Milhões de espécies de deuses

Conto de Vinícius Mendes
Ilustração: Marcelo Frazão
01/12/2024

Nº 1
Tudo é por acaso, e eu poderia perfeitamente tê-lo conhecido naquela sala caótica da minha quinta série, ou puxando o mesmo romance da gôndola de uma livraria no centro ou ainda no roçar de um ônibus, mas quis a maquinaria de destinos que eu só soubesse da sua existência quando ele já era a encarnação definitiva de Paris. Foi por isso também que, por muito tempo, só o observei de longe, como um horizonte possível de vida, no limbo onde desejo e real brevemente se encontram para, então, se distanciarem para sempre, antes como uma diversão cotidiana, depois como uma possibilidade esquisita e, então, como uma verdadeira fixação. Naquela época, os amigos o chamavam pelo sobrenome, Daller, embora seu nome fosse tão mais bonito, Társio, que, quando dito rapidamente, presenteava a língua portuguesa uma nova palavra ainda sem significante — tarsiodaller. Eu talvez fosse a única pessoa do mundo a chamá-lo desde o início por metáforas do batismo original, o Társio, tarsiano, Tarsinho, Tarso, e isso, convenha, dizia muito sobre a nossa estranha intimidade. Mas, como tudo é por ordem exclusiva do acaso, eu nunca saberia se teria a oportunidade de dizê-lo cara a cara, de chamá-lo Társio diante dos outros, modificar a história de um nome tão bruscamente só para denunciar nossa ligação particular. Enquanto isso não acontecia, permanecia enfeitiçada pela história que ele criava sobre si do que era a vida bem vivida, do que era a cidade, e que ele compartilhava à exaustão para seus não muito mais de dois mil seguidores. Sabia que adorava tomar café no mesmo bistrô da Rue Monsieur le Prince, deslizando dali para os canteiros do Sena com os amigos de sempre — um fotógrafo autoexilado, um velho colega de escola, um colombiano que arrastava um curso de férias na Parsons e uma menina misteriosa que jamais se deixou ver por inteiro — até que alguém surgisse, ou uma ideia, ou um plano ou uma promessa inequívoca de felicidade rasteira, compartilhável, e os levasse para as pontes de La Villette, para os lados da Place D’Italie ou para um rock bar cheio de turistas na fronteira de Montmartre com a Gare du Nord. Era um flâneur da experiência, não da rua, uma caricatura do senso comum, o jeito fácil de saber o que todas as outras pessoas estavam fazendo, e esse era o seu grande encanto: ser o corpo de todos, a matéria de tudo, a definição completa das coisas interessantes do mundo. Sua igreja era a de Saint Sulpice, sua estação era a Gare d’Est, seu rio era o Saint-Martin, sua rua, a do Temple, seu edifício, o Pompidou, sua experiência, a fila do Les Deux Magots, sua música, a primeira gymnopédie.

