Minha infância em 1920

Eu me procuro para não explicar nada. Corda segurava a cintura do poço. Brabeza de nuvem
Fabrício Carpinejar, autor de “Como no céu/Livro de visitas”
01/08/2004

Eu me procuro para não explicar nada. Corda segurava a cintura do poço. Brabeza de nuvem. Vela se apertava com os dedos até sangrar escuro. Não havia luz domada, água educada de gente. Sede não cheirava a flor. Trocava-se a fralda da lamparina uma vez por dia. Assim na gota, no joeirar da fibra. Manso e mirrado como olho-de-boi. Sobrancelha guardava o sol para enxugar depois. Pedalava meu cavalo. A crina ensinava a mão em rédea. Odor de funduras do mato. Unhas grandes de esporas, solas chamuscando chão. Lavava-se o dente na fruta. Montava pé de milho. Minha altura controlei pelas hastes. Urinava nos joelhos com medo de temporal. Meu medo de temporal se transformou em lenha cortada. Ciscava clarão nos longes. Mundo não transbordava, afundava em si. O mar era cego e não me achava. Praia estranha, sem mar, de mandioca pisada. Monjolo lambia suas cicatrizes. Os baobás me cuidavam enquanto os pais trabalhavam. Exercitei anatomia despedaçando ovelha. Sobrava chusma de lã para aquecer pensamento. O campo batido e as traves com as forquilhas arrebentadas. Jogava-se com pedra, caçava-se a bola como ave em espingarda de chumbo. Animal encontra feitio na morte. O alto era tão vôo que não se ouvia. Urubus acanhados como moças sem os dentes da frente. A tosse do avô vinha manca. Tropeçava na varanda. Não havia maçaneta, trinco, cancela. Porta só no caixão. Quarto, cozinha, banheiro dormiam na sala. Untava telha com barro. Amassei muito pão no telhado. Infância de sarampos, de caxumba e uma aula distante como missa. Barrigas festejavam vermes. Comia-se em silêncio porque tinha que deixar a comida pouca falar. Engordava o que não mastigava. Todos pobres, não existiam mendigos. Cigarro de palha restava moído de dedos. Uma batida para o galo piscar. Ovo cru descia inteiro. Cemitério não tinha porteiro, retrato. Cemitério era mundo adulto para se conversar de negócios sentado em lápides. Cemitério fugia em direção à praça. Não tinha virtudes para descobrir meus vícios. A carne nascia sem misericórdia. Namorava meninas sem elas saberem. Pecava culpado de dor da Nossa Senhora. O senhor estava no céu. O carro dos bois trancava de rolha a estrada. Os pássaros amontoavam atalhos em córregos. Lama nos pés deslizava a vértebra. O lodo fazia carícias como o musgo. Banho de rio com roupa de baixo das ervas. Descobria a temperatura dos dias pela quentura dos trilhos. Ardia o sapato do trem das viagens que nunca calcei para fora da cidade. Valia vadiar canivete em barba-de-bode e frutas-de-lobo. Canivete fazia vento chiar chaleira. Espinho passava da mão a planta. Raspava cabeça em cercados. Mula sem pavio. Jogava tronco na água para margear afogados. Um afogado virava ilha para subir. A paz do que não teve trégua. Desaconteci como nascimento. Não se passava roupa, se passava. Noites foram meus olhos menos meus olhos. A terra se exagerava, vasta, e não girava de volta. Objetos que quebravam não davam adeus. Mal se entendia a ausência porque tudo se precisava. Apanhei de cinto e me vingava chorando o que o homem não chora. Não se envelhecia, se arruinava. Acusei Deus e ele não gritou. Sou suspeito para calar. Espiava o firmamento pesado, plumoso, gordura do azul. Usava a compaixão de uma camisa somente no domingo. Conversava com espantalho para aprender a assobiar. Formigas sorteavam terra. Solidão sem bolsos. Assombração era viver. O mundo bem maior do que minha coragem de lembrar. Ter nome não fazia nenhuma diferença.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho