar de assunto.

Pronto, também eu mudando de trilho, melhor voltar às personagens nas quais eu tentava levantar a máscara (ou a pele) na busca do outro ou de mim mesma. O jogo é singelo. E malicioso. Fico fascinada porque meu pai era um jogador e dele herdei o vício do risco. Mas ele jogava com fichas e o meu jogo é com as palavras, e então? Perdi? Num país com tão vasta área de analfabetos, não posso pensar em lucro, é claro, mas em alimentar esta viciosa esperança. E agora eu me lembro, depois das generosas apostas na roleta, o meu pai terminava a noite apenas com a quantia exata para a condução de volta, o tal cassino preferido era distante. Ah! como brilhavam seus olhos enquanto dizia, Hoje perdemos mas amanhã a gente ganha.

A servidão da esperança. Esse livro não deu certo mas quem sabe o próximo?… Recuso os meus primeiros livros (as precipitadas apostas) que considero prematuros, começo a contagem a partir do romance Ciranda de pedra, publicado no ano de 1954. Esse romance ficou sendo o divisor de águas dos livros vivos e dos outros.

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Não quero ser compreendida, quer ser amada, respondi ao estudante de olhos asiáticos que se queixava, não entendeu o sentido de alguns dos meus contos. Ninguém compreende mesmo ninguém, difíceis as pessoas. As coisas. Quero apenas que meu leitor seja o meu parceiro e cúmplice no ato criador que é ansiedade e sofrimento. Busca e celebração.

Quis ainda saber qual dos meus livros eu preferia. Respondo que fico com o mais recente e ao qual ainda estou ligada, no caso, esse Invenção e Memória. Mais memória ou mais invenção? É impossível separar as águas de vasos comunicantes correndo pelos subterrâneos do inconsciente. Onde acaba a realidade e onde começa o sonho?

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Na antiga cozinha da minha infância, o caldeirão borbulhante, instalado no fogão de lenha. E Matilde, cozinheira e agregada, preparando a famosa sopa sem receita. Na noite escura, um ou outro morcego vinha se dependurar no teto enquanto ela, também esfumaçada, seguia indiferente na sua ronda sem pressa, preparando a sopa. Os ingredientes. Estendia o longo braço magro até o caldeirão fervente e deixava cair o ramo de ervas verdes. Agora era a vez das sementes estranhíssimas que tirava do boião de vidro — alguma hierarquia na entrada disso tudo? Mais uma aragem de sal que ela deixava cair do alto, num gesto de quase desdém. Não tem receita! respondia fechando a cara. Faço como me dá na telha.

Até que chegou aquela noite, quando minha mãe me chamou, Anda, vai lá e presta atenção em tudo e depois me conte o que viu. Contornei os baldes e caçarolas que aparavam as goteiras que caíam do teto (a tempestade) e fui me sentar num canto penumbroso. Matilde mexia na lenha do fogão, atiçando o braseiro que resistia, intratável. Mascava fumo negro e resmungava coisas desgarradas enquanto tirava a tampa do caldeirão paras mexer a sopa com a grande colher de pau. Com a mesma colher tentou afugentar o morcego mais próximo, Vai, vai Satanás! Fugi espavorida, Ela é louca! Fui repetindo enquanto corria, Ela é louca! Matilde e Macbeth lembrando que a vida “é história narrada por um idiota, cheia de som e de fúria e que não quer dizer nada”.

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E o escritor que pode estar desesperado mas não vai desesperar o leitor, ao contrário, pode até transmitir-lhe alguma esperança. O escritor que pode ser um demente e ainda assim vai afastar o leitor da demência. Ou do vício. O escritor que pode ser um triste e no entanto via fazer rir o leitor nessa terapia silenciosa. O escritor que sendo um solitário, será a terna companhia daquele que está na solidão.

P.S. No ano de 1998, em Paris, na Sorbone, foi realizado um seminário sobre alguns dos meus livros publicados na França. O depoimento que fiz é esse Mysterium que reescrevi hoje.Contista e romancista, Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, mas passou a infância em pequenas cidades no interior do Estado. Entre suas obras, destacam-se os romances Ciranda de Pedra (1954), Verão no Aquário (1963), As Meninas (1973)e As Horas Nuas; e os livros de contos Antes do Baile Verde (1972), Mistérios (1981), Venha ver o pôr-do-sol (1987), A Noite Escura e Mais Eu (1996)  e Invenção e Memória (2000). Suas obras principais estão sendo reeditadas pela Rocco.

Lygia Fagundes Telles
Rascunho