Não lembro ao certo quando Daller se tornou Társio, muito porque eu não o procurava. Os tempos estavam suspensos, os dias eram cordas esticadas ao máximo, tensas, que eu atravessava inerte até que a noite viesse recriar momentaneamente as esperanças. Na verdade, eu cruzava o mundo distraída, sempre almejando chegar ao outro lado de mim, mas nunca triste — porque tristeza, naquela época, era mais o desejo de sentir alguma coisa do que um sentimento por si só. As pessoas eram menos elas e mais ferramentas disponíveis: uma conversa boba na mesa da padaria, colunistas de jornais, trabalho, a multidão das seis horas, os dilemas dos amigos, sexo, os vizinhos se tornando transeuntes vistos da janela, a padeira, o taxista, as vidas no celular. O inevitável era que algo não acontecesse. Minha distração era transformar a cidade em um panóptico e, depois, em pequeníssimas historietas: a mulher fumando na janela se chamava Rute, o entregador de comida na bicicleta era Marcos — sua mãe era evangélica e preferia o Novo Testamento —, o cobrador do ônibus chegara aqui havia quarenta anos vindo de uma cidade pobre de Minas Gerais, a mulher de salto alto estava prestes a ser demitida, embora ainda não soubesse, e a outra, que esperava o semáforo abrir, sonhava todas as noites com o cunhado. O que é a vida senão essa parafernália imensa de coisinhas que vão entrando umas nas outras, a chefe do entregador que leva a janta de Rute, que é esposa do cobrador, irmão do marido da mulher parada na calçada — ou nada disso. Só consigo lembrar que um dia qualquer, sentada no banco do ônibus, garoa embaçando o panóptico pelas vidraças, eu descobri outra possibilidade de terminá-lo: era Társio, sentado com a tranquilidade dos homens no pé de uma das pontes do Buttes-Chaumont. Usava óculos escuros comprados em um brechó, cabelo cacheado quase a tomar-lhe o pescoço, sorrindo como sorriem os meninos do campo ao lado dos amigos de sempre, uma camiseta de gola surrada enquanto, ao fundo, uma ou outra torrinha de inverno invadia a fotografia. Estava ali toda a felicidade possível, o ápice dos momentos, o limite das experiências. Para mim, foi exatamente isso que ele significou, e seu primeiro impacto foi a superação gradual das historietas, cada vez mais banais em sua mediocridade. Nas semanas seguintes, antes por tédio, mas logo por adição, eu passei a cair sempre nas coisas de Társio, indo e voltando como um filme que a gente insiste em não deixar acabar. Queria entender tudo o que ele podia ser: Társio, Tarso, Tarsinho, tarsiodaller, tarsiano, mesmo o ta que antecede a gymnopédie, a flexão feminina do verbo tu, referência óbvia ao seu chamado, ou o homem, a família, o sobrenome. De repente, sua composição dependia também dos personagens paralelos, dos desvios no roteiro que preenchem a metáfora do filme: o café na Monsieur le Prince, o canteiro do rio, o colombiano frustrado, a menina pela metade, todos satélites naturais daquele planeta misterioso. Passava horas no ônibus, aninhada em desconhecidos, assistindo-o na tela do celular fazendo encenando a plenitude do que ele era diante da câmera, depois responder comentários — e me forçar a investigar sua plateia distante, me ver parte dela — até se embebedar demais para seguir contando coisas dessa vida de acontecimentos fortuitos. Eu via graça, antes de tudo, no reflexo recôncavo por onde nós podíamos nos ver: Társio molhado pelo sol da avenida da Ópera enquanto eu o consumia debaixo do chuveiro, com o aparelho amparado nas embalagens de xampu. Óbvio que não havia nada de comum naquele fenômeno, muito porque eu demorei a perceber que ele se tornara um cigarro, um romance de banheiro, e que só havia alguma graça em estar aqui, em ser matéria fina, mas concreta, se houvesse a robustez de Társio em algum lugar do mundo a fornecer horizontes alternativos. A vida dele era um produto muito bem empacotado, e o seu público cabia perfeitamente em mim. Então, quando entendi que estava mesmo envolvida demais pela aura daquele garoto, resolvi confessá-lo a uma amiga próxima, Victoria, que ouviu tudo sem arroubos. Eu a havia escolhido justamente pelo contrário, na expectativa de que ela me colocasse novamente no plano das cordas tensas, “mas você é uma mulher de 35 anos, pelo amor de Deus”, “isso é paixão de adolescente”, “redes sociais são a pior invenção deste século”, “pelo que você está dizendo, esse moleque só pode ser um idiota”, mas a única coisa que ela foi capaz de me dizer soou como uma gymnopédie jamais composta, e instaurou um silêncio definitivo sob aquela noite azul:

— Por que você não vai para Paris atrás dele?

Minha reação instantânea foi tomar a ideia à força com as mãos antes que ela se tornasse livre o suficiente para ousar crescer e se tornar realidade — ou infâmia. Era preciso mantê-la na condição de historieta rotineira, antes que eu fosse convencida demasiado por ela e perdesse a luta. Porém, quanto mais a corda tensionava, os padrões se acumulavam, Rute fumando na janela, Marcos repleto de pedidos na bolsa, o cobrador pensando na roça, mais Társio irrompia, rodeado de amigos, no meio do meu desencanto. Ali eu já frequentava suas imagens não mais como plateia impassível, distraída, mas como um bastidor provável, como a atriz que desce pelos corredores em meio ao público para mudar o ritmo do palco, inverter o roteiro antes da inauguração da chatice — agora era eu quem elogiava o café da Monsieur le Prince, que lhe contava sobre o alinhamento dos edifícios da Cité, que decidia se nosso dia terminaria num bistrô de Montparnasse ou na cama do nosso quarto improvisado no último arrondissement, e os espectadores passavam a assistir exasperados ao final da história. Enquanto isso, a pergunta se repetia em horas alternadas na voz desinteressada de Victoria — “Por que você não vai?”, “Atrás dele?”, “Por que você não?”, “Por que não Paris?” —, e em cada uma delas surgia um mesmo esboço de resposta: de que a ideia era absurda, mas maravilhosa, de que viver é mais do que criar historinhas, mas senti-las no corpo, e que procurar estranhos em outro país era arriscado, ou ainda que Társio jamais entenderia aquele limbo da existência em que era tanto protagonista quanto coadjuvante, colocado diante de uma mulher que cruzara o oceano apenas para lhe dizer que chamá-lo pelo primeiro nome tinha mais beleza do que falar simplesmente “Daller”. Numa noite, num repente, esmigalhei a ideia com a mão e a joguei pela janela do apartamento até que se espalhasse pelas copas das árvores da rua. Quase pude vê-la se esvoaçar pelo vento, sumir na noite, e aproveitei a irrupção para bloquear qualquer estímulo vindo do perfil de Társio. Existia, enfim, um jeito de voltar à burocracia dos dias comuns.

