Minério

Conto inédito de Fernando Rinaldi
30/11/2019

E agora vou caminhar até a ponta direita da praia para quem olha para o mar, em direção ao hotel do qual sobraram apenas as vigas de concreto cobertas por trepadeiras e uma estrutura que se desgasta com o tempo, a carcaça de um hotel antes perfeitamente iluminado pela vertigem das primeiras descobertas e agora sombrio mesmo quando banhado pelo sol, esse hotel que ainda lá permanece, que nunca foi totalmente demolido ou reformado e que por isso acabou virando nada mais que memorial de quase sete anos consecutivos da minha infância, em outras palavras a construção que perdura do que estou sendo e não sei até quando, o esqueleto que ainda guarda um buraco cheio de terra e teias de aranha e insetos que antes era chamado de piscina, e os muitos andares galgando o morro que separa as duas praias, a de classe média que hoje é dos ricos e a dos ricos que hoje é dos muito ricos, aquele hotel de onde se via toda a praia dos ricos e certa vez olhando mais atentamente se via também minha irmã com nem um ano completo se embrulhando e quase se ocultando na areia e meus pais ao lado rindo do pequeno ser humano em forma de croquete.

Ontem eu vim para cá sozinho de ônibus e escutei umas vinte vezes seguidas, do começo ao fim da serra, a música do Roberto na voz do Caetano, a mesma que meus pais colocavam para tocar no momento em que a estrada deixava de se estender continuamente e se dobrava feito sanfona, os ziguezagues e a música anunciando que logo os pés iriam tocar a areia branca e eu esperando ansiosamente para voltar àquela areia branca que eu achava que conhecia tão bem, uma saudade, um sonho, porque de alguma forma as férias ali na praia tinham algo de evidente, claro e harmonioso, algo que me enchia todo, de algum modo ali não sentia saudade nem os embrutecimentos do corpo, e de alguma maneira fora dali me sentia exilado como na música mesmo estando completamente rodeado de familiaridades a todo tempo, de um mundo tão próximo, mas quando as janelas e portas se abriam para eu me desfazer das roupas e correr para o mar era como se eu me sentisse em casa novamente, ainda que naquela época eu não compreendesse o que exílio significava e nem supunha que ele também pode ser simbólico, o lugar onde estamos sem pertencer, a fração que imagina de um todo tanto projetado e nunca encontrado nos ecos da realidade.

Pensando agora talvez eu devesse ter contado numa mesma mensagem dirigida individualmente a cada um, à minha irmã e a alguns amigos próximos, cerca de meia dúzia, que eu havia tomado coragem para voltar sozinho àquela praia depois de muitos anos, e poderia ter dado a entender que se fosse para me matar lá seria o lugar, que a morte de repente me atraiu porque eu carregava um mosaico no lugar do peito há um bom tempo, provavelmente desde que me separei e continuamos namorando sem a exclusividade monogâmica, ou desde que eu fui demitido mas continuei trabalhando como autônomo no mesmo lugar, ou desde que eu terminei a relação com meu analista mas segui dando notícias sobre meu estado emocional, e tudo isso já faz cerca um ano e meio e não sei se o limite estava próximo ou já havia sido ultrapassado, poderia inclusive contar na mensagem que eu vinha tentando fugir do meu exílio com muita presença no mundo, e que nos últimos meses foram inúmeros encontros, festas e bebedeiras, o que obviamente agravou o meu sentimento de prescindibilidade, a existência sendo escusada como uma ação de marketing digital qualquer que fiz ao longo dos últimos dois anos e meio, no fim eu diria com convicção que nenhum sofrimento se compara à sensação de que posso estar ou não aqui, ali ou lá, e tanto faz como tanto fez, não ganhei nem perdi nada, que sou exilado para sempre, e se a ausência está em mim o que afinal me torna presente?

Na areia com suas conchas, pedrinhas, plânctons e anéis de lata, refrigerante ou cerveja, vou deixando pegadas e me sinto um pouco presente observando as pousadas e casas que se construíram ao longo da costa onde antes alguns poucos caiçaras e pescadores moravam ao lado dos muito ricos, e isso nem faz tanto tempo assim, agora percebo que o sol deste lusco-fusco vai deixando de arder mas o ar está mais morno do que nunca, o que anima os recém-chegados turistas de fim de semana a se banharem no mar, calmo para o horário, e é por isso que me distraio com os corpos que passam, porque quero decifrar o segredo da paisagem, quero ler através das duas velhas enrugadas de maiô e chapéu de sol vindo ao meu encontro e na outra direção um casal formado por uma mulher bronzeada demais e um homem tão barrigudo que não sei como se mantém de pé, as crianças que brincam de fazer castelo de areia no chão e os pais tirando foto pelo celular, os dois moços mais jovens e musculosos jogando frescobol, e eu com medo de que a bola me acertasse a cabeça decido molhar meus pés na água somente para me afastar deles.

