Mundinho

Conto inédito de Thássio Ferreira
Ilustração: Conde Baltazar
01/12/2020

Mundinho enamorou-se da selva. Apesar dos avisos, dos interditos, das tentativas do Zé Caboclo. O Zé, pescador cheio de brios, não queria o filho no rio, nem nos lagos, nas beiras, nem dentro da mata. Mundinho era pra contrariar o apelido: ganhar o mundão. Apanhava de cipó pra ir à escola, não era pra ficar de pavulagem com os moleques, pelas ruas de tijolos, pelos barrancos do Envira. A mãe obedecia o marido, ralhando pra ele tomar jeito, estudar, estudar, não fosse ficar grande sem ler nem escrever feito ela e o Zé.

Mas quando o pai subia o rio no batelão da colônia de pescadores, pra ficar duas, três semanas, na época da despesca do pirarucu, Mundinho fascinava. Os peixes outros eram peixes outros, de sempre, mandi, surubim, mocinha, traíra, piau, bodó. Mas o pirarucu era o rei das águas, e as histórias que os meninos e os mais velhos contavam brilhavam dentro de Mundinho feito ele nem sabia quê.

Gostava mais das narrações dos garotos mesmo, em tom de aventura, alvoroço de quebra-cabeça, cada um desenhando um pedaço, trepando os causos: da paisagem beira d’água que parecia às vezes tão igual que era como se o barco estivesse parado, ou dando voltas em círculo pelas tantas curvas do rio; dos lagos em ferradura que o Envira formava quando a força da enxurrada mudava o curso do leito; das buiadas daquele touro aquático (Mundinho não conhecia baleia), quando subia pra respirar, tão imenso que não conseguia, embaixo d’água, todo o oxigênio de que precisava; as arpoadas, os golpes em cada lado da cabeça assim que o peixe era puxado pro barco; e a sangria, o corte das mantas, a salga. O escuro das noites. Era com isso que o garoto preenchia as lacunas do que lhe contavam: com o escuro. Tão fascinante pra ele quanto as imagens. Mundinho queria as brenhas, os breus, o que lhe contavam, o que imaginava e talvez mais que tudo: o desconhecido. Que se danasse o mundão lá fora, de postes de luz e tudo que a tevê mostrava. Queria a fundura do espanto.

Daí veio o moço de óculos, junto com o moço do governo. Naquele dia, quando o Zé chegou em casa, avisou:

— Amanhã você vem comigo na colônia. Vai ter conversa com o homem da secretaria e outro que veio de Brasília, foi uns pessoal lá de fora que mandou ele, pra organizar a despesca e arrumar preço melhor pro pirarucu. Eu sei que você gosta disso, quer subir o rio, mas não é assim não. Você vai pra ouvir o moço lá falar, pra aprender alguma coisa, pra ver como é quando a pessoa ganha o mundo lá fora e sabe falar.

Mundinho concordou em silêncio, tentando disfarçar a agitação.

No dia seguinte o homem de Brasília falou menos do que Zé esperava, logo no início, e depois ficou escutando os pescadores, fazendo uma e outra pergunta. O garoto se perdia nas falas tantas, nem tudo lhe interessava, ou entendia, o preço do quilo de cada peixe, se na cidade vendiam só no mercado ou pra quem vinha na beira do porto, se a colônia tinha regimento. Regi o quê??

Mas uma coisa ele entendeu, e quase pegou nas mãos feito uma pedra muito preciosa: dali quatro dias os pescadores subiriam o Envira pra mostrar pro moço de óculos como era a despesca do pirarucu. Vinte dias. Uma chance. Se o pai queria que ele prestasse atenção no moço, e se ele mesmo queria, por razões outras, porque lhe atraía não o jeito (do) forasteiro de falar, mas o brilho nos olhos, por trás das lentes, querendo conhecer mais fundo as entranhas úmidas daquelas terras de água, então ele haveria de convencer o pai a também ir no batelão.

E convenceu. Com ajuda da mãe, que disse:

— Deixa, Zé, capaz assim o menino tirar logo isso da cabeça.

E foram. Zarparam com o dia clareando, antes do sol despontar por cima das copas das árvores e molhar o rio de reflexos. Mundinho muito do quieto, espichando as vistas pras matas altas, pra lá das margens, a boca aberta, sem decifrar o friozinho da barriga naquele calor pe-ga-jo-so. Se enamorando. Quando já noitinha quase, chegaram em Porto Rubim. Dormiram.

Dali pra diante, dias parecidos: levantar cedo, juntar as coisas, rumar pro lago, pescar de arpão ou malhadeira, sangrar, salgar, rumar de volta ou até a próxima comunidade ribeirinha, rio acima. O Lago Horácio. O Santa Júlia. Mucuripe Velho e Mucuripe Novo. Orelha. Pedro Paiva. Sabiaguaba. No começo ele prestava muita atenção nos gestos dos mais velhos alongando e rasgando o tempo, como o moço de fora também prestava. Os homens espalhados em canoas nos lagos maiores, pra contar a quantidade de pirarucus conforme as buiadas, o moço perguntando aos pescadores de que tamanho era e anotando: tantos adultos, tantos bodecos. Os peixes trazidos ao barco pelas mãos tesas, veias saltadas, a pancada em cada lado da cabeça, um corte profundo logo atrás, seccionando a medula, pra imobilizar o bicho, e a sangria: o terçado correndo entre as guelras e o ventre, por onde o sangue escoa mais rápido. Lavar o corpo de escamas avermelhadas, em seu mais de metro e muitos quilos. Depois, as folhas de bananeira ou de palmeira brava no chão, o peixe estendido, o corte das mantas: uma linha desde a cabeça até a nadadeira caudal, e tiram-se as peitorais, anal e dorsal, depois as escamas da cauda até a cabeça, pra então cortarem longitudinalmente os dois nacos enormes de carne macia, gordurosa, prontas pra serem salgadas (após se retirarem as vísceras). O sal traçado, mistura de grosso e fino, passado sobre as mantas, empilhadas a quase um metro numa caixa ventilada por cima, sem escoamento, acumulando a água liberada e submergindo as carnes na própria salmoura.

