O fascínio que de tempos em tempos a figura de Salomé desperta nos escritores é algo difícil de explicar. Eleita a musa da estética decadentista, ela foi imortalizada não só por Oscar Wilde e Mallarmé, como ainda por Flaubert, Huysmans, Laforgue e Eugênio de Castro, para ficarmos só nos medalhões do final do século 19. Valeria perguntar: tanto interesse deve-se tão-só à crueldade e à sensualidade que a tornaram célebre no decorrer dos tempos? Tudo indica que não. Aliás, tal questão, já formulada por Álvaro Cardoso Gomes — “Por que tanto fascínio por essa misteriosa figura, se o passado foi tão fértil em semelhantes criaturas que nada ficam a lhe dever, como Helena, Nefertite, Cleópatra, Messalina, etc?” —, levou-o a concluir que, particularmente para os simbolistas, havia uma razão ideológica para se compor prosa e poesia a respeito de Salomé. Avessos à idéia da coisificação da arte, coisificação que o positivismo científico e a revolução industrial ameaçavam estabelecer como norma, os simbolistas foram movidos justamente pelo desejo do gratuito, pela arte que não tivesse outra utilidade que não fosse a de ser apenas isso: arte. Salomé casava-se perfeitamente com tal programa, por ser ela, mais do que cruel e sedutora, o ser que concentra em si a quintessência da gratuidade.
Ao pedir a cabeça de João Batista em vez de riquezas ou de metade do reino de Herodes, Salomé está, ao mesmo tempo, diferenciando-se das demais mulheres fatais da história da literatura e escarrando nas faces rechonchudas do bom burguês. Com a decapitação ela não obtém coisa alguma em troca, exceto o prazer que só o mais gratuito dos gestos poderia proporcionar. “Seu ato não se explica à luz dos clichês com que a tradição costumou tratar as grandes cortesãs. Não é o dinheiro nem o poder que a movem, mas o ato que a engrandece pelo absurdo da gratuidade. Em conseqüência, Salomé é erguida à condição de um símbolo muito caro para a época: a de contrário ao interesse, contrário ao lucro, contrário ao que fazia as alegrias da sociedade mercantil. Salomé é a prostituta não coisificada pelo dinheiro”, afirma Álvaro Cardoso Gomes no ensaio Salomé, starlet simbolista. O que ela extrai do assassinato do santo é similar ao que o apreciador refinado extrai da obra de arte: apenas prazer, nada mais. No exato instante em que, à procura de sua musa, os escritores finisseculares deambulam entre ninfetas, sexagenárias, lésbicas, estéreis e meretrizes, Salomé elege como divisa, metonimicamente, a cópula sem fins lucrativos, o tesão por si mesmo, desvinculado de qualquer intenção procriadora. Imersa em luxo e luxúria, ela faz da fome sua razão de viver, confirmando que a decadência e a dançarina nasceram uma para a outra.
Menotti del Picchia conhecia a fundo boa parte dessas Salomés, principalmente a versão operística de Richard Strauss. Porém, dadas as diferenças de procedimento literário, é difícil dizer se aos 50 anos, depois de sucessivos embates em nome da arte moderna, ele ainda se interessava pelas questões teóricas mais profundas do Decadentismo. A realidade em que vivia e trabalhava parecia, na época, desenvolver-se a anos-luz de distância dos movimentos que agitaram a Europa do século 18, apesar de hoje termos a sorte de poder ver com mais clareza o vínculo indissolúvel que une todas as vanguardas do século de Menotti ao movimento desencadeado por Baudelaire e seus confrades. Filho da Semana de Arte Moderna e, mais ainda, de Mário de Andrade, além de um dos mentores do movimento Verde-amarelo, Menotti não poderia jamais inserir sua criatura num universo fantasmático genuinamente europeu. Seu compromisso sempre foi com a terra brasilis, com as coisas do lado de cá do Atlântico. Tanto isso é fato que vemos na obra deixada pelo autor de Juca Mulato preocupações bem mais profanas e pueris, para não dizer ufanistas: o rompimento com as tradições acadêmicas européias, a busca de novas formas de expressão e da linguagem autenticamente nacional.
Paraísos artificiais
O que desconcerta na Salomé de Menotti é o fato de, apesar de haver sido publicada em 1940, apresentar a estrutura convencional e já bastante mastigada das novelas pré-modernistas (aliás, sem querer entrar no mérito da questão desencadeada pelo termo cunhado por Tristão de Ataíde e amplamente aceito pelos historiadores literários, talvez fosse mais pertinente substituí-lo por art nouveau, como sugeriu José Paulo Paes depois de se debruçar sobre boa parcela da ficção produzida entre 1890, data do fim do simbolismo, e 1920, data do início do modernismo). Não à toa, a personagem principal da novela de Menotti é justamente a musa dos simbolistas em geral e dos artenovistas brasileiros em particular.
A novela divide-se em duas partes simétricas, cada qual dividindo-se, por sua vez, em seis capítulos. Tal diagrama visa estabelecer o espelhamento entre os dois modos de vida possíveis em países como o Brasil, que, apesar de tocado pela mágica varinha da revolução industrial, ainda mantém em seu território regiões que se recusam a tirar os pés da Idade Média. Na primeira parte da obra temos a excitação, o burburinho, o corre-corre da vida na metrópole. Na segunda, o idílio, a tranqüilidade e a paz da vida no campo. Aliás, a primeira acusação que se pode fazer a Menotti del Picchia é justamente a de ter lançado mão desse exagerado esquematismo. A fim de transportar a tragédia narrada por São Marcos para o entreguerras de uma nação que teve a sorte de se manter distante dos grandes conflitos, o autor só em raros momentos consegue escapar do estereótipo, da mera colagem de Salomés mais antigas e mais bem-caracterizadas, ao compor sua própria heroína.
A primeira parte da novela, ágil e tempestuosa, acompanha o conflito urbano envolvendo dezenas de personagens: Totônio, Eduardo, Salomé, coronel Antunes, dona Santa, padre Nazareno, Marina, dona Graça, doutor César, Capivara, Nelo, Cotti, Carmen, Alcebíades… A personagem principal de Salomé, no entanto, não é Salomé, é João Batista, ou melhor, Eduardo, uma das figuras mais patéticas da literatura brasileira. Sua função na novela é desencadear a birra de todos os que estão ao seu redor. Introspectivo, incorformado, jogado das alturas da aristocracia devido à desastrosa forma com que o pai administrara os bens da família, Eduardo tem de trabalhar como cantor numa rádio para sobreviver. É mais um zumbi descalço, atordoado pela queda súbita e jamais esperada. Não inspira admiração nem respeito, muito menos compaixão. Em alguns momentos de brilho percebemos nele a chama da revolta, a intenção por parte do autor de criar um laço de consangüinidade entre Eduardo e figuras muito mais proeminentes da prosa realista, como Julien Sorel e Raskolnikov.
Três importantes conflitos movimentam os diversos grupos de personagens, fazendo com que, seja qual for sua procedência ou atual situação social, se atraiam e se repudiem de tempos em tempos. No primeiro grupo, Eduardo ama Marina, que ama Eduardo. Esse amor, no entanto, está contaminado por gestos pueris, de folia infantil. Em toda a novela não há um só momento em que se encontrem para consumar, de maneira literária, tal sentimento, pois ambos têm personalidade de criança e são subdesenvolvidos emocional e sexualmente. Estão o tempo todo se desencontrando. Eduardo passa boa parte dos primeiros capítulos indo da rádio para cinemas, lanchonetes e festas, a procura de uma Marina que está sempre em outro lugar, que está sempre deixando atrás de si um bilhete, um recado por terceiros, um telefonema. Por seu turno, dona Graça, mãe de Marina, planeja para a filha um casamento de interesse com o banqueiro MacGregor, homem bem mais velho do que a filha.
Tanto nesse primeiro conflito quanto no segundo, entre Salomé e a mãe, dona Santa, o que está em jogo são os valores de duas gerações antagônicas. De um lado o bom e velho matriarcado digno de senhores e senhoras feudais, do outro, a crença no livre-arbítrio amoroso e o desejo desmedido de liberdade (seja lá o que tal palavra venha a encerrar, pois os que ambicionam a liberdade são, em Salomé, os seres adormecidos de Espinosa, que têm consciência de suas ações mas são ignorantes das causas pelas quais são movidos a praticá-las) por parte da jovem geração da era do jazz e do rádio. Ponto para Menotti: na primeira metade da obra a personagem que empresta o nome à novela não aparece em nenhum momento. Ficamos sabendo de seu temperamento turbulento aqui e ali, por uma correspondência ou algum comentário incidental. Como, por exemplo, por meio da carta que a mãe recebe de Paris, missiva essa que, ao ser lida quase que em silêncio, revela muitíssimo sobre Salomé simplesmente ocultando a sua presença física, e revela mais ainda sobre a própria dona Santa, que dialoga com o papel cheio de garatujas como as poderosas rainhas dos contos dos irmãos Grimm: enxergando nele o espelho que lhes mostra não serem elas as mais belas mulheres sobre a Terra.
Ausente Salomé, quem tenta carregar-lhe a tocha sagrada é Marina, moça frágil, indecisa, que ora procura escapar dos limites impostos pela mãe, ora reforça-os com o mais subserviente dos comportamentos. Sua crise é a da jovem mulher à procura de uma persona condizente com seus anseios sexuais. Jovem mulher sem, no entanto, a necessária fibra, sem a coragem libertadora que lhe permitiria assumir esses anseios. Com rompantes histéricos que a obrigam a procurar Eduardo de maneira cega para em seguida abandoná-lo sem dizer palavra, Marina é a mulher fatal que não deu certo, assassinada antes de nascer, morta no útero de si mesma.
O terceiro e último embate se dá entre padre Nazareno e o mundo. É com curiosidade que acompanhamos a trajetória desse padre cuja sina é misturar-se com os miseráveis, procurar neles a cota de humanidade que não encontra nos bem-nascidos — em verdade tal trajetória nós a cotejamos o tempo todo com os passos de João Batista, na Bíblia, já antevendo o momento da decapitação. No entanto, a cabeça que irá rolar não será a sua, mas a de Eduardo. Tal quebra de expectativa, de efeito puramente dramático, será uma das gratas surpresas para o leitor.
Femme fatale
Se há uma femme fatale na primeira parte de Salomé, essa é Carmen — persona, antes de qualquer outra, de Carmen Miranda —, garota pobre, irmã do futuro grande jogador de futebol Alcebíades. Carmen tem uma única ambição na vida: cantar no rádio. De corpo bem-feito e temperamento exuberante, não demora a cativar Cotti, que passa a lhe dar aulas gratuitas de canto. A personagem infelizmente não vai além da condição de mera coadjuvante, não chegando a decolar. Sua ingenuidade de moleque num físico de mulher fatal aos poucos vai desaparecendo de cena sem deixar vestígios. Não há mistério nela, não há sequer a sedução destrutiva de sua homônima romântica, da novela de Mérimée. Cotti, o professor de meia-idade, não chega a se apaixonar nem a se desfazer da carreira, da mulher e dos filhos, para seguir seu destino de dom José tupiniquim. Todo o seu drama se reduz à puerilidade de não ter conseguido fazer da moça uma grande cantora lírica, de tê-la perdido — se é que alguma vez a teve — para a carnalidade dos ritmos populares. O samba literalmente canta mais forte nas artérias de Carmen. Mais uma vez dá-se o choque entre o velho e novo, entre a revolta de Beethoven (compositor predileto de Cotti), ininteligível para as massas, e as sinuosidades eróticas da MPB, que, alimentada pelos padrões do mercado norte-americano, já começa a firmar o pé na cultura nacional.
Apesar das marcas do romance clássico, burguês e realista, há elementos em Salomé que indicam a tentativa do autor de se desprender da tradição. Os capítulos, por exemplo, são constituídos de microcapítulos, de pílulas de prosa, à maneira dos romances modernistas de Mário e Oswald de Andrade. Não há como negar que com apenas uma, no máximo duas páginas, Menotti entrega ao leitor quadros inteiros e bem-acabados, com absoluta economia de meios. Dos três conflitos mencionados acima, sobressai-se, como não podia deixar de ser, o de dona Santa, Herodias tropical. Aristocrata, acostumada a comandar não só a casa mas também o marido e a filha, Santa, apesar de ter se casado duas vezes, jamais conheceu o prazer carnal. Em verdade, jamais viveu qualquer emoção mais forte do que a proporcionada pelo sentimento do dever social cumprido. Figura sombria, ctônia, seu principal elemento são as rochas das profundezas da terra. Caminha tal qual Cérbero, guardião dos infernos, pelas reentrâncias escuras, disposta a sacrificar seja o que for para que as normas de conduta de seus antepassados sejam seguidas à risca. As características de Santa — rabugenta, intransigente, demagógica — encontram-se presentes em dezenas de outras personagens femininas e masculinas da literatura de língua portuguesa produzida a partir do romantismo. Mas pela primeira vez os paramentos da mater familias, defensora acima de tudo da moral e dos bons costumes, são convocados para vestir Herodias. Obviamente “moral e bons costumes” tem aqui um significado inverso ao etimológico. A moral de Santa é, como ela própria, um emaranhado de normas estéreis, cujo valor civilizador há muito se perdeu. Os sentidos embotados, contrários ao toque e ao estímulo das artes em geral, são nela fruto da verdadeira decadência de uma sociedade.