Museu da noite

Poema inédito de Fernando Monteiro sobre o incêndio no Museu Nacional
29/10/2018

I
E devemos nos levantar
tal como os ventos se levantam
de algum lugar atrás dos ossos
da noite brusca
apagando a luz polida
do antigo tacape de Tibiriçá
na assombrada sala de mãos
brancas dos últimos fantasmas
do Império queimado
num Hermitage latino
deste lado do oceano
de navios negreiros até o casco
de castros portugueses.

Porque ficamos do lado das pedras,
porque permanecemos no silêncio
de cinzas das etnias perdidas
entre as árvores mais altas,
ao penetrarem no vórtice
das chamas.

E porque, entretanto,
nada
esperamos encontrar
da palha frágil de indígenas
na trama da desesperança,
e nunca teremos de volta
a memória dos dias de clareira
de Nimuendajú
e seus pássaros soprados
nas volutas da fumaça na noite
caída sobre a Herança
do primeiro crânio não-hiperbóreo
superposta sobre as rotas do Homem
sul-americano pelos estreitos
da ciência que não sabe interrogar
a beleza creacionista
do trono africano vindo
de Daomé para a colônia
de poltronas alfacinhas
para poltrões de veludo.

Foram também pelo ralo
nesse fogaréu de louças
brasonadas os utensílios dos Braganças
e os dos Caetés,
as modestas coisas de gesso,
os estuques e as têmperas diversas
também dissolvidas pela água
numa pasta de ruína
que esquecer não logramos
(ou pelo menos não como sabemos
ser impossível requeimar o núcleo
de ferro e níquel do meteorito
na porta da quinta visão do inferno
no “coração da treva”
como foi chamado o coração
insone do animal de dentro
no recesso da nossa sombra),
ainda salgada do mar
da Descoberta de praias
desoladas de inocentes
antropófagos que também
nos legaram ossos dispersos
pelos nossos Sirocos
sem Veneza…
Eu não dormi nesta
— Recife de lama entre as pontes —
eu não preguei olho
na sopa fervente do vermelho
e do negro do Ibope marcando
pontos top para a TV mais perto
do calor da fogueira gigante.

[E você, conseguiu dormir mesmo apesar
do Fantástico cinismo global?…]

Sem temer,
devemos nos acercar do picadeiro
no centro do sinistro do qual somos
os mesmos figurantes de sempre:
espectadores do lado de fora
migrando dos golpes do inverno
para o verão noturno dos cadeirões
dos Pedros nas poltronas marcadas
desde ambos
nunca para o escravo do escravo
que não se liberta da fome,
mas para o nome de latão sujo
gravado na fronte dos Andradas
da Justiça que agora tem vergonha
de dizer como se chama
entre aquelas que mais nunca
se apagam.

II
Numes
do arpejo de água dos canais
de irrigação ressecos,
longe dos nimbos da chuva
lavando uns pós de afrescos
da Pompeia empoeirada
antes da lava menos quente
do que o fogo do incêndio.

Deles não resta mais nada,
neste setembro quente
como o Hades mais denso
numa única noite do museu
daquelas tão delicadas cenas
pintadas em biombos de seda.

O que representavam?

Por quantos doze meses
de duzentas indiferenças
recolheram a pressa,
o olhar rápido demais,
a camada de pó
do desinteresse?

Não há mais como saber,
nem importa mais para nada
e nunca foi de muita relevância
entre memórias apagadas
nas paredes da caverna de Lagoa
Santa para ninguém.

E nada nos leva a acordar
para o trabalho sem sentido
num ar de pesadelo
que, sim, nos acorda
só na hora do assassinato
das “coisas findas”
(muito mais que lindas etc).

Ora, talvez os afrescos fossem
de meras cenas de pastores
entre melancias e peras
na pintura feita para os olhos
das ovelhas das Cortes
em domingos de feira,
com entrada grátis,
amendoim e pipoca
e goma de mascar
colada no vidro explodido
do sarcófago que seguia
intacto.

