1.
Anoitece. A chuva e o vento
deixam a alameda
alagada e deserta.
Não tem ninguém na calçada
quando você aparece.
Tiro sua roupa molhada,
e você me olha —
lama e chama.
Na superfície da sua pele
banhada de luz e desejo,
vejo a marca de outro beijo:
da amante, labareda
suja, alagada e nua
como a rua.
2.
Aprendi a seduzir:
me entrego e me esfrego
como uma vadia,
sem sonho nem ilusão:
sou só corpo, alma não.
Conheço as regras secretas
do jogo da conquista:
o ritual, as metas, a magia.
Traiçoeira como a vida,
a beleza e a necessidade,
eu dou e fujo como a vontade
que dá e passa,
bandida.
Sei que não sou amada, mas
quando ele se deita e enfia
com aspereza,
e sinto seu peso
e sou comida e consumida,
tenho a certeza
de que nada mais importa na vida.
3.
Quando lavo sua camisa e
sinto o perfume da outra
misturado ao seu suor,
o sentimento que me sufoca,
espesso,
não é o ciúme
nem a dor passageira de ser enganada,
mas o avesso:
é a estranha vontade de ser ela,
a amante desejada
e não eu, a companheira:
desejo raiva,
inverso do amor.
4.
Tem dias em que não me reconheço.
Sinto saudade de mim mesma ou
de como eu já fui ou
de como queria ser ou
sonhava ser.
Bato à minha porta
e não atendo, errei de endereço:
me visto e me dispo como uma tonta
e não me entendo direito
nem do avesso.
Dobro a esquina, e de longe
o olhar de uma criança
me recrimina.
De repente me dou conta:
fui eu aquela menina.