Desesperador. Era a única palavra que Talita conseguia combinar com aquele amarelo-ouro nas paredes da sala.
— E então? Você acha que ela vai gostar?
A cena, estimulante, merecia uma observação mais cuidadosa: magro, sarado, barriga nenhuma, vestindo um short que já deveria estar na família há algumas gerações. Azul, verde ou um entretom qualquer. Barba por fazer, peito nu. Na mão direita, um rolo de pintura pingando tinta no chão cuidadosamente coberto por jornais. Não seria ela a estragar o prazer flagrante naquele rosto.
— Ela vai adorar.
Talita entrou em casa sorrindo. Não era a primeira vez que o novo vizinho provocava nela aquela espécie de escândalo interno que a fazia sorrir e se incriminar ao mesmo tempo, mas ao fim de poucos minutos, quase sem resistência, voltava o pensamento para as coisas práticas da vida e o deixava lá, do outro lado do corredor, com toda sua testosterona e sua estranha percepção das cores. Para cá da porta, a barba por fazer acabava sempre encoberta pela folga da empregada, a bagunça das crianças, a chegada do marido. As horas passavam adequadamente, sem sobressaltos, como nos últimos quinze anos. Arroz com feijão, papai-mamãe. E, depois que elas passavam chegava sempre um momento em que era preciso abrir a porta, perguntar pelo andamento da obra, pela chegada da esposa, oferecer um café tomado ali mesmo, em pé, no meio do corredor. Ou experimentar uma vaga decepção ao dar de cara com o apartamento fechado. Respirar fundo, seguir a peça. Até o próximo ato.
Havia quase um mês ele fazia pequenos consertos e tentava dar ao apartamento um ar de novidade bastante dificultado pela antiguidade do prédio. Chegava no inicio da tarde, trocava carrapetas, lixava portas, pintava paredes. Quase sempre com a porta aberta. Foi inevitável ficar sabendo que havia alugado o apartamento, e tinha os dentes perfeitos, que era casado, lábios grossos, um filho adolescente, dedos longos e mãos enormes. Bioquímico, farmacêutico, um trabalho qualquer com remédios.
Chegar em casa passou a ter um prazer secreto e aqueles poucos metros do corredor transformaram-se em uma zona de gravidade zero por onde ela flutuava e imaginava situações que fariam ruir qualquer estabilidade familiar se fossem traduzidas em olhar ou palavra.
Depois da parede amarela aconteceram outras coisas, entre elas a entrega do sofá, das camas, a montagem dos armários, tudo mais ou menos coordenado por Talita que já havia até conversado com a esposa pelo telefone, assuntos gerais, escola, supermercado, shopping. Muito simpática, mas o marido continuava com a porta aberta, o short velho, o peito nu, uma tentação difícil de segurar por uma amizade ainda nem bem iniciada.
Enfim, numa tarde de quinta-feira meio cinzenta, Ricardo chegou ao prédio carregado de malas e, antes de colocá-las para dentro de casa, tocou a campainha de Talita para anunciar que estava se mudando em definitivo e que, no final da semana, traria a mulher e o filho do interior. Talita sorriu, disse alguma coisa gentil da qual não conseguiria se lembrar, pensou ter visto um ultimato nos olhos dele, transou com o marido quase sem sentir e dormiu muito mal. Durante o sono entrecortado, elaborou a teoria da crise dos quarenta, dos hormônios, da necessidade de afirmação, da culpa, da atração pelo perigo, pelo desconhecido. Antes de o marido acordar, chegou à conclusão que poderia usar tudo isso como desculpa e usaria, se fosse preciso. Mas a verdade era que não havia nenhuma crise, nenhuma vontade de provar ou mudar coisa alguma. Só a vontade daquela boca, daquele peito nu, daquele corpo todo. Em uma palavra: tesão. Simples assim.
Simples assim durante a madrugada. Mas, com o sol entrando no quarto, tornando sólidas as sombras dos móveis, iluminando o rosto amassado e inocente do marido, as teorias de repente voltavam a fazer sentido, não se pode carregar uma culpa sem um bom entendimento dela.
Ainda que ela precisasse de uma noite mais longa, a sexta-feira amanheceu. Talita deixou os filhos na escola e passou o dia no trabalho olhando através da pilha de processos a despachar, tentando encontrar um modo de aproximar-se dele pelo lado, digamos, físico, sem magoar o marido, os filhos, o resto da família e todas as pessoas que esperavam dela um comportamento exemplar, quer dizer, neste momento, uns duzentos milhões de pessoas, todas com os olhos grudados, esperando seus próximos passos.
Acabou por decidir que tesão, como qualquer vontade, é coisa que dá e passa. Respirou fundo, seguiu em frente.
Entrou no corredor pisando firme, mas evitando fazer ruído com o salto da sandália. Pelo canto dos olhos, viu a silhueta contra o vão da janela, no fundo da sala. Antes que pudesse encontrar a chave, sentiu a voz dele envolver suas costas.
— Pizza. Quer comemorar comigo?
— Comemorar o quê?
— A minha mudança, ora. A nossa amizade.
— Claro! Claro! Pode ser daqui a pouco? Tenho que fazer umas coisas em casa.
— A pizza esfria. Ainda estou sem gás.
Convencida, ela flutuou para o outro lado do corredor onde ele a esperava, vestido para matar, calça jeans e camiseta pedindo para serem arrancadas a dentadas. Em algum momento, Ricardo fechou a porta e desapareceu na cozinha. Talita ouviu um zumbido familiar, pegou o celular que tocava insistente e o desligou. Jogou-o de volta dentro da bolsa.
A luz artificial deixava a sala ainda mais amarela, mais nítida. Ricardo parou na frente dela com uma taça de vinho em cada mão. As coisas começaram a acontecer sem resistência, entre sorrisos e silêncios e olhares. Ele a tirou para dançar uma música imaginária, ela achou estranho estar nos braços de um outro homem, mais alto e mais magro que o marido, lábios diferentes, olhos diferentes. Tudo pareceu muito cafajeste e ficou mais cafajeste ainda quando ele a beijou e ela sentiu o corpo colado, o toque da boca, o sabor. Estava ali, estava fazendo aquilo e aquilo certamente não duraria muito, poderia não ser real, mas era gostoso, gostoso, gostoso.
E então o telefone tocou num canto da sala, a realidade deixou um recado na secretária eletrônica que terminava com “um beijo, te amo, até amanhã”.
Eles se afastaram, sorriram.
Talita deu-lhe um beijo rápido na bochecha, atravessou o corredor, entrou em casa. Um pouco depois ouviu o chiado do elevador quase ao mesmo tempo em que os filhos entraram correndo e o marido desejava boa viagem a Ricardo, já no vão da porta. E tudo voltava ao normal, ao modo como deveria ser, exceto por uma vaga sensação de que o normal deixara de ser plano e parecia, agora, um pouco íngreme.