Ou talvez fosse um eco seco
da história que imaginamos
para nós mesmos,
de modo a rematar o tema
na boca de um vate condoreiro
cujas palavras se enredem
entre velas dos últimos corcéis
ainda selvagens da pulsão
do desejo que cessa,
ou que está perto de cessar,
nesta hora crepuscular
à deriva do cencerro das idades,
do som campestre de reses
nos avisando sobre a distância
da Natureza
e da Obra carbonizadas
pela indiferença.
A primeira se separou de nós
ou nós nos separamos dela
— igualmente não importa
quando estamos à beira do abismo
de baixo que é igual ao abismo
de cima,
Tábula Esmeralda invertida
do Cosmos em crise
pela desordem de estrelas
e planetas de Denderah
(talvez o signo que agora
nos orienta como o louco
com a navalha
de sílex na venta,
assassino em série do destino
com a faca na mão no poço
de solidão da idade da Terra
em Transe mesmo,
realmente,
de novo
e sempre).
III
Trata-se do quadrado mágico
de novo oscilando sob Sirius
e mais uma vez arruinando
os castros de cânticos cantábricos
e ovelhas atentas
entre as últimas colunas de lajes
que restaram como pranchas
do museu esvaziado do passado
que perdemos.

Nossos olhos se tornaram
as janelas ocadas
vistas nas redes,
órbitas quadradas sem olhos
cubistas de oferenda
no vácuo do Espelho
do nosso retrato sem máscara
(a máscara assustada da múmia
secreta do Rio de Janeiro).

Trata-se de ver (de novo)
avencas na borra
de uma adivinhação tão fácil:
queimou porque queimou
no “limite da espera”
de esperança
café frio
e uma rede equatorial,
uma sede de marsupial,
uma febre de tormenta
a faiscar de labaredas
nas paredes de Senhores
cuja herança contava a história
da raça:
uma longa confusão que salta
dos livros escolares para o limbo
da consciência,
essa recordação breve,
de mercadores de outras terras
que mourejaram até a sertã
dos Canudos de frigideira
(uma imagem para o deserto
de escassas messes entre
as reses tresmalhadas
do degredo)
desde Fernando
Lopez de Santa Helena
decidindo voltar para a solidão
do desterro por alguma afeição
do silêncio (e da certeza de estar
só, definitivamente só),
tão longe quanto possível
da visão crescendo para perto
do Cavalo Amarelo
capaz de cavalgar um mar
mas ser detido pelo copo
de água negado aos mendigos
que amaldiçoam os hidrantes.

IV
Somos estes (ainda)?…
Os Herdeiros do desterro?
Os descendentes do Degredo?

Somos os filhos da história
mil vezes contada — mal —
a respeito de Cabral
haver sido teleguiado pelo marinho
tubarão do acaso que termina
em incêndios de segredo?

Nada sabemos de nada
nem das naves que se perderam
antes dele,
quando aqui era uma ilusão
de algum mapa errado,
não rigorosamente,
mas dentro do epitáfio do Centavo
que reza:
“nasci num país meio selvagem,
fora de época”.

Nascemos assim mesmo
— e com a vocação da traição
de nós mesmos para dentro
dos golpes na voz do sangue
na neve que não conhecemos.

[Você já viu a neve?
Ela não é propriamente brasileira]

Ela não recobriu de branca pena
as valas comuns dos Perus
das ossadas para sempre confundidas
sob a garoa
por sobre o silêncio nos cabelos
de sangue e arsênico,
quase duzentos anos depois
da notícia publicada no Diário de Pernambuco
também de um segundo dia de setembro,
em 1840:
Chegou ao Brasil, aportando no porto da Bahia no dia 28 de agosto passado, o navio La Belle Poule, a cujo bordo viajava um legítimo representante da realeza de França, Sua Alteza, o Príncipe de Joinville, em comitiva assistida pelo Conde de Rohan-Chabot e os ilustres convidados Generais Bertrand e Gourgaud no rumo do Atlântico Sul (…)

V
Do que trata este poema
debaixo do som de chuva
na água que se perde
contra as portas do Demo?

