Monstro

Conto inédito de Marieta Boimel
Ilustração: Hallina Beltrão
29/02/2016

Um estrondo produzido pelas enormes pedras lançadas pelo coveiro batia primeiro na tampa do caixão que jazia no fundo da cova. Seguiu-se o ruído da terra molhada pela chuva que, intermitente, caía desde a véspera, escorrendo pelos espaços entre as pedras. Uma infinidade de coisas para decidir, previstas e imprevistas. Nada que pudesse ser postergado.

O branco dos olhos amarelento como se tivesse recebido gotas de iodo. As unhas sugeriam um mergulho na água com açafrão. Diacho!!!, berrou Moris. Teria socado o espelho. Dos talhos jorraria sangue amarelo. Tão escura a urina, mais lembrava coca-cola. Adoecer logo agora??!! Canais entupidos e a bile não tinha por onde circular, abrigava-se onde houvesse qualquer espaço. Um ano, se tanto, sentenciou o médico, qual magistrado; nenhum recurso, nem apelação ao Supremo, qualquer que fosse: o lá de cima ou o cá de baixo…Que lástima!, resmungou o feto de dentro da barriga. Nem pôde acalentar-me, nem me dar o remedinho que acalmasse minhas cólicas. Quando eu estiver lá fora o mundo estará mais sem graça. Havíamos combinado que seria ele a me dar a primeira papinha de frutas, que me ensinaria a bater palminhas, a me encorajar a dar o primeiro passinho que me apresentaria ao mar, que faria exercícios com minhas perninhas para que eu tivesse coordenação para pedalar o tico-tico, depois o velocípede. Que me levaria de cavalinho nos ombros enquanto eu batucava na careca brilhante. Eu ainda não existia e ele, meu avô, em longos devaneios me enxergava no berço, envolto pelo quase transparente mosquiteiro, uma nuvem a proteger-me.

Ao longe, o assobio de Moris, repetindo o refrão de Reizale (canção do folclore judaico), avisava a Rute que era hora de deixar a tesoura, moldes, tecidos. Prevenida, sabia com precisão o que viria a seguir: “Vamos, Ruth. Afiei tão bem as lâminas de teus sapatos de esquiar que penetrarão na neve tão profundamente que você não correrá risco de cair. Nem precisará fazer força para equilibrar-se”. Tentava assim, Moris, persuadir Ruth a acompanhá-lo no delicioso passeio sobre a neve. O rio Styr era uma pista natural propiciando deliciosas arrancadas no declive natural. Fácil para ele, amante do esporte, desde a infância, exímio no trato com os esquis. Amante das sensações que percorrem a espinha dorsal e derramam uma enxurrada de endorfina. Um pouco desengonçado no caminhar, ganhava leveza de bailarino equilibrando-se sobre as finas lâminas grudadas no solado do calçado especial. Nem se aborrecia com as obrigações que o aguardavam. Queria aproveitar a luz natural dos dias tão curtos do inverno. Esperar que a água dos enormes tachos de cobre fervesse para nela dissolver o pigmento que tingiria pilhas de tecidos. Nem doeriam os braços fazendo deslizar o pesado ferro de passar em cujo interior ardiam brasas. Tinha que tomar muito cuidado para que nenhuma fagulha danificasse qualquer peça de roupa a ele confiada e que chegava ensebada, cheirando mal. Paletós, coletes, calças de grossa lã, usados por longos períodos não poderiam estar em outras condições. Banhavam-se pouco, conjecturou Moris. Os colarinhos postiços tinham na parte interna uma linha de grossa sujeira. Deveriam retornar a seus donos alvos, brilhando por causa da goma de amido de milho. O ferro desamarrotava as roupas, mais pelo peso do ferro fundido que pela quentura. Tarefas cumpridas sem sentir o esforço que exigiam. O fogão à lenha mantinha-se aquecido pelas poucas brasas ainda não transformadas em carvão. No forno, repousava o prato de alumínio que a mãe, Ida, deixara preparado. Ovo cozido, muito bem triturado, cebola frita, agregavam-se ao purê de batatas, maciez que afagava a língua e o céu da boca e que só a manteiga caseira conferia. Um copo de chá ordenhado do samovar completava a tardia refeição.

No dia seguinte, revisar peça por peça, um retoque aqui, outro acolá. O paninho branco sempre sob o ferro para evitar que o calor deixasse manchas brilhantes sobre a lã. Desde muito cedo, Moris aprendera com o pai o ofício de tintureiro. Um artista, mesclando cores, acrescentando pitadas de pigmentos produzindo cores inusitadas. Do negro ao branco, perpassando tonalidades impensadas. Um artista, abonado pela sorte, assim se sentia, não por inteiro, beliscado pela realidade dos inúmeros amigos: trabalho pesado, sem hora para terminar, salário miúdo. Não fosse a repressão. Olhou as fotos do último 1º de maio penduradas na parede. Ele, Max, Stela, Telma empunhando cartazes: JORNADA DE 8 HORAS, SALÁRIO JUSTO, DIREITO A FÉRIAS. Arnon puxava a fila, orgulhoso exibindo a manchete do jornal “Voz Operária”. Não apanharam da Polícia, nem foram presos…

Ruth apenas permitiu que terminasse o convite, obsessiva e doentiamente voltada ao trabalho. Além do mais, detestava o frio. Trauma das longas horas de espera nas madrugadas geladas para visitar a irmã, Helga, no presídio Dolnebro. Tantas esperas frustradas. (A velha Tonia, nem tão velha assim, a pele do rosto, um plissê, inflava-lhe a idade, vivia apavorada). Helga nem se preocupava com o desespero da mãe. Fizera da despensa subterrânea um esconderijo diurno para Miguel, fugitivo da polícia, convicções políticas contrárias às que o poder público adotara. Quando as trevas encobriam tudo, ia na frente, vigiando o caminho para o cemitério onde Miguel passava a noite. Até que um dia, a polícia que a vigiava havia tempos apanhou Helga e aguardou que o amigo chegasse ao túmulo que lhe servia de abrigo. Ela, menor de idade, berrou, esperneou tentou morder os “tiras”. Ele, por muito pouco, escapou de ser amarrado ao rabo do cavalo que conduzia o comandante da operação. Teria sido arrastado por uns bons quilômetros até o “Beco das Torturas”. Helga novamente de castigo. Desafiara o carcereiro procurando cuspir-lhe na cara. Visitas proibidas, o primeiro castigo. Outros mais viriam…O pacote caprichosamente feito por Ruth continha delícias doces e salgadas que a mãe indormida preparara para que chegassem fresquinhas, uma blusa bem grossa espantaria o frio da cela onde não penetrava nenhum fiapo de sol. Tudo nas mãos do carcereiro escarnecendo a jovem rebelde… Tão bom se Moris desistisse daquele esporte maluco. Não seria melhor o chá “pelando no copo”, que de tão quente amolecia os cubinhos de maçã verde que boiavam na superfície? Teimosos ambos. Cada qual achando-se com razão. Uma arte transformar temperamentos tão diversos em convivência harmoniosa. Além do mais, a exigentíssima esposa do coronel Wachenko, aquele mesmo que comandara a prisão e o enforcamento de Miguel e que se comprazia soltando estridentes gargalhadas expondo os dentes tão grandes que pareciam de cavalo, faltando-lhe contudo a dignidade equina, balançando o corpo de Miguel, com um galho seco para que se enrolasse cada vez mais a corda no pescoço do condenado. Tétrica brincadeira… a também odienta esposa do coronel havia encomendado a Ruth, coleção completa para a primavera que breve se instalaria, incluída a roupa de gala, para a solenidade na qual o coronel seria condecorado pela prisão de Miguel. Não fosse a necessidade premente e Ruth gostaria muito de rejeitar toda a encomenda. Mas cada tostão era tão importante… Tão cara a passagem para o Brasil. Impossível chegar a um país
estranho sem alguma reserva de dinheiro. Nem podia esquecer que era preciso assumir as despesas da vida diária. Helga desempregada e o advogado que a defendera cobrara uma fortuna. Ruth bancara tudo.

Mesmo previdente e calculista a reserva se esgotara. Portanto, nada de recusar trabalho, mesmo se esforçando para receber aquela peçonhenta cobra com delicadeza e um falso sorriso. O inverno ainda escorria, tempo suficiente para toda a encomenda. Mas como amansar a ansiedade de Ruth? A imaginação tinha que trabalhar. Disfarçar as pelancas que balouçavam na hora das provas e o papo que fazia o pescoço emendar-se ao corpo, mal mostrando o contorno do queixo. Teria ainda o desprazer da viagem a Varsóvia acompanhada pela “senhora coronel” para a compra dos tecidos. Melhor não se debruçar sobre as dificuldades. Determinada, sabia que, como na corrida de obstáculos, transporia a todos e a vitória seria inquestionável. Dar-se-ia o milagre e aquele amontoado de banha pareceria a elegância personificada. Que mundo sem graça aqui fora… E a terra molhada acabara de preencher o espaço da cova…

Marieta Boimel

Nasceu em São Paulo (SP), em 1940, e viveu em Assis até os 18 anos. Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Mackenzie, é co-autora de Dicas culinárias para deficientes visuais (2003), pela Fundação Dorina Nowill para Cegos. É consultora de acessibilidade para deficientes visuais em espaços culturais em Museus Acessíveis e vice-presidente do Grupo Retina São Paulo.

Rascunho