Durou duas semanas. No início, confesso, senti satisfação na capacidade de esquecê-lo. Logo me dei conta que não conseguiria sozinha. Então, para preencher os trajetos do escritório para casa, troquei o celular por um livro que serviu também para evitar que eu voltasse a cair no circuito de destinos dos desconhecidos da rua. Também me enfiei nos filmes, todos sem terminar, porque sempre dormia, exausta, antes do fim. Nos últimos momentos antes da minha recaída, a verdade é que até pensava pouco em Társio, muito porque também me dediquei a relembrar dos homens do passado recente cujos efeitos ainda se alastravam em mim, moldando essa geringonça apaixonada por inalcançáveis. Queria chegar ao outro lado deles mesmos para cultivar algum sentimento possível. Társio era Valter, mas também Rodrigo, Romeu, espelho recôncavo de Gilmar, idêntico a Irineu ou a Armando. Todos tão parecidos e diferentes. No ônibus, no dia seguinte, era óbvio que só existia ele: era tarsinho montado na bicicleta à espera das marmitas, Daller fumando na janela, Társio nas vésperas da sua demissão contumaz, Tarso enamorado pela cunhada no meio dos automóveis ou ansioso por voltar à terra da infância, mas também era ele que dirigia o ônibus, que limpava as vidraças do edifício, que contava as novidades na televisão, que estacionava, convicto, o carro no meio-fio, ou que beijava romanticamente o moço na mesa da lanchonete. É isso que os viciados sentem na angústia? Que os poetas vislumbram na iminência na antessala dos poemas? Que os loucos entendem e tentam comunicar aos sóbrios? Geringonça de paixonites por inalcançáveis. Abri o celular, reinstalei a rede social e, inevitável, intacto, lá estava ele vivendo o melhor dos mundos possíveis, agora de bigode ralo, boné na cabeça, sorriso do planeta, sentado com as pernas dobradas na maré da torre Eiffel em um dia nublado, contornado por outras pessoas felizes, depois enquadrando na sua câmera uma dama do século 15 no corredor italiano do Louvre, e dali para abrir as cortinas da Rue Rivoli antes de um amendoim torrencial nas barracas do Tuileries. Conto tudo assim porque, óbvio, eu refiz cada trajeto. Naquela época, porém, já que só dava para ser daquele jeito, acendi um cigarro e, debruçada sobre o parapeito do prédio, pensei por um instante em todas as coisas que podiam ser ridículas e incríveis ao mesmo tempo. Não havia muitas: talvez a primeiríssima manifestação da paixão, ou São Paulo, mas com certeza uma delas era esse dilema confuso em que alguém se embasbacara por outro alguém sem que jamais tivessem se visto, em que uma parte da trama estava completamente avulsa ao sofrimento que causava. Geringonça a pleno vapor.

Apenas para confirmar, estabeleci um brevíssimo jogo particular: se Marcos — ou Romeu, Gilmar, Armando —, qualquer outro entrasse por aquela rua nos cinco minutos seguintes e me notasse ali, observando, estaria nele o olhar surpreso de Daller a me perceber contrita, diante de si, no burburinho do bulevar. Se não fosse assim, estava definida a indiferença da minha presença neste mundo, cuja punição seria mantê-lo apenas na sua filosofia otimista e nos vidros molhados do ônibus. Me desesperei como quem coloca tudo em uma aposta terminal, o futuro de uma vida decidida nem um microinstante, autoritário, perverso, enquanto os transeuntes passavam na calçada jogando seus próprios jogos, não pisar nas linhas, pagar os boletos, extrair solidariedades, até que um garoto não demorasse a parar no meio da multidão, refazer um caminho já perdido e, no reencontro, dar de frente com meus olhos pingando sobre o umbral. Era o que eu precisava para entender a mensagem. No instante seguinte, tirei o celular da bolsa, acendi outro cigarro e comecei a procurar por um bilhete aéreo.

Ilustração: Marcelo Frazão

Nº 2
Cheguei a Paris numa manhã confusa em que os moradores haviam acordado esperando o frio do inverno e o que aparecera fora um sol suportável que, de perto, reforçava o bege dos edifícios. Minha primeira impressão era que a cidade tirara todo o caos de si e o transplantara na alma das pessoas. Eu tinha alugado um quarto simples em uma hospedaria para mulheres na Rue de Dunkerque, cujo prédio trepava sob uma loja de queijos, e que insistia em manter canteiros de flores nas sacadas — o único ao longo da rua. Do segundo andar, eu notava a multidão correr apressada em direção à estação de trem, do outro lado do bulevar, e o único movimento contrário que parecia existir era o dos clientes de uma velha loja de bricolagem perto da esquina. Tudo era bonito de uma beleza sem conflitos, a síntese do maravilhoso, uma espécie de belo que não dá para evitar, que invade sofisticada, mas brutal, até que tudo seja só excitação e circunstância. Társio me ficava mais evidente. Eu, que voltara a fumar como sua consequência mais violenta, acendi um cigarro enquanto me ajeitava no batente da janela para me observar, a partir do lugar onde estava. Ainda não havia se consolidado em mim a passagem do desejo ao ato, a vitória da ideia, que eu estava mesmo na cidade — talvez a poucos metros de distância — de Társio. Comecei a chorar um choro sincero, o primeiro desde que ele havia surgido, puro como essas emoções que irrompem à superfície sem motivações compreensíveis. Não existia natureza para barrá-lo, e telefonei a Victoria. Do outro lado da rua, escorrendo pela parede do prédio, um menino usava meu horizonte momentâneo para pensar em qualquer outra coisa. De longe, parecia o rapaz que, dias antes, decidira minha sorte, como se voltasse agora para confirmá-la, para completar o acorde da voz dela, na linha do telefone, dizendo que o mais absurdo já tinha sido feito, que era injusto permitir que Társio vivesse sua vida perfeita sem se responsabilizar pelos impactos que causava no além-mar, que sua colonização afetiva era um dilema entre a violência e a ternura, que aquele misticismo jamais terminaria seu ciclo se eu não o fizesse girar sua roda outra vez, que mesmo as paixões esquisitas seguem leis universais. Eu respondia que não existia esse tudo, mas antes um nada, um imenso, barulhento e pesado nada que me deslocara até ali. Mas já não conseguia continuar, porque Victoria não dava chance para novas reações.

— Então vá lá e conte todo o nada para ele!

Passei o resto da tarde sozinha no quarto da hospedaria. Era uma construção antiga, cujas tábuas das escadas entortavam, exasperadas, quando alguém entrava pelo salão da rua, e os batentes, como consequência, rangiam idênticos às dores de amor. Ainda era possível escutar, vez ou outra, uma conversação passageira na calçada, as outras moças entrando e saindo ensopadas dos quartos da cidade. Não conseguia dormir. Depois de algumas tentativas, fiz o que não deveria: abri a rede social e, de imediato, saltou na tela a última publicação de Társio: ele almoçara com o colombiano e a menina-mistério em um boteco perto do metrô Chaligny, de onde partira para o restaurante Macondo só com o amigo, que também o acompanhara até uma praça ali perto, com uma camisa branca florida debaixo da blusa grossa, um boné velho com uma pequeníssima bandeira da França, uma corrente sem pingente no pescoço, segurando um cachorro aleatório no colo. Estávamos a uma caminhada longa pelo boulevard Magenta, supondo que ele ainda estivesse lá. Já fazia uma hora que havia publicado a última foto. “Vá e conte todo o nada para ele.” Pela janela entrava um azul prussiano que só não penetrava em tudo porque esbarrava no amarelo sujo da iluminação pública. Fazia o frio que os parisienses estavam esperando e eles, satisfeitos, passavam pela rua baforando a fumaça branca dos pulmões. Decidi num instante que conhecer Társio era mais do que comprovar sua existência, mas antes desbravar seu objeto, avançar na sua filosofia, abrir as páginas do que ele procurava traduzir para o seu idioma particular: a cidade, as ruas da cidade, os cafés, os becos, os diálogos, as miudezas da cidade. Minha necessidade era logo de mudar as lógicas, virar o cotidiano do avesso, e saí correndo para o primeiro movimento contrário que me estava adiante, em direção a Marguerite. Caminhei lentamente até a fronteira do bulevar, e depois até o fim do outro, debaixo de uma garoa quase intocável, até parar numa esquina em que tudo se chamava Roma. Era noite definitiva. Fazia algumas horas que eu não pensava em Társio, mas em todas as outras coisas deste mundo: as desigualdades, as belezas (eu sempre penso nas belezas), o tempo, a frouxidão existencial. Segui por uma praça qualquer até ver, do outro lado da rua, dois homens fumando juntos debaixo do letreiro do Le Chaptal. Társio e o colombiano. Eu e Victoria. O passado e o futuro. Atravessei apressada, mas no intervalo suficiente para que ambos me observassem, convidativos, a entrar no restaurante e sentar numa mesa em que pudesse vê-los sem esforço. De repente, havia só nós três. O colombiano — ou Victoria, ou o passado — se preocupava em me fitar sem ser notado, quase sempre fracassado diante da firmeza do meu olhar. Parecia árabe, ou latino, cabelos lisos entrando pelas orelhas, barba de uns dias, boca desproporcional que nunca ria, agora balbuciando uma pergunta possível só no seu idioma para Társio — ou eu, ou o futuro —, que evitava ao máximo se entregar. Eu podia pegar pelas mãos sua ansiedade em se virar, seguir nosso pequeníssimo jogo e satisfazer os desejos instaurados. Mas ele era forte, como Társio, como eu, como o futuro, e deixava à mostra apenas a corcunda debruçada sobre a mesa, o cabelo também longo dentro das orelhas, um pescoço jamais beijado. “Vá lá e conte todo o nada para ele.” Ficamos naquele universo particular até o Le Chaptal fechar as portas. Voltei à hospedaria pelo mesmo caminho, ainda mais lentamente, sentindo a água da chuva encharcar a roupa aos poucos, inventando uma canção de criança com os nomes das estações do metrô.