A água está menos gelada do que eu pensava e eu decido entrar no mar até a canela, mas quando percebo que meu corpo inteiro dói, dos pés à cabeça, das unhas às unhas, das tripas à superfície, me enfio até o umbigo na água e depois até o pescoço, e aqui o tempo se contrai e se distende exceto pelo sol que se põe linearmente no horizonte, noto que conforme vai escurecendo e a praia vai se esvaziando, continuo andando mas agora pela água, três quartos submersos, atento ao fluxo das ondas e ao cheiro de peixe assado vindo do meu lado direito, que parece competir com o cheiro da maresia de todos os meus lados, e então eu sinto uma súbita vontade de me livrar do que me veste e andar completamente nu até o meu destino, e assim eu faço, debaixo d’água eu tiro toda a roupa disfarçadamente como se alguém pudesse me ver antes de perceber o mar mudando de cor.

Devo ter caminhado por meia hora dentro do mar e mais vinte minutos fora dele, a água acabou ficando fria demais e por algum motivo não tive vergonha de sair despido, estou chegando mais perto, mais perto, e agora chego finalmente ao hotel na completa escuridão, nu como só uma praia pode ser e com as mãos vazias, desta vez não coletei conchas como antigamente e larguei as roupas a poucos metros da entrada, neste escuro não vejo mas sei que está lá o hotel à beira da inexistência, ninguém passa por esse canto da praia e parece que o que realmente se alastra é o silêncio, fico contemplando aquela construção, observando os contornos e no entanto o que eu vejo, o que chega aos meus olhos, é tudo menos o hotel, o hotel não chega sequer a se mostrar como uma sombra vaga, olho fixamente para aquele nada e vejo no lugar do hotel a minha mãe entrando e saindo várias vezes da piscina para provar que a água batia abaixo do seu umbigo, e quando ela saía ela encostava em mim para mostrar que o meu nariz batia no seu umbigo, vejo o meu pai voltando à terra firme com um veleiro alugado e pedindo para eu subir e dar uma volta junto com ele, vejo a vela vindo em direção à minha cabeça no momento da cambada e eu disfarçando a dor para não estragar aquele momento com ele, vejo as frases motivacionais que incluíam nas latas de lixo do hotel e também me vejo lendo para minha irmã como se uma frase levasse a outra e a relação entre elas fosse um grande mistério a ser resolvido, vejo milhares de conchinhas reunidas num pote e os potes se acumulando à beira da minha cama, e também vejo, e isso consigo enxergar muito bem, o hotel iluminado pelas chamas, o fogo consumindo a carne e as paredes e deixando os ossos, ouço gritos e correria, vejo o bombeiro que me segurou tão forte pelo braço que doeu, a minha irmã no colo de outro, vejo horas depois um amigo do meu pai tentando avisar meus avós que o pior havia acontecido, percebo como vultos os dois corpos carbonizados que na época tentaram me impedir de ver, e curiosamente tudo passa mais lentamente que no passado mas também mais rápido, talvez eu agora até veja neste vulto o desfilar dos séculos através de um nevoeiro, ou a máquina do mundo ou o inconcebível universo, mas certamente não vejo agora o hotel por inteiro, o hotel não emite nenhum ruído, o hotel não se manifesta, nunca se manifestou realmente, e estou chegando à conclusão de que só pode ser ele, que sempre foi ele meu verdadeiro exílio e não o contrário.

Hotel e exílio, exílio e hotel, devaneios de anos que agora se queimam definitivamente, experimento uma inesperada alegria por alcançar essa ideia, como uma pausa nos meus tormentos que há muito não se sentia, tão apaziguado que eu continuaria aqui de pé para sempre, mas meu corpo ainda dói e sinto frio, parece que a temperatura despencou uns dez graus e se eu não partir não aguentarei o retorno, resolvo então voltar e colocar novamente minhas roupas no corpo composto só de areia, sais minerais e calafrio, e andando pelo caminho sem prestar atenção no rumo dos meus passos saio em busca do som do oceano, dos murmúrios noturnos da praia, e reparo ao longe na rocha cortando a onda insistente, penso que há dentro do mar as conchas com o mar também por dentro, tambás que nunca irei coletar, não tentarei lhes dar sentido, vou voltando resignado pelo mesmo caminho, a razão da desistência que não se explica, a cada passo desistindo de inventar um coração onde não pode haver mistério e desistindo portanto de contar aos meus o que quer que fosse, o hotel mudo e surdo com seus quartos soturnos ficando para trás, o meu hotel com lençóis de algodão se aproximando à frente, eu mais macio após a negativa das pedras da areia, que vez ou outra machucam meus pés descalços, mas continuo a andar sem me importar, porque agora falta pouco e porque a dor também é pouca. É só de leve.

Fernando Rinaldi

É formado em Relações Internacionais pela PUC-SP e em Letras pela USP. Atualmente, cursa a pós-graduação em Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.

Rascunho