Mas com o passar dos sóis, das águas, das noites, Mundinho ia se desinteressando daquela repetição de atos. Que eram ainda como um arranhão na superfície da floresta: chegar, pescar, partir, rumando cada vez mais na direção da volta: a cidade. Agora que podia ver e montar por si próprio as peças do quebra-cabeça, interessava-se cada vez mais pelas lacunas. Pelos detrás, pelos escuros. Olhava pra onde ninguém olhava, acalentando dentro de si um carinho que já começava a entender mas ao mesmo tempo ainda não, muito confuso mas de uma força maior que a do maior rio na maior cheia, pensava. Uma vontade.

O batelão chegou na última comunidade: meia dúzia de casas em palafitas, tão longe que nem nome tinha. Era o “sítio da Dona Dica”, a matriarca em torno da qual passaram a morar filhas com genros, filhos com noras, sobrinhada, netos com bisnetos. O grupo foi se arranjando pelas casas. Zé Caboclo e o filho ficaram na própria Dona Dica, que de cara viu nos olhos de Mundinho um arrepio diferente. Ficou curiando, canto de olho, enquanto a noite caía rápida, enquanto botava janta, enquanto comiam. O garoto percebeu, e esticou o arrepio do olho, como quem dá a mão: “Eu quero. me ajuda.”

Depois da janta o Zé chamou o filho pra dormir, mas ele pediu pra ficar olhando o céu, ia depois. Sentou na varanda de ripas, pernas esticadas, encaixando a cabeça nos ombros levantados, as mãos apoiadas no chão com os dedos abertos virados pra trás. Olhava pra frente, fitando o muro de escuridão, levantava a cabeça, descia de volta. Dona Dica se achegou. Coçou as costas no tronco fino que fazia às vezes de batente da porta.

Mundinho falou devagar, sem se virar:

— Aqui é tão bonito.

— É sim.

— Eu não quero voltar.

Dona Dica suspirou. Aproximou-se do garoto.

— E a sua mãe?

Mundinho abaixou a cabeça em silêncio. Mas logo a ergueu de novo, os olhos vidrados mirando a floresta, a voz resoluta:

— Eu gosto daqui. Eu sinto… Como que eu sou daqui, sabe? Pra eu ficar.

Ela sabia. Dentro da noite escura, onde o silêncio murmurava burburinhos da mata, o rio descendo suas águas, rumorejando rumo ao mar, ela sabia. Passou uma estrela cadente. Dona Dica apontou:

— Olha — E quando o brilho se apagou no longe, emendou: — Teve uma vez que a minha mãe tava olhando o céu e passou uma estrela daquelas. Ela disse “Vai ter guerra. As estrelas criaram rabo”. No dia seguinte estourou revolta no seringal. A gente fugiu. Foi assim que eu vim parar aqui.

— Eu vou ficar, dona. Mesmo se não for aqui co’a senhora, eu vou ficar. Na mata.

— Amanhã a gente vê. Bora dormir.

Manhã cedo, café tomado, o pai chamou:

— Bora, Mundinho. Despede da dona.

— Eu vou ficar, pai.

O Zé olhou meio torto, de boca aberta. Desentendendo.

— Não pode, filho. Vumbora.

— Não, pai.

Ele nunca vira aquela firmeza na voz do menino. Nem aquela intensidade nos olhos: tanta vontade e tanta súplica. Virou-se pra Dona Dica, que observava da porta, encolheu os lábios e arqueou as sobrancelhas pro Zé, como dissesse “Fazer o quê?”, logo em seguida soltando a musculatura do rosto, piscando bem devagar, como se completasse “eu cuido dele”. Zé surpreso. Contrariado.

— Que não o quê?! Me obedece, Raimundo! A tua mãe…. Anda!

— Não, pai. Eu sou daqui. Eu quero aqui. Na floresta.

A palavra. Invocada na boca do garoto com tamanha claridade, feito o céu infindo. Com a força do rio que arrasta por baixo, mesmo quando as águas parecem calmas. A floresta e seus mistérios o Zé respeitava. E Mundinho ali, sem tremer a voz, sem tremer o corpo, sem tremer o olhar. Invocando a floresta. Dona Dica deu dois passos pra fora da porta.

— Deixa, Zé. Traz a mãe dele aqui, depois. A gente vê.

Zé desviou os olhos de volta pro menino. De volta pra Dona Dica. De volta pro menino. Alongou o próprio olhar dentro do olhar do filho. E disse:

— Dá um abraço no pai.

Mundinho correu palafitas abaixo. Apertaram-se, bem apertado. Desenlaçaram-se, sem choro.

O batelão partiu. A mãe veio, depois. Vieram mãe e pai, outras vezes. Mas Mundinho nunca mais desceu o rio.

Thássio Ferreira

Nasceu em São Gonçalo (RJ), em 1982. É poeta e ficcionista, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) (Autografia, 2019), todos de poesia. Escreve quinzenalmente na Revista Vício Velho. O conto Mundinho integra o livro inédito Cartografias, vencedor do Prêmio Cidade de Manaus 2020 e finalista do Prêmio Sesc 2017. Seu próximo livro, Nunca Estivemos no Kansas (contos), deve ser publicado em 2021.

Rascunho