No dia seguinte acordei decidida a experimentá-lo. Ele e Társio. Eu tinha em mim o sentimento mais difícil de sentir: essa complexa felicidade que vem do diferente, das possibilidades inteiramente abertas no instante, de estar sujeita a todas as alternativas do mundo, de ser jogada, num lapso, ao acaso total do acaso. Uma exasperação sequer estudada, desbravada, que não se conhece o nome, mas que existe justamente no seu mistério. Ex-asperação. Estar entregue a qualquer coisa, aceitar qualquer regra, entrar em qualquer rua, cair em qualquer lamúria, guardar qualquer lembrança. Se esse gênero fosse meu, aquele seria o ápice da história. Era o legado de Társio, seu poder, sua magnitude, tão intensa que não me era impensável que fosse mais do que a sua própria existência física, e de que estar ali já valia a pena independentemente de encontrá-lo, embora agora parecesse ser menos questão de coração e mais de lei inequívoca dos encontros. Abri a janela do quarto com sua imagem comum, mas com o pensamento naquele entrelaçamento confuso em que, mesmo sem imaginar que uma mulher fora a Paris somente para vê-lo e sentira todo o sentimento do mundo antes do ato decisivo, ainda sim queria tê-lo, mesmo que brevemente, só para si. Fumei dois cigarros quase simultâneos antes de escapar da hospedaria no primeiro horário do sol pelo horizonte da Rue du Faubourg, numa marcha apressada até chegar à Monsieur Le Prince. O café de Társio estava fechado, e resolvi esperar sentada no meio-fio. Em algum lugar do planeta, Rute fumava na janela, o colombiano dormia, o futuro esperava e o árabe seguia se esforçando para não virar de costas para, enfim, me enxergar. Eu estava sozinha, literalmente. Fazia um frio que parecia um abraço desconhecido, e a garoa se esparramava aos poucos pela cidade. A rua se estreitava na esquina da sociedade dos poetas franceses, depois das livrarias americanas, das lojas de gravuras, das várias livrarias, da indecisão de seguir o horizonte do teatro. Társio nunca teria notado nada disso. Seu corpo era o leviatã, sua experiência era a síntese do social, seus olhos eram a própria cegueira da multidão a seguir os movimentos, como se eu tivesse me apaixonado mais pela espécie humana do que por um homem só. Fazia mais sentido pensá-lo desse jeito. Voltei na direção do café a tempo de ver uma mulher abrir a porta e entrar no salão vazio às pressas, vestindo um avental e puxando as cadeiras de volta para o chão. Eu já conhecia tudo: a louçaria, a disposição das mesas, o azul perpétuo na parede, as janelas sujas, mesmo a mulher — uma argelina tímida que escrevia na rede social em árabe. Era o mais perto que eu estava dele, um cometa prestes a cruzar os céus de um planeta, ainda não identificado, distante o suficiente para manter as tensões equilibradas. Na verdade, eu sabia que Társio jamais irromperia por aquela porta, e era um saber legítimo, desses que só os casais possuem, porque ele costuma esticar as noites de sexta-feira até o limite das possibilidades, mas também porque detesta o primeiro frio da manhã, porque o colombiano ou a moça-mistério jamais topariam a empreitada de tomar o metrô cedo, descer em Odeon e atravessar todos os poetas até o café — que começa a funcionar mais tarde aos sábados. Pedi o mesmo que Társio tomaria e, na excitação dos lugares sagrados, voltei ao seu perfil: ele havia madrugado em uma festa privada, com os amigos de sempre e um monte de gente aleatória, fazendo caretas, ouvindo músicas da adolescência, rindo à toa com um cigarro nas mãos, beijando outro homem no rosto, felicidade suprema num apartamento minúsculo.

Depois, andei pelo horizonte até a biblioteca e, dali, fui seguindo lentamente os rastros de Daller pela cidade. Era um jogo que me convocava a jogá-lo sem arroubos sentimentais, preservando Társio ao mesmo tempo que o intensificava em mim. Era a nossa história, nossos lugares, nossas experiências, um lugar possível para guardar nossos acontecimentos que não aconteceram, um rio particular para desaguar toda minha densa obsessão. Eu voltaria para casa dentro de quatro dias para contornar a síntese, com a certeza definitiva de todas as possibilidades, com a ex-asperação em frascos de vidro para serem abertos à sorte das ocasiões, tudo muito difícil de explicar em tão pouco tempo. Fui sem perceber até um amontoado de docas, carros, prédios, e então até o parque da ilha de Saint-Germain, onde eu decidiria sonhar meu encontro com Társio numa noite de outono, em outro lugar, sob outras perspectivas, enfim, tocar o real das coisas. Deitei na grama e esperei a garoa da noite chegar.

Nos dois primeiros últimos dias, caminhei quase aleatoriamente pelas ruas, guiada ora pelos atropelos da arquitetura monumental ora pelos meus estímulos mais naturais, como o perfume de um amendoim ou algum lugar onde retomar o calor do corpo, até notar que não existia nada de autêntico naquilo tudo, e que todas as experiências ao redor eram de força tarsiana absoluta. Na verdade, eu o seguia à distância, num roteiro que caberia com graça na linguagem no cinema, mas jamais na textura da prosa, cujas pistas estavam nas coisas que ele postava na rede social. Na manhã inaugural, Daller estava emoldurado pelos tijolos do cemitério de Montmartre, e depois caminhando com os turistas pelas tumbas molhadas da madrugada. Só podia ser em Montmartre. Corri para lá literalmente, pelas escadas do metrô, pelo bulevar, mas até que eu chegasse em lugar aproximado, ele já havia zarpado tranquilo para um dos apartamentos inencontráveis dos seus amigos triviais. Depois, ele aparecera novamente, em um vídeo curto, filtrado por cores ressecadas, cavalgando no torso branco de um cavalo de carrossel com a alegria dos poucos vencedores deste mundo, e depois em outro, jogando a fumaça de um café de rua pela boca como uma criança costuma fazer diante de qualquer descoberta. Era em uma praça suspeita, provavelmente Parvis ou Saint-Sulpice, nunca Quartier Latin, e tomei o caminho mais longo para chegar até a opção mais imediata, justamente para não o encontrar, mas principalmente para encontrá-lo: queria observar o que fica dos lugares quando os encontros não acontecem, o que há de mistério em estar em um outro estar, mas também em uma outra fatia de tempo, a única fronteira entre mim, Daller, os reis e as cabeças cortadas. Aquele era um prazer próprio, inventado ao meu molde, que existia na fissura da contradição entre ser tão próxima e tão distante de Társio, e que ficava mais intenso conforme eu ia recolhendo seus resquícios pelo chão, revigorando suas felicidades bobas somente com o olhar, pisando na sua terra batida também com meus pés, habitando os locais históricos que ele criava apenas para dar forma à nossa história. Poderia passar a vida inteira presa nessas atividades sentimentais, adiando eternamente encontrar seu inventor. No outro dia lá estava ele no velho Macondo, com os mesmos amigos de sempre, tentando fazer seus seguidores acreditarem que ele gostava de vallenatos clássicos, que falava o espanhol com ossos do Caribe, vestindo a camiseta de um time de futebol, pulseiras de pedrinhas nos braços, deixando ver o relógio de números romanos tatuado no antebraço, um homem de traços tão suaves que era quase uma mulher, se não fosse a estrutura robusta dos ombros e a barba a tomar-lhe as bochechas aos poucos. O Macondo era então uma porta minúscula, verde-oliva, vitrines sujas de gordura prensadas pelos portões da época do imperador e pela imensidão de lojas de móveis usados da rua, e mesmo o salão, pequeno como um quarto de hóspedes, servia mais para promover retornos breves à Colômbia perdida do que para atrair clientes. Depois Daller desaparecera, me dando fôlego para prosseguir, e é curioso que seja justamente aí que não lembro muito bem do que fiz de mim mesma, claro, porque ele era a cidade, o resumo da espécie, mas também muito porque Paris era como um panóptico, como um imenso labirinto pintado à ocre, todas as Rutes, Marcos, mulheres-mistério, cinemas, colombianos, carrosséis, Dallers fumando seus cigarros nas bordas das janelas, nas calçadas molhadas, nos cantos das praças, mexidos de longe por um grande mecanismo de controle das ações minúsculas, tudo tão absolutamente idêntico, fortuito, bonito e tedioso. Naquele momento, o que importava era a minha certeza de que nossa relação ganhara maturidade definitiva, que não era mais pura paixão em erupção, e que agora minha igreja podia ser a de Belleville, minha estação, a de Javel, meu rio, o Sena, minha rua, a Camille Desmoulins, meu prédio, o da esquina da Rue de Turbigo, minha experiência, o parque da ilha de Saint-Germain, minha música, a terceira gymnopédie.

Nº 3
O terceiro dia era o sábado do nosso encontro. Eu dormi um sono cortado em pequenos fragmentos enquanto a Terra, do lado de fora, girava na velocidade de um ventilador. Meu corpo, então, funcionava barulhento, águas descontroladas pela matéria, como o mapa de uma Paris de repente inundada pela rebentação das águas do Sena. Saí cedo pela rua provocando que uma das milhões de espécies de deuses decidisse nos trombar involuntariamente em alguma esquina e se comprovasse toda a força do divino sobre o mundo, a existência dessas coisas que não se explicam, mas que ousam em acontecer. Não havia nada na sua rede social: Daller só não postava suas coisas quando estava experimentando prazeres ainda insubstituíveis, seu chamado à socialidade, uma mulher-não-tão-mistério, outra história possível. “Vá e conte todo o nada para ele”, sussurrava Victoria. Dei meia-volta, peguei o metrô até Odeon e saí correndo pelos poetas da Monsieur Le Prince até nosso pequeno café, mas não havia ninguém. Voltei outra vez e, sem fôlego, entrei na estação. Estudei apressada como chegar a Buttes-Chaumont, onde Tarsinho poderia estar com a mulher-mistério esperando por chamados mais interessantes, e quando cheguei percorri os caminhos como uma polícia sentimental, observando do alto dos bosques, de toda a França, por um único símbolo que me levasse a ele. Nada. Eu já estava preocupada com meu tempo, com a iminência do retorno à realidade, o ápice que nunca acontece, essas nuances da literatura contemporânea. Depois do almoço, a ausência de Daller já era mais uma exaustão que começava no pensamento e terminava no coração, enquanto o mapa da cidade era agora um desenho a ir colorindo. “Todo o nada, Victória, todo esse imenso nada que, justamente por ser nada, pode ser tudo, pode ser o nada que preenche um tudo indesejado, o tudo que só pode existir se houver um nada adiante, o nada é Társio Daller, o tudo também, Victória, e eu tenho algumas horas para descobrir…” Ex-asperação, não, exasperação, domínio de si, mas necessidade do outro. Às cinco da tarde ele, enfim, apareceu por entre meus dedos, enquadrando um cachorro qualquer em um lugar indecifrável, que só deixava ver as mesas de um outro café e um pedaço do asfalto do bulevar. Fiquei olhando para a fotografia como quem sabe conhecer uma alternativa, o sentido oculto das coisas, ou que não havia sido na quinta série porque tinha que ser ali quando algum deus jogou um guardanapo sobre a mesa onde se poderia ler: Côté Saint-Germain.

De repente, era como se estivéssemos somente eu e ele em Paris. Como se o mapa da cidade não fosse mais um labirinto, um mar agitado, um livro de colorir, mas como se eu só precisasse caminhar até Daller com os pés tremendo, as borboletas voando pelo intestino, todos os acasos condensados em um só, o acontecimento que precede o acontecimento, e então tomar a decisão do que fazer quando o alcançasse no salão lotado. Foi assim que saí pela rua sem arroubos, e que na arrebentação do vento flutuei pelas vielas até a esquina seguinte, desci a escada do metrô com um sorriso estranho, entrei no trem lotado com uma certeza inexplicável nas mãos e desci em Mabillon já embasbacada, ex-asperação, não exasperação, na iminência de alcançar novamente o patamar da rua e vê-lo a qualquer momento, vê-lo definitivamente, vê-lo ser uma existência e não uma narrativa de felicidade instantânea. Vê-lo. Subi as escadas lentamente, planejando o melhor dos encontros possíveis, e as borboletas se espantaram quando notaram a torrinha do primeiro prédio surgir, amarela, no azul do começo da noite. Os cafés estavam abarrotados, os vidros embaçados, as bicicletas atravessavam esbaforidas, os galhos denunciavam os cadáveres das árvores, tudo era de um movimento intenso, de um verde natural, e até que eu cruzasse o bulevar e sentisse os primeiros sinais de uma garoa fria sobre os ombros do casaco não haveria paz na Terra. Eu já havia visto o letreiro iluminado de longe, letras como que feitas num caderno, Côté Saint-Germain gigantesco, solitário numa sequência de vitrines apagadas, e fui seguindo-as pelo canto, sentindo aos poucos a força dos fatos históricos quando são só iminências, o instante preciso antes da precisão, até que tudo virasse ao contrário: abri a porta do café com esmero e, antes que pudesse disfarçar, o vi sentado em uma das mesas, distante, imponente, todos juntos — Társio Daller, Tarsinho, Tarsiano, Tá, Rute, o colombiano, a mulher de salto, a garçonete do Macondo, toda a humanidade filtrada por uma instantaneidade. Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de bebê perverso dentro de um casaco preto interminável que parecia mais a sotaina de um viúvo, e tinha os olhos muito separados, como de um touro, e tão complexos que poderiam ser do demônio se não estivessem submetidos ao domínio do coração. Mas, acima de tudo, era uma existência, uma matéria, um fato, uma explosão de veias, ossos, sangue, pensamentos, essa sujeição inexplicável à vida esparramada pela bancada de madeira do café como se o mundo fosse a melhor das experiências. Eu só consegui me sentar do outro lado, no único espaço ainda aberto, e pedi um café apontando o dedo no cardápio. Társio estava com outro homem, que eu não conhecia (falha da nossa relação) e que não parecia instado a lhe provocar movimento — era um silêncio escolhido, cortado por risadas tímidas quando alguém interessante passava do lado de fora do Côté. Eu não sabia o que fazer, o que falar, como abordá-lo e contar todo o nada, e enquanto aquele impasse durava as pessoas iam chegando: primeiro a moça misteriosa, depois o colombiano e, então, o fotógrafo exilado e o colega da época da escola. Logo em seguida chegou um casal de meninas, uma loira de cabelo curto, olhos azuis, roupas e unhas pretas, e uma outra que só falava francês. Eu permanecia imóvel, notando a robustez dos rostos, principalmente a robustez dos rostos, o de Társio tão diferente, como se fosse outro dos que eu conhecia, Tárcio, Tarciênio, Tárci, uma boca pequena, cor de manga, olhos bem abertos, cabelos mais claros do que nas fotos, com todos aqueles trejeitos que, para mim, eram novidades estranhas, como se não fôssemos tão íntimos quanto eu supunha. Nesses pequeníssimos relatos eu ia adiando o momento de ir até lá, me convencendo de que nenhum deles era perdido, e ao mesmo tempo admitindo que sim, que ninguém pode ser feliz sozinho, que era preciso falar-lhe, “eu vim até aqui para isso”, “eu sei onde você toma café”. Mais gente ia chegando, rodeando umas às outras, as taças de vinho circulando pela mesa, todos felizes, a ternura da realidade que precede a rede social. Meus olhos estavam vidrados em Daller. Eu sentia intensamente: no meio do funcionamento de todas as coisas, planetas, teorias, estações do ano, a multidão, as melhores histórias de amor, era como se estivéssemos só eu e ele no mundo.

Foi quando notei o quão bonito era ver Társio Daller sendo ele, somente ele, como ele era todos os outros — nos trejeitos, no sorriso, na distração, na maneira de reagir às conversações, como havia incorporado tão bem o mundo, e como devolvia a ele uma coisa estranha, inautêntica, mas genuína. Tinha uma imensidão, e estar diante dele era uma tensão permanente. Fiquei atenta observando-o por mais de uma hora, inerte, sem ser percebida por seu clerito particular, até que meu café foi naturalmente se esvaziando, a noite se consolidando e Tarsinho, nas fronteiras das suas circunstâncias, cada vez mais dando trela aos acasos que iam surgindo adiante. Sua igreja eram os amigos, sua estação, qualquer felicidade, seu rio eram as possibilidades realmente possíveis, sua rua, a próxima, seu edifício, o Côté Saint Germain, sua experiência, a ainda não vivida, sua música, para mim, a primeira gymnopédie. Não havia nada para lhe contar. Sorvi o último gole, levantei da mesa e alcancei o lado de fora num deslize pelo corredor do salão sem olhar para trás, ex-asperada.

Vinícius Mendes

Jornalista, sociólogo e professor, tem 34 anos e nasceu em São Paulo (SP). É autor do romance (no prelo) Milhões de espécies de solidão.

Rascunho