Pergunta longa
de imagens (ainda) num céu
que vertemos no rosto
corando pelas mãos lavadas
dos Pilatos sem Credo
para quem importa
niente,
never
nas chamadas de fuga
dos aeroportos.

Sempre tudo
é tão tarde que fica para trás
na neblina dos Viracopos
do país a jato abandonado
pelo binóculo invertido
dos trânsfugas de alma
e corpo envelhecidos
antes da hora décima quinta
que nos marca
pela culpa nunca decretada
claramente
na passagem do tempo
em que tudo se esquece
na messe que enlouquece
a quermesse et coetera
— enquanto tentamos ver claro
(ainda tentamos)
no que resta pela frente
da “vanguarda do atraso”
a nos deformar nas salas de espelhos
do restolho dos panos de velas
que ainda escutamos dos navios
que vieram como cães da Europa
ciumentos da cadela de Pindorama.

Vê-la, então, será
como ver
a Prostituta da Babilônia
de algum Walter Machado
numa Praça Onze
sem existência
na escuridão de Areias
da miniatura reduzida a pó
debaixo do sapato de sola grossa
no meio do lixo da catástrofe,
de volta aos extremos da banalidade
da segunda-feira
sem Justiça
nem Verdade
nem Beleza (para sempre
arruinada?)…

Porém posso ver
que foi um erro seguir
para o fundo de setembro
atravessando a fronteira pedestre
na noite da satura suburbana
de barracas e garagens de ferrugem
entre luzes de supermercados cheios
da vida rude dos subúrbios
no domingo não-santo
mas pronto para o vício
depois do entardecer entre bêbados
e um quintal de jasmins
subindo até a modelada
pera de seios desnudados
na falta de palavras
para descrever o Museu ardendo
em frente do lago de cisnes
importados.

E, sim, devemos ler no sentido
anti-horário a injustiça
do olho,
ver o tempo que não passa
quadro a quadro nos passos
da dança um palmo acima
in the dark.
E escrever ainda supondo que haja
motivo entre escombros
por razão alguma
que um novo Castro
ainda consiga se erguer entre
os jacintos vencidos por corpos
de ginastas movimentando-se
sobre esteiras de quilômetros
e quilômetros
de qualquer forma para a morte,
de qualquer sorte para um fim
que nada explica da alma
— a palavra desabada sob a tampa
de ferro de um piano de chumbo
esmagando finos dedos da louça
que irá ser requeimada
até o ressecamento da água química
no fóssil da História.

Quando começou essa morte?

Quando terminará?

Não,
ainda não é possível ver claro
num mundo cego para os começos
e os términos no coração dos domingos
e do Congo de dentro,
no Sudão da treva deformando
lábios de chicletes colados
em borrachas & plásticos
derretidos antes da cera
mortuária da máscara
que revelou quão pobre
era o rosto do morte
de um museu na noite
do desespero.

Recife, 7 de setembro de 2018

NOTA DO AUTOR
Este poema em cinco partes começou a ser escrito sob o choque da noite carioca da desGraça de dois de setembro de dois mil e dezoito. Estive insone a madrugada inteira, e parti para compor a música triste dos dedos de uma mão fechada no peito na madrugada e em alguns poucos dias mais — suspensos, irreais e cheios da perplexidade de quem perdeu muito além de um magnífico Museu, numa noite de chamas filmadas por todos os ângulos da treva. Este poema é pessoal e intransferível como uma carteira de identidade queimada junto da cinza de algum documento que foi parar nos subúrbios mais distantes do incêndio. Este poema tem aquela espécie de “urgência” dos gritos de Pasolini calados ainda antes do dia 2 de novembro de 1975 (porém eu não sou ele, o grande poeta, e permaneço — para meu azar — vivo num país que morre lentamente).

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho