Minha vida

Conto de Beatriz Castanheira
Ilustração: Rafa Camargo
01/11/2011

 

Daqui. Dessa metrópole, que um dia me atraiu e prendeu para sempre, viajei até o vilarejo da minha juventude. Como que por encanto. Apenas por chegar em casa e encontrar meus netos. Quando os vi bisbilhotando a caixa de música…, e de um dos compartimentos saltaram as pétalas de azaléia desidratadas. Não foi preciso esforço. Num segundo, fui parar em 1950.

Pelo salão do clube, vejo casais dançando ao som da orquestra. Vejo as famílias mais abastadas do lugar. Não são felizes, apenas fingem. Logo a memória se cansa dali e, em instantes, passo ao jardim da praça, rodeada pelas construções mais imponentes, entre as quais o próprio clube; e a mesma noite. Alguém escapou do baile:

— Lembra que a gente combinou de conversar?

— Eu, hein?! Josefa, não vamos falar desse negócio de separação. Não agora, meu amor! Hum? Por favor!

Josefa sou eu. Estou velha. E preciso largar a mania de cutucar o passado a essa altura da vida. Mas não resisto, e volto ao silêncio que se seguiu às súplicas de Horácio. Foi um silêncio escandaloso como eram os nossos silêncios. Um intervalo gostoso, estalado. A decisão, entretanto, estava tomada. Fazer o quê?

— Lutar, minha vida! Ou fugir. Já pensou que a gente poderia fugir?

— Você deve estar maluco. Papai mandaria um dos empregados atrás de nós no inferno. Isso jamais daria certo.

— Mesmo sabendo que eles não querem nosso casamento, não desisto de você.

— Mas não dá para ficar sonhando com o impossível, meu bem.

— Dá, dá, penso que sonhar é a melhor coisa que existe.

Aquela vida mansa se passava assim. Besta. Vida que nos era uma dádiva ali, distante das mazelas da cidade grande. E uma ironia: tranqüilidade demais, vida de menos. “Minha vida”, aliás, era como Horácio me chamava. Junto do portão de casa, eu o admirava debruçado sobre os canteiros.

— Minha vida! — ele sinalizava por mímica, e eu lia seus lábios e atravessava a rua e ficava a vê-lo cuidar das flores como o mais bonito jardineiro entre todos os funcionários da Prefeitura.

— Preciso te encontrar hoje. No nosso lugar.

Eu respondia que não podia ser. Que mamãe me vigiava dia e noite.

Quando finalmente saíamos para um piquenique, Horácio me fazia sentar junto dele, à beira do caminho de miosótis, às margens do rio. Dizia que estava doente de tanto me amar. Mas que não me preocupasse, porque logo estaria curado já que eu era também o remédio. A estas palavras, eu correspondia com mimos, adulações, fazendo ele acreditar o quanto o admirava:

— Homem de valor, você, meu bem.

Um vulto, fantasma — não sei o quê — me aparecia (e assombrava) do outro lado do rio, em meio às folhagens da mata, enquanto trocávamos juras de amor. Bem, não sei explicar, mas tinha a impressão de enxergar alma penada de quem ainda não morrera. Tão forte era o sobressalto daqueles momentos, que eu tapava o rosto com as duas mãos e Horácio, sem saber o que se passava, vinha me acudir com um abraço.

— Estou pronto para fugir. Quando você quiser.

Ele realmente se esforçava. Vinha juntando uns trocados do salário minguado. Assim, a gente podia começar com dignidade.

— Claro que sem os luxos de hoje.

Ele tencionava procurar um primo na capital e sentia-se feliz ao fazer planos. A sua intenção era cuidar dos jardins das mansões nos bairros de ricos enquanto não conseguisse coisa melhor. Quem sabe um concurso na Prefeitura de lá. Um emprego desses daria mais segurança para criar família. Lembro das inúmeras vezes que o vi mexendo a terra e plantando as azaléias, minhas preferidas. Não tinha a menor dúvida de que seria feliz em algum lugar maior, onde ninguém me conhecesse. Libertar-me da mesmice do vilarejo era tarefa bastante difícil. Libertar-me de alguns detalhes seria mais complicado. Quando Horácio falava em fugir, eu me animava. Mas de que servia aquela animação toda?

Pensei que talvez conseguíssemos sair da cidade durante a festa da padroeira, à noite, quando o povo tomasse o largo da igreja e os fogos iluminassem o céu; aquela, uma época sem chuvas.

Combinado isso, Horácio e eu tentamos manter a normalidade. Descobrimos ser fácil roubar a carroça de Seu Juca do Armazém, que ficava amarrada às argolas da calçada em frente do estabelecimento. Ao conseguirmos, por fim, na tal noite da quermesse, fomos parar à beira do rio. Uma canoa, também surrupiada — desta vez de um pescador conhecido de Horácio — nos aguardava para seguirmos viagem até a estação ferroviária da cidadezinha próxima. Custasse o que custasse, não podia perder a concentração enquanto Horácio punha a bagagem no barco; não podia. Precisamente naquele momento, quando aconteceria a grande virada de minha vida.

Após iniciar a descida do rio, as águas mais sossegadas do que eu imaginara, passamos a olhar as estrelas. Horácio deitou-se em meu colo e, suspirando, certamente vislumbrou a vida nova. De minha parte, tinha chegado tão longe que mal podia acreditar. Então soou um alarme dentro de mim. Era uma ordem que me impediu de recuar. Fiquei inerte, quase rígida, e cheguei a tocar em Horácio para saber se ele estava gelado. Ao notar que eu o encarava, virou-se, nos entreolhamos. Então, mais decididamente que nunca, enfiei as mãos na bolsa ao meu lado. Foquei a vista em Horácio, que me correspondia apaixonado. Ergui os braços bem esticados, segurando o tijolo para então, num segundo, fazê-lo despencar sobre seu rosto. Arrisquei tudo naquele momento. Era quase meia noite, lua alta. Não me esqueço. O ferimento foi tão intenso que, por um instante, achei que ele não respirava mais. Ficou a princípio quieto, passando imediatamente a vomitar sangue. Aconteceu tudo muito rápido: comecei a balançar o corpo de Horácio, num vaivém, até conseguir — com o movimento — o jeito, aquela leveza para que fosse possível expulsá-lo da canoa. Caso me desequilibrasse… Ufa! Consegui me proteger. Meus braços doíam. Dor que eu mesma procurei. Como se ainda carregasse aquele peso.

Enquanto o barco ia adiante, perguntava a mim mesma, se o tijolo, meu pequeno bloco revolucionário, não faria falta à pilha da qual o retirei, encostada ao portão de casa, onde esperava, junto com outros tantos, para compor o muro alto que seria construído. Também durante o resto do percurso, até que alcançasse a terra firme, delirei um pouco. Antes do amanhecer, estava no trem. Indo atrás da minha vida. Continuei delirando. Imaginei que a cada estação estaria a minha desgraça e que uma multidão me esperava; seria o meu fim. Entre uma parada e outra, olhava para todos os lados. Examinei a calvície do viajante do banco da frente. E adivinhei o bigode, a cara de policial. Hoje, há mais de cinqüenta anos que de lá parti, ainda me enchem os ouvidos, a locomotiva e os trilhos. Àquela hora, sentada, encolhida no trem, eu pensava, já deviam estar loucos à minha procura. Papai certamente amaldiçoaria a filha até o fim de seus dias. E mamãe pediria perdão sem cessar pelos meus pecados e se sentiria culpada pela desonra de sua menina; implorando a papai, em vão, que me trouxesse de volta. O velho já tinha me avisado que não ia tolerar moça sem-vergonha dentro de casa. Que eu — uma egoísta incurável — não me atrevesse a sujar o nome da família. Que preferia nunca mais botar os olhos em mim. Ou que seria capaz de me obrigar a casar com o jardineiro se me pegasse de agarramento no banco da praça.

Horácio, coitado, entendeu exatamente o contrário.

Beatriz Castanheira

Beatriz Castanheira tem 43 anos. É jornalista. Em dezembro, terá um conto incluído na coletânea A polêmica vida do amor (Editora Oito e